Historiador defende criação de um projeto de defesa para o Brasil


Para o historiador Manuel Domingos Neto, a área é capaz de impulsionar a industrialização e um sistema de C&T. Mas vai exigir de um novo governo “muito apoio popular”, afirma Roberto Amaral. Os dois participaram do Soberania em Debate.

Se cada vez fica mais explícita a disposição do governo Bolsonaro para um novo golpe contra as eleições de 2022, o cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia (2003 e 2004) Roberto Amaral destaca que também a resistência da sociedade civil está mais forte. Ele participou do Soberania em Debate, no dia 6, ao lado do historiador Manuel Domingos Neto, que defendeu a importância de o país construir um projeto de defesa militar não subordinado aos EUA, revendo alianças e estratégias, e capaz de impulsionar um sistema de ciência, tecnologia e industrialização nacional. O atual projeto dos militares e do bolsonarismo, na sua avaliação, pretende, ao contrário, a total subserviência do Brasil, no papel de exportador de produtos primários. Uma espécie de “recolonização”.

“Desenvolvimento se faz com amparo em armas próprias”, afirmou o historiador, adaptando o ensinamento de Maquiavel, para quem “o príncipe precisa atirar com armas próprias.” O que o conjunto das forças democráticas deve fazer, diz Domingos Neto, é se aprofundar e criar um projeto na área da defesa nacional, capaz de assegurar a autonomia e a soberania do país.

O domínio dos assuntos relacionados à defesa, lamenta o pesquisador, sempre foi monopólio das corporações. “Para sairmos disso, é necessário dominar o tema. O cargo mais importante do Brasil não é a direção da economia. É a defesa nacional, porque as demandas da defesa alteram a política científica e tecnológica, as políticas sociais, etc.” Pensar uma política de desenvolvimento econômico dissociada da defesa, na sua opinião, é “bobagem”.

“Estamos sem defesa nacional; a que está aí não presta para nada, dinheiro jogado fora”, afirmou, destacando a dependência crescente do país em armas e equipamentos dos EUA. O ex-presidente Lula ou qualquer outro líder que queira dirigir o país, segundo o historiador, vai ter que abordar o tema seriamente.

“A defesa militar de um país é constituída de quatro elementos fundamentais”, explica Domingos Neto. “O primeiro elemento é a unidade da sociedade. O segundo é a boa vizinhança – um país cercado de amigos é mais protegido. O terceiro é uma capacidade própria de agir, o que inclui o desenvolvimento científico e tecnológico, capacidade de produzir aviões, elementos da guerra cibernética, etc. E o quarto elemento é termos instrumentos de força. Logo, a defesa militar é algo essencialmente político. O armamento militar entra, se tivermos um projeto de defesa político, que demanda, naturalmente, um projeto de país. Essa perspectiva passa pelo enfrentamento dos dramas da sociedade. Precisamos atender as populações que estão mais sofridas e precisamos nos proteger, porque nós somos ricos e querem tirar nossas riquezas. Precisamos de um movimento político possante em torno dessa ideia.”

A ideia de que a ditadura desenvolveu o complexo industrial militar, na opinião do historiador, não se verifica na realidade. “Se a ditadura tivesse conseguido se projetar como potência independente, teria sido derrubada pelos norte-americanos.” Segundo o historiador, o enfrentamento ao imperialismo voltou a ser urgente. “A ordem mundial está mudando, as forças imperiais e hegemônicas estão se refazendo, e as disputas não se darão de repente nem sem violência. Trata-se de uma briga de grandes proporções, que afeta tudo, e o Brasil tem que se preparar para ela. Com Lula, Celso Amorim, Marco Aurélio Garcia (assessor de Lula para política internacional no governo, morto em 2017), [Roberto] Amaral, o país estava no caminho do afastamento dessa subserviência. ”

Ameaça de novo golpe
Para conseguir atender às expectativas do campo progressista, rever privatizações, retomar uma política externa ativa, combater o imperialismo, o ex-ministro Amaral ressalta, contudo, que Lula precisará de “muito apoio popular”. Sem uma maioria de esquerda no país, conseguir levar adiante a retomada de um projeto progressista, contra a fome, que faça voltar as esperanças, é o primeiro desafio de uma nova gestão do ex-presidente, diz. O segundo será a necessidade de compor e formar coalizões. “Qualquer que seja o nosso próximo governo, ele não será um governo de ruptura, e nada do que foi cogitado aqui, principalmente as recomendações do Manoel Domingos, é possível sem ruptura.”

Por enquanto, o país experimenta a escalada golpista que rondou as votações frustradas do voto impresso e, agora, visam as comemorações do 7 de Setembro. “Estamos voltando à posição que os democratas adotaram em 64, de defender a existência de eleições”, compara Amaral. “A primeira coisa que os militares fazem no poder é ameaçar as eleições, depois, o reconhecimento [do resultado] da eleição; depois, tentam impedir a posse. Quando não podem impedir a posse, como foi com JK e Jango, tentam o golpe clássico. Acho que estamos nesse instante. Há um plano de golpe – vamos chamar de golpe para facilitar –, de condicionar as eleições e a posse dos eleitos. Bolsonaro e os ministros militares que soltaram nota, o ministro da Defesa, não estão interessados em nada na urna impressa, não sabem nem o que significa. É uma preparação para o caso de serem malsucedidos nas eleições. O que se fala agora da urna impressa foi, na eleição de Getúlio e de JK, a alegação da maioria absoluta.”

O ex-ministro acredita, contudo, que “a sociedade está reagindo, a ‘Faria Lima’ [referência ao grande capital instalado na avenida Faria Lima, em São Paulo] começa a se sentir mal.” Amaral considera “uma decisão grave” o Tribunal Superior Eleitoral ter pedido ao Supremo Tribunal Federal (STF) para abrir inquérito contra Bolsonaro e incluí-lo na investigação que apura fake news e ameaças contra os ministros. “O resultado do inquérito seria a declaração da inelegibilidade do capitão”, ressaltou. “Essas reações poderão conter [o golpe]. Tenho a impressão de que ainda corremos risco, mas estamos mais próximos do processo eleitoral do que já estivemos há algum tempo.”

Agenda política da subserviência
Independentemente do destino que será dado a Bolsonaro, os dois debatedores reconhecem que a agenda política do governo ultrapassa o presidente. Para Manuel Domingos, há, infelizmente, um alinhamento inédito entre os militares, em torno de uma pauta central – a sujeição aos interesses norte-americanos. “Em termos de unidade militar, é algo sem similar na história do Brasil, nunca estiveram tão unidos. A impressão que eu tenho é que a unidade se faz em torno, em primeiro lugar, da aliança principal. Qualquer defesa, qualquer sistema de defesa, tem que ser baseado em alianças, e nós fizemos essa opção, que é a subordinação de acompanhar os Estados Unidos. Nunca houve tanta unidade nesse sentido.”

Isso é resultado, também, destaca, dos expurgos e perseguições nos meios militares ao pensamento divergente, a partir do golpe de 64. “A repressão interna nas Forças Armadas foi muito profunda, prolongada, e gerou, inclusive, o oficial burro. Porque, quando você não tem em contraditório, a unanimidade expele, reprime, prende, mata e afasta o divergente, como foi o caso da repressão nas Forças Armadas desde 64, e aí você tem uma geração de militares idiotas.” Esse “emburrecimento” é o que explica, nas palavras do historiador, que os generais “batam palmas para um presidente da República deste quilate”. “Houve um ‘emburrecimento’ mesmo, na qualidade do oficial brasileiro. É uma situação inédita.”

Por outro lado, o historiador também considera sem paralelo o nível de complexidade das estruturas sociais, que, na sua opinião, dificultam os golpes clássicos. “No passado, não havia essa capacidade de atingir a sociedade como um todo com a mensagem política. Esperar golpes como aqueles que aconteceram… não há possibilidade. A estrutura do Estado é muito mais complexa, a sociedade é infinitamente mais complexa, os meios de mobilização são mais complexos. A esquerda e a direita podem instantaneamente juntar milhares de pessoas para uma ação política. Os meios de comunicação, de organização, de mobilização e meios de locomoção de massas são diferentes.”

Falta de combatividade no meio acadêmico
Com essas novas formas de ampliação da resistência disponíveis, Manoel Domingos critica, no entanto, a falta de combatividade dos meios acadêmicos. “Uma coisa esquisita, que eu não entendo, olhando para os meus colegas, para o meu campo de trabalho, no mundo acadêmico, que eu não consigo explicar, é por que minha comunidade é tão parada. Eles [o governo] estão liquidando com a ciência no Brasil.”

O pesquisador lamenta que a comunidade acadêmica, apesar de contar com milhões de integrantes, venha se mantendo, em sua maioria, isolada das questões nacionais e sem reação. “Isso é chocante, eu não consigo compreender. Avento algumas possibilidades de explicação. Por exemplo, o individualismo e o abandono da função social da universidade.”

Ele observa que as bolsas de pesquisa estão cada vez mais escassas e desvalorizadas, e não há nem sombra das gestões feitas pela comunidade acadêmica em governos anteriores, para buscar recursos junto ao Congresso, onde houve até uma Frente Parlamentar com mais de cem integrantes em prol da ciência, na época do governo Lula.

“Precisávamos de um aparato técnico no CNPQ cinco vezes superior ao que temos hoje. Essa crise é uma coisa assustadora. Quem vai dirigir um órgão de ciência como esse, a primeira coisa que aprende, o beabá, é que o Lattes não é só uma coleção de currículos. É um instrumento administrativo, tudo que se faz, qualquer avaliação, é baseado nele”, explica Domingos. Por isso, ele ressalta que era preciso ter assegurado um backup para o caso de qualquer incidente no sistema – como o que tirou do ar o Lattes em 24 de junho, devido a falhas nos componentes dos computadores. “Não deixávamos faltar dinheiro para isso; é questão de responsabilidade”, lembra Manoel Domingos, que foi vice-presidente do CNPQ.

Governo de militares e recolonização
Tamanho descaso na gestão pública se explicaria, diz o historiador, pelo projeto do grupo governista para o país, que propõe a total dependência externa. “É um plano mesmo de acabar com a pesquisa no Brasil. Para que pesquisa se o plano é comprar tudo lá fora e exportar produtos primários? Para que desenvolver ciência? Eu me incomodo quando se diz que o governo não tem projeto de Brasil, os militares não têm projeto. Eu acho que têm e estão executando um projeto de recolonização.”

Para Amaral, há uma extrema coerência entre a política interna e a que o Brasil desempenha nas relações internacionais. “A política externa brasileira não mudou, apenas se tirou um trapalhão [o ex-ministro Ernesto Araújo] e se botou um profissional. Continuamos o projeto de subalternidade, e um país subalterno não precisa de ciência, nem de Forças Armadas, nem de indústria.” Parte da “tragédia” da história do país, diz o ex-ministro, foi a ausência de uma burguesia nacional. “Desde a Primeira República, temos uma burguesia que não está comprometida com o desenvolvimento profissional, que não está comprometida com a universidade, não precisa investir no ensino, não precisa se preocupar com saúde, porque ela pode pagar o plano. Até as Forças Armadas, lamentavelmente, dão as costas para o projeto nacional, para o desenvolvimento e para a autonomia militar do país.”

O oficial com mais poder à frente desse projeto de subordinação, na opinião de Domingos Neto, é hoje o ministro da Defesa, general Walter Braga Netto. “Ministérios estratégicos como o da Ciência e Tecnologia, que já teve um Roberto Amaral no comando, hoje, tem o quê? Um vendedor de travesseiro, um palhaço, dominado por coronéis. As agências da Capes, do CPqD, do MEC, da Funai, do Ibama, e todas essas instituições do Estado, que são fundamentais, estão em mãos militares. Então quem manda são os militares. Imaginem vocês, quem é que pode chegar hoje no Bolsonaro e dizer: ´Vai para casa, pede para sair`, quem pode? É o ministro do STF, é o presidente do Congresso? Não. Quem pode dizer é um general. Sabemos o nome dele. O ministro da Defesa, o general que hoje tem mais peso. Então não é um governo militar, mas é um governo de militares. Não é militar porque, se fosse, eu não chamaria de governo de militares. Ditadura é ditadura, não existe ditadura que não seja militar. Trata-se de um governo de militares, porque eles ainda não revelaram força para impor o ministro do STF que queiram, para cassar deputados. Não revelaram força ainda para nos botar na cadeia por conta desse programa. Governo militar é ditadura.”

Parafraseando Afonso Arinos, que afirmou certa vez que Jânio Quadros era “a UDN de porre”, Amaral considera Bolsonaro “um general Castelo Branco de porre”. “Foi um cavalo que passou selado diante do generalato. É um pangaré, mas o pangaré da vez, e vamos montar. Do meu ponto de vista, Bolsonaro é uma contingência que passou a ser necessária.” A “surpresa chocante”, diz o ex-ministro, foi os militares terem ido ao poder por meio do processo eleitoral.

Nesse campo, Domingos rejeita “radicalmente” a ideia de Lula buscar interlocução na área militar. “Lula é o maior inimigo e a maior ameaça a esse projeto de destruição do país”, diz, lembrando que o ex-presidente é um campeão de votos, que arrebata o sentimento popular, com projeção internacional, experiência e habilidade, e que os fiadores do projeto bolsonarista não aceitam. “Não sei como farão com esse grande líder. Eu não creio que seja boa coisa o Lula conversar com os militares. Vai reconhecer o militar como ator político? Acho que devemos tratar o militar como instrumento do Estado sem possibilidade de interferir no jogo político e partidário que define o quadro eleitoral.”

[atualização: no último dia 16, Lula desmentiu, em evento público, que estivesse buscando conversações com a área militar.]

> O Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ).

> Assista na íntegra ao Soberania em Debate com o historiador Manuel Domingos Neto, e com o cientista político e ex-ministro da CIência e Tecnologia Roberto Amaral, entrevistados pelo advogado e cientista político Jorge Folena e pela jornalista Beth Costa, coordenadora do SOS Brasil Soberano.

 

 

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