Inventar “inimigos” é estratégia da milícia e do Estado para enriquecer


Para o cientista político Bruno Paes Manso, autor do celebradíssimo “República das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro” (Todavia, 2020), o uso do discurso do medo, da metáfora da guerra, é a principal estratégia tanto da milícia quanto do governo Bolsonaro para exercer seu poder sobre os territórios, extraindo deles o máximo de riqueza e vantagens para os seus grupos aliados. É um modelo que articula violência e corrupção, em um Estado de exceção forjado sob o pretexto de combater “inimigos”, sejam eles os esquerdistas, os gays, as feministas, no caso do bolsonarismo, ou traficantes e facções rivais, no caso das milícias.

A saída para o Brasil, diz Manso, é pela política, com a soma de forças que visem o restabelecimento do Estado de Direito. Para isso, ele acredita que, na campanha eleitoral de 2022, será fundamental enfrentar a questão da segurança pública, em especial no Rio de Janeiro, com a retomada do controle sobre as polícias. O Brasil, destaca, é o país com maior número de homicídios, na ordem dos 60 mil por ano, mesmo sem estar em guerra.

“Há uma aposta na desordem, no medo, na desconstrução da política para, diante dessa sensação de anomia e desordem, você precisar de uma autoridade que se impõe pela violência”, diz. “Quando você não tem mais política nem democracia, ou quando as pessoas têm medo e se sentem vulneráveis, você vive a percepção de que está na selva. E de fato está na selva, quando não tem instituições políticas na mediação. Na selva, quem impõe o que pode ou não é o mais forte, o mais armado, que conta com mais gente armada. E é essa a aposta. “

O desmonte da ordem legal criada na Nova República, após quatro anos de Operação Lava Jato desqualificando e desacreditando a política, num momento de crise econômica e “de depressão profunda dos eleitores”, permitiu, segundo Manso, levar o bolsonarismo ao poder, com um discurso miliciano, antilegalista, anticonstitucional. “Foi esse discurso da guerra que deu poder para as milícias e para os grupos paramilitares. E foi justamente esse discurso que [em 2018] estava indo para a Presidência da República, porque tinha seduzido muita gente que estava insegura, com medo da desordem, da crise, e que apela para uma solução aparentemente mágica e fácil, para o discurso da guerra e dos bodes expiatórios.”

Contra esse modelo antidemocrático, diz o cientista político, é necessário então fortalecer as instituições com pessoas compromissadas com a democracia, o Estado de Direito, e buscar a redução dos homicídios e desses grupos que matam nos territórios. “A violência é um problema político”, destaca Manso. “Onde se concentra o homicídio, quase sempre tem um tirano que mata para se impor no poder. O Estado precisa resgatar o legítimo exercício da força em nome do Estado de Direito, porque quando há alguém nesses territórios impondo o poder, está fazendo em nome de seus próprios interesses pessoais, usando a força para ficar rico.”

Nesse sentido, a organização criminosa se traduz em corrupção, quando aplicada à gestão do Estado. Ou seja, uma das características das organizações e práticas milicianas, baseadas no discurso da guerra contra “inimigos”, é o favorecimento daqueles que são considerados aliados. E o fim da impessoalidade abre as portas à corrupção. É nesse contexto que se dá, segundo Manso, a aliança do governo – eleito com a plataforma moralizante da anticorrupção – com o Centrão.

“Quando você tem uma leitura de que você está numa guerra, disputando o poder com inimigos, todos que te financiam e estão juntos nessa guerra passam a ser favorecidos. É o caso dos madeireiros na Amazônia, que também foram beneficiados pela fragilidade da fiscalização. Ou do contrabando e da venda de armas, como está acontecendo… Ou seja, essa visão miliciana é a de uma guerra contra os inimigos, que são definidos pelo discurso, pela ideologia – os ‘globalistas’, os ‘esquerdistas’, os ‘gayzistas’…Você constrói um discurso dos seus aliados, submete os que não concordam com você ou vai pra guerra. A lei é para os que estão no seu grupo, seus aliados. Isso abre espaço para uma série de privilégios e vários tipos e formas de corrupção, que na verdade são velhas , porque tiveram que se aliar com o Centrão. Os velhos esquemas de sempre foram recolocados. “

Guerra dos tronos no Rio
Essa captura de recursos e vantagens pela força bruta é ainda pior no Rio de Janeiro, com maior atuação das milícias e berço do bolsonarismo. “Para vencer o problema, diante da gravidade da situação do Rio de Janeiro”, avalia Manso,“não adianta ser uma pessoa, mas uma coalizão.”

Ele ressalta que a questão da segurança é crítica para a população. “A democracia depende da sensação de ordem e previsibilidade nas comunidades. É fundamental saber que vai trabalhar, ganhar pouco, mas não vai ser assaltado no ponto de ônibus. É importante passar a sensação de que há uma preocupação com esse tipo de covardia, se não, perde a esperança no mundo, na ordem. É preciso respeitar esses sentimentos das pessoas.” Uma atenção que, na opinião de Manso, está presente na atuação, por exemplo, de políticos como Marcelo Freixo (PSB-RJ), envolvido com segurança pública desde a CPI das milícias, em 2008, ou o ex-secretário estadual Luís Eduardo Soares. “Vai ser necessário dialogar com as polícias, encontrar um rumo, encarar o problema de frente.”

No seu livro, o cientista político conta que vários entrevistados compararam o contexto fluminense à série ficcional Game of Thrones, em que vários reinos travam uma disputa sangrenta por território. Na realidade, os lances mais recentes da crônica criminal do Rio incluem a aliança das milícias com o Terceiro Comando Puro, e seu ingresso na venda de drogas. Ao mesmo tempo, traficantes passaram a atuar em mercados tradicionalmente explorados por milicianos, como o comércio de gás e acesso à internet. “Quando você controla o território, extrai o máximo de receita, e eles perceberam isso. Os negócios se assemelham, porque ambos controlam os territórios. É uma situação muito dramática, em função da fragilização das instituições republicanas e democráticas.”

Para reverter a perda da soberania territorial, o pesquisador considera “fundamental”, hoje, no Brasil, ter maior controle sobre as polícias. “Ter uma polícia grande e descontrolada é pior do que ter uma polícia menor e controlada. É fundamental ter uma polícia controlada, mesmo que seja menor. Porque uma polícia grande e descontrolada se torna protagonista do crime. É o que aconteceu no Rio de Janeiro.”

Manso lembra que, além da intervenção militar no estado, foi investido mais de R$ 1 bilhão no aparato repressor, em viaturas, armas, equipamentos, munições e fuzis. Recursos que, com uma polícia descontrolada, vão muitas vezes ser transferidos para a criminalidade. “São necessárias instituições democráticas fortes e um grupo comprometido para retomar o controle das polícias e dar legitimidade de autoridade democrática, retomando as comunidades tiranizadas por esses grupos armados.”

> Assista na íntegra o Soberania em Debate com Bruno Paes Manso,  entrevistado pelo  advogado e cientista político Jorge Folena e pela jornalista Beth Costa, coordenadora do SOS Brasil Soberano.

> O Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ).

 

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