Márcia Motta: Pequeno discurso de resistência


A historiadora Márcia Maria Menendes Motta é a nova presidente da Associação Nacional de História (Anpuh Nacional), que reúne professores de História em todos os níveis de ensino e demais profissionais que atuam em arquivos públicos e privados, e em instituições de patrimônio e memória espalhadas pelo país. “Estamos com medo? Claro que sim”, afirmou durante seu discurso de posse, no 30º Simpósio Nacional de História (SNH), em Recife. Mas não haverá recuo, destacou, citando versos de Marcelo D2: “Eu luto e não me rendo/Caio e não me vendo/Não recuo nem em pensamento/Eu sigo em movimento que pra mim é natural/De resistência cultural”. Diante dos retrocessos em curso no país, ela avisa que os profissionais de História estão juntos e “em combate”.

LEIA O DISCURSO NA ÍNTEGRA:

Posse da nova direção da ANPUH Nacional- biênio 2019/2021

Márcia Maria Menendes Motta*

Boa Noite a todas e todos,
Estamos derrotados?
Quase tudo que acreditamos tem sido destruído por indivíduos cuja marca incontornável é o exercício da maldade. Nós passamos nossas vidas – sempre uma única vida – tentando nos defender em um presente que raramente incorpora a reflexão dos historiadores. Não somos céticos. Se temos uma única vida e, sequer, podemos prever o futuro pessoal, é preciso acreditar que os retrocessos são as respostas a nossa força difusa, sublimada nos discursos dos que reiteradamente tentam nos convencer que somos, afinal de contas, um bando de indivíduos, promotores da balbúrdia.

Por destino ou teimosia, nascemos para incomodar. Nossos insucessos, às vezes chancelados por pares, não nos destroem, porque, mesmo calados, continuamos gritando. Acostumados a manejar recursos tão escassos – e muitas vezes inexistentes -, produzimos artigos, livros, participamos de eventos e ministramos aulas em todos os segmentos, lidando com os sofrimentos de nossos alunos, quase sempre, bem mais frágeis do que todos nós.

Não somos incrédulos, mas carregamos a angústia dos que enxergam um pouco mais além. Somos alimentados por historiadoras e historiadores que construíram e fortaleceram uma associação que é de todos nós. Alguns tornaram-se famosos pelo seu poder de bruxa, como a minha querida Lana Lage. Outros têm a força de quem ama demais a vida, consolidando a alcunha de Fênix, como a generosa Ismênia Martins. Há os que exalam a felicidade, como o roqueiro Luis Carlos Soares. Há ainda o delicado sorriso cativante de Benito Smith, a bondade discreta de Durval Muniz e a doçura da eterna menina Joana Pedro. Múltiplas fontes de inspiração que, de imediato, nos colocam uma pergunta: como não amá-los?

Recusamos construir nossa ilusão biográfica para justificar o sofrimento que nos suporta. Preferimos assumir, perante a todos, que temos a sorte de ainda estar vivos, em um país que naturaliza a desigualdade e a intolerância, ambas tão decisivamente cruéis. Não escolhemos o nosso corpo, tampouco a nossa aldeia de nascimento, mas é preciso assumir que, no Brasil, não é possível uma avaliação justa, se continuamos a ignorar o local de partida.

Como sobreviver em tempos tão sombrios, protagonizados por homens brancos, cujo saber tem a profundidade de um açude em tempos de seca? Os faxinalenses do Paraná, os homens e mulheres do fundo de pasto da Bahia, as quebradeiras de coco do Maranhão, os favelados do Rio de Janeiro já nos ensinaram: para não naufragar é preciso fortalecer as parcerias, aproximando percursos historiográficos, desvelando a complexa rotina dos docentes, sobreviventes de tragédias diárias. Precisamos nos ajudar para reiterar o que alguns tanto temem: a bem da verdade, somos mesmo indestrutíveis.

Marcelo D2 já nos assegurou: “Eu luto e não me rendo/Caio e não me vendo/Não recuo nem em pensamento/Eu sigo em movimento que pra mim é natural/De resistência cultural”.

Nós apostamos no exercício diário da empatia e é o aprendizado deste sentimento que nos conforta. Estamos com medo? Claro que sim. Mas não temos sequer o direito agora de recuar. Não podemos nos abandonar, pois o Tsunami bate às nossas portas, inundando com as lamas de Mariana e de Brumadinho as nossas esperanças.

O conhecimento liberta, o sofrimento nos mobiliza, mas a empatia nos protege. Somos todo e somos um e, exatamente por isso, essa equipe de historiadoras e historiadores que inicia agora seus trabalhos na direção da ANPUH afiança: estamos em combate!

Muito obrigada!

Recife 18/07/2019

* Márcia Maria Menendes Motta é presidente da Anpuh Nacional, professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), e tem trabalhado com ênfase nos estudos de História Agrária – conflito de terra, apropriação territorial, direito agrário e movimentos rurais.

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