A periferia é que vai garantir a soberania popular, diz historiador


“O golpe já foi dado e não temos nenhuma razão pra temer um novo golpe [de Bolsonaro], porque seria um golpe dentro do golpe.” Quem afirma é o historiador Lincoln Penna, que participou no dia 30 de julho do Soberania em Debate sobre a construção histórica dos símbolos nacionais. “O que pode acontecer”, diz, “foi o que aconteceu em 68, em plena ditadura, e houve necessidade de um incremento do poder golpista com a edição do AI5.” Um movimento que Penna denomina “golpe continuado”.

Apesar de tudo, Penna tem esperanças no futuro da democracia brasileira. Ele acredita que a população vai reagir à longa história de opressão e à piora da qualidade de vida. Um sinal desse esgotamento seria o ato que incendiou a estátua do bandeirante genocida Borba Gato, em São Paulo, no dia 24 de julho, em ato reivindicado pelo Coletivo Revolução Periférica.

“Costumo ser realista, e é um realismo que beira o otimismo mais do que o pessimismo”, diz. “Não acredito que o povo brasileiro seja tão indiferente à sua sorte. Ele vai produzir alternativas de participação, como, aliás, já está acontecendo. O episódio do Galo [liderança dos trabalhadores autônomos em serviços de entrega, preso por participar da manifestação na estátua], é bem significativo. Uma liderança que surge de uma opressão. E a opressão, ao contrário do que muita gente pensa, não leva necessariamente à resignação, leva à revolta, que precisa ser canalizada, não pode ser extemporânea e isolada, mas organizada. E há meios, mecanismos e experiências nesse sentido nas comunidades, principalmente nas comunidades periféricas.”

As transformações, contudo, avalia Penna, ainda levam tempo – uma ou duas gerações futuras. Ele observa que, sob muitos aspectos, o século 16 tem estado mais presente no país do que o século 20. “Toda e qualquer possibilidade de ascensão dos setores vulneráveis excluídos tem sido objeto não só de mais violência, mas também de regimes que tentam restringir ainda mais as liberdades de expressão e de manifestação.”

Nesse sentido, destacou o nome, nada gratuito, do Coletivo Revolução Periférica, que assumiu a intervenção na estátua do Borba Gato. “Achei muito interessante essa denominação Revolução Periférica, porque, na verdade, o Brasil abriga uma periferia constituída exatamente pelas pessoas que estão excluídas dos bens fundamentais de existência – moradia, trabalho e dignidade. Então a denominação não poderia ser mais apropriada. Com relação ao episódio em si, é mais uma manifestação de insurgência dentro de tantas outras que têm caracterizado a história brasileira.”

Ao contrário do povo “ordeiro” que exaltam os livros didáticos e a historiografia, Penna argumenta que “temos uma sociedade das mais violentas e cruéis”, em que atos de resistência ou de insatisfação são respondidos com mais violência e repressão. O estudioso está agora concluindo um livro sobre os golpes de Estado no país, “uma outra faceta institucional nessa mesma história”.

O historiador menciona o artigo “A ressignificação do passado“,  em que já havia defendido o direito do cidadão de se manifestar diretamente contra situações que o constrangem. “E é o caso da estátua, que representa exatamente o momento histórico dessa situação que permanece a mesma, com toda a modernização da vida ao longo desses séculos, na medida em que as classes dominantes são herdeiras dos primeiros feitores e donatários de capitanias.” O contexto de opressão, critica Penna, vem dos tempos coloniais, expandiu seu poderio, sustentou oligarquias e agora se encontra agravado no governo de Bolsonaro. “Sobretudo, quando nós temos no momento um governo com verdadeira aversão à ciência, à cultura, à educação, e a tudo que represente avanço das relações sociais, a conquista de novos horizontes para o povo.”

Essa agenda regressiva, se bem que fortalecida no bolsonarismo, independe da figura do presidente, diz Penna. Ele acredita que, no limite, Bolsonaro poderá ser descartado pelas próprias Forças Armadas, sem que o país se livre da tutela militar. “O Bolsonaro está criando muito caso para as Forças Armadas e elas podem considerar tirá-lo, caso ele já não possa mais falar em nome da corporação. Mas tem um detalhe muito importante – uma tese minha: acho que a República é a República dos militares. Eles é que governaram ao longo destes cento e tantos anos da República. Claro que não diretamente, mas, indiretamente, estiveram sempre envolvidos com todas as articulações políticas.”

Para um golpe, diz o historiador, seria preciso que o presidente deixasse de merecer a confiança “dos seus digamos subordinados”. Nesse sentido, Penna reconhece que Bolsonaro esteja no momento cercado por todo tipo de pressão, com um governo desestruturado. “E, nesse caso, é realmente um perigo sério, porque a gente não sabe para onde vai. Internacionalmente, é o líder nacional mais contestado no mundo, não só formalmente, politicamente, mas execrado pelas atitudes que tomou ao longo desse tempo à frente do governo. Um golpe, então, dentro da lógica dos golpes na República, eu não diria que é impraticável mas obedeceria uma outra lógica que não aquela que normalmente vem se dando ao longo desses anos todos de República. Eu tenho muita dificuldade de entender um golpe que esteja fora das Forças Armadas.”

Apesar de tudo, o historiador espera que o movimento popular restaure a soberania do país. Se o Brasil pode ser comparado a uma grande periferia , diz – “é claro que a periferia vai ter que se manifestar em algum momento, mas ninguém tem a fórmula mágica para superação dessas dificuldades. Fica a esperança, que tem que ser cultivada, porque sem ela nada se faz.”

> O Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ).

> Assista na íntegra ao Soberania em Debate com o historiador Lincoln Penna, entrevistado pelo advogado e cientista político Jorge Folena e pela jornalista Beth Costa, coordenadora do SOS Brasil Soberano.

 

https://www.youtube.com/watch?v=8jfq6Kr2Zgs

 

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