Esquerda deve se unir já na eleição municipal, alerta Dirceu

O ex-ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, defende uma frente democrática ampla contra o bolsonarismo, tática que, na sua opinião, pode conviver simultaneamente com a formação de uma frente de esquerda voltada a um projeto de reconstrução do país. Para ele, é “importantíssima” a unidade do campo progressista já no segundo turno das eleições municipais em todas as cidades do país e, futuramente, numa disputa nacional. “Tem que fazer a luta pela democracia sim, mas numa frente democrática, pelo impeachment. Qual o problema de ter duas táticas? Existem três, quatro realidades… não adianta brigar com a realidade”, afirmou ao historiador Francisco Teixeira, durante o Soberania em Debate, realizado no dia 2, pelo Movimento SOS Brasil Soberano.

“Temos uma eleição bem difícil pela frente e vamos ter que superá-la”, diz. “Uma derrota agora para as esquerdas vai ser péssimo. Significa que a escolha do Brasil vai ser entre Moro, candidato do PSDB, DEM e MDB, e o candidato do Bolsonarismo. E a esquerda pode não estar no segundo turno. A esquerda também deve ter grandeza e generosidade em cada partido para buscar aliança no segundo turno em todas as cidades do Brasil, e no país também. Para não acontecer o que aconteceu, quando FHC e Ciro se recusaram a fazer campanha para Haddad. Tem gente que já se arrependeu disso.”

Passados os riscos de contágio de Covid-19 e as restrições do distanciamento social, Dirceu espera uma onda de manifestações contra o governo. “Na hora que acabar a pandemia, as classes médias progressistas e conservadoras vão sair na rua contra Bolsonaro — pela política ambiental, contra o negacionismo da ciência, pelo medo de perder a liberdade, contra a destruição da universidade, pela democracia. Talvez não seja nem tanto a classe trabalhadora pelo desemprego, pela perda dos direitos; primeiro [virão] as classes médias. Eles [do governo] sabem disso. É só esperar.”

O presidente é “uma vergonha, um opróbrio mundial”, afirma o ex-ministro, destacando, contudo, que “a luta política é que vai decidir se ele resiste até 2022 ou não, e as contradições, a evolução da crise.” O próprio Centrão, que hoje fecha com o governo, poderia “ser o primeiro a votar com o impeachment”, diz, num contexto em que se acirram crises envolvendo as investigações da “rachadinha”, o assassinato da Marielle, a prisão de Queiroz, assessor de Flávio Bolsonaro. “É um cenário quase inacreditável, às vezes parece que se está vivendo um pesadelo. Mas o Brasil vai superar, não cabe o Brasil nesse projeto do Guedes. O Brasil e o Bolsonaro são incompatíveis, é uma questão de tempo.”

Os desafios da esquerda
Os partidos do campo progressista (PDT, PSB, PCdoB, Psol), frente ao crescimento da extrema direita e à força do Centrão, estariam com “imensas dificuldades, procurando sobreviver”. Um quadro complexo, que o PT, por ser majoritário, na opinião de Dirceu, deve saber conduzir, com “generosidade e grandeza”, assim como os demais integrantes das esquerdas.

Na prática, isso se traduz, diz, “no esforço de manter a unidade no Congresso, na reforma tributária, na votação do plano de emergência na pandemia, trabalhar juntos nas CPIs, no enfrentamento à direita, ao Bolsonaro, nas questões relevantes que surjam”. Bem diferente, por exemplo, do que aconteceu na votação do novo marco legal do saneamento, de base privatista, quando PT e Psol votaram contra, mas que os outros partidos, como o PDT, liberaram as suas bancadas.

A boa notícia, afirma Dirceu, são as muitas lideranças novas no país. Ele cita o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), o dirigente do MTST Guilherme Boulos (Psol), o deputado federal Marcelo Freixo (Psol), Juliano Medeiros (presidente do Psol), Alessandro Molon (PSB), e, do PT, o governador do Ceará, Camilo Santana.
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“Evidente que não há democracia sem devolver os direitos políticos do Lula, é uma meia democracia, uma vergonha essa postura de manter a interdição do Lula, e esses processos precisam ser anulados”, diz. “Mas, de qualquer maneira, mesmo o Lula já falou no Rui Costa [governador da Bahia, do PT] e no Flávio Dino, que são as lideranças novas. E venho tentando manter o diálogo com essas lideranças para ajudar as esquerdas a caminharem juntas no ‘fora Bolsonaro’, que é muito importante, nas questões que defendem a classe trabalhadora no Congresso, nas Assembleias e nas Câmaras, e nas eleições municipais, porque temos uma experiência de governos municipais fantástica – o PT governou centenas de cidades no Brasil.”

Embora o caminho da esquerda seja “difícil, cheio de pedras e armadilhas”, José Dirceu observa que a direita também está dividida. “O bolsonarismo se divide entre militarismo, olavismo e Centrão. Tem a oposição liberal de direita, o partido da mídia, da Rede Globo, que agora é oposição ao autoritarismo e ao obscurantismo do Bolsonaro…” Um contexto que tem o seu aspecto bizarro, como reconhece o ex-ministro: “Durma-se com esse barulho: nós termos que defender a liberdade de imprensa dos monopólios. Não temos? Temos. Porque amanhã são eles, depois somos nós.”

Lembra, nesse sentido, os riscos a que se expunham, na ditadura, os jornalistas de veículos de resistência, como O Pasquim, Movimento, Opinião, como mais um argumento a favor da frente democrática. “Era risco de vida, de perder os bens, ver a família ser perseguida, de o jornalista ser espancado quando saía da redação do jornal, bombas nas bancas… Vamos lembrar porque vejo companheiros dizendo ‘não, democracia só com direitos sociais.’ É verdade, queremos democracia com direitos sociais; mas a liberdade é a coisa mais importante que tem.”

Caravana democrática e ônibus de esquerda
Também em defesa da frente ampla, Dirceu resgata a longa experiência brasileira na formação de frentes, desde a criação da UDN, passando pelo MDB, pela Campanha das Diretas, pelo impeachment de Fernando Collor. Compara a reunião de forças políticas diferentes a uma “caravana”, na qual cada grupo precisa ter seu próprio “ônibus”. “A luta pela democracia é importante, mesmo que dentro da luta haja vários ônibus, dentro dessas caravanas. Alguns até mais radicais, querem a taxação de grandes fortunas, estatização dos bancos, Constituinte, outros, eleições gerais, cassar a chapa… há muitas correntes, como está havendo no Direitos Já [proposta de frente formada por várias correntes ideológicas distintas]. Se você olhar muitos discursos… O FHC está cada dia pior.”

O ex-ministro reconhece, no entanto, que, embora atuem juntas no Congresso e em questões específicas, as esquerdas não estão unidas na proposta da caravana democrática, nem têm acordo sobre a tática a ser adotada para enfrentar o governo Bolsonaro e a bandeira do impeachment. “Há uma bandeira democrática, de garantia da Constituição; há uma luta pelo ‘fora Bolsonaro’ e pelo impeachment, e o PT tem que conformar e formar o mais amplo possível. O que eu defendo é que a bandeira do ‘fora Bolsonaro’ seja para todos que a aceitem. Independente do passado.” José Dirceu cita até o pai, que, filiado à UDN, mesmo tendo apoiado o golpe de 64, rompeu com os militares quando houve o Ato Institucional nº 2 e tornou-se um “radical contra a ditadura”.

Num paralelo, Dirceu acredita que as críticas e o combate aos grupos que deram o golpe na presidenta Dilma Rousseff e perseguiram o ex-presidente Lula e o PT não impedem que haja uma composição em defesa de liberdades políticas. “Lógico, temos que cobrar responsabilidade dos que deram o golpe e levaram Lula à prisão num projeto sumário, político, de exceção, uma infâmia; e do que Moro e a Lava Jato fizeram, fora o que ela destruiu de empresa brasileira, o que inviabilizou no papel do Brasil na América do Sul, a exportação de capital e de tecnologia. Principalmente do PSDB, que foi a vanguarda do golpe, e da grande mídia, começando pela Globo.”

Dito isso, ele insiste: “agora, a frente de esquerda tem que se constituir; temos que trabalhar o tempo todo por ela. E ela deve construir uma frente mais ampla, pelo ‘fora Bolsonaro’ e pelo impeachment”. Mas adverte que “aliança é sempre uma unidade de luta”. Na própria Campanha das Diretas, Dirceu lembra que havia uma “luta dura, surda”, entre os autênticos e os moderados do MDB. “Mas a luta pelas Diretas, a luta do ‘Mudanças Já’ do Tancredo Neves, desaguaram na Constituição de 88, que é fundamental do ponto de vista das classes trabalhadoras.”

Para o ex-ministro, neste momento, “se o Bolsonaro é tudo o que a gente disse que ele é – e ele é -, a democracia é a coisa mais importante. Como é que o povo brasileiro alcançou todos os direitos sociais e políticos que tem? Com o voto. Por que queriam acabar com o presidencialismo? Porque o povo elege o Lula duas vezes, a Dilma duas vezes, e ia eleger de novo se o Lula estivesse solto. Essa é a verdade. Ditadura significa que a pessoa sai de casa para fazer uma panfletagem e não sabe se volta vivo ou se vai terminar em uma prisão e ficar cinco anos. Significa que faz uma ‘live’ e todo mundo pode ser preso no dia seguinte e processado pela Lei de Segurança Nacional. Significa que os sindicatos vão ser fechados, que a imprensa vai ser censurada, que não vai haver independência do Poder Judiciário. E o Bolsonaro é um risco real.”

Prioridades na pandemia
O presidente, na avaliação de Dirceu, já mereceria ser impedido pela forma como está conduzindo a crise da Covid-19, entre outras muitas razões. “Agora temos que cuidar da saúde do trabalhador, do emprego e da renda, da solidariedade. Essa é a tarefa principal dos sindicatos dos partidos políticos: defender na Câmara, na Assembleia, no Congresso, as medidas para proteger pequenas e médias empresas, a renda dos que não trabalham, e pensar como retomar o crescimento.”

A política de Bolsonaro de desmontar o distanciamento social, segundo o ex-ministro, vai retardar a retomada econômica em três ou até seis meses, com um custo bem maior do que poderia ser. “É uma tragédia total, um insensibilidade total. O governo é genocida, porque ele planejou a contaminação e calculou que vão morrer 250 mil, 300 mil, e ponto final. Como se fosse uma guerra. Bolsonaro disse isso várias vezes. Sendo evidente que teríamos como evitar 80% dessas mortes, se o país tivesse adotado uma política tanto de saúde quanto de renda e isolamento, que todo o mundo adotou e evitou o pior. É uma tragédia o que está acontecendo, e vai ter um custo no Brasil e no mundo, nas relações políticas, comerciais, de investimento, na imagem do país, no turismo, altíssimo.”

Retomada econômica e reforma política
Na perspectiva de construir um projeto nacional à esquerda, Dirceu analisa o que chama de “reprimarização” da economia e as áreas relevantes para um novo arranque industrial. “Porque não haverá reindustrialização pela substituição de importações”, afirma. “A industrialização é a revolução científico-técnica, os novos materiais, a biotecnologia, a cibernética, 5G, tecnologia espacial, o 3D, a indústria de fármacos, a química fina.”

Globalmente, sua expectativa é a de que o mundo seja redividido, resultado de um choque na disputa dentro do mundo capitalista, entre os países da Europa, os EUA, Japão, com mudanças inclusive no domínio do capital financeiro, que estaria se tornando uma barreira ao desenvolvimento do próprio capitalismo e das forças produtivas.

Na tendência a uma “desglobalização”, Dirceu considera a possibilidade de os países buscarem um Estado de bem-estar social, com educação, saúde, cuidados com idosos, lazer, cultura, uma revolução tecnológica capaz de gerar outro tipo de sociedade. “Mas com o capital financeiro é impossível”, diz o ex-ministro. “Ele está açambarcando uma parcela da renda nacional que poderia ir para uma revolução social ou tecnológica. Aqui no Brasil, principalmente, o maior entrave ao desenvolvimento social econômico é a concentração de renda via impostos, juros e o domínio político da informação e do poder político.”

O que nos leva à segunda bandeira relevante para o país, na sua avaliação: a reforma política. Para ele, o voto uninominal “é um escândalo”, e deveria ser substituído pelo voto distrital (o candidato é eleito por votos restritos a uma determinada região geográfica); distrital misto (o eleitor vota em dois candidatos: no representante do distrito e na lista indicada pelo partido) e em lista (o eleitor só pode votar na lista definida pelo partido). Com o novo modelo, o ex-ministro calcula uma redução de 80 a 90% no custo da campanha eleitoral.

Defende também nova regra de proporcionalidade. “Se o número de deputados fosse proporcional ao eleitorado de cada estado, as esquerdas e aliados teriam chegariam com 230, 240 deputados… Chegamos com 150, 160. A diferença é muito grande. Você chegar precisando de sete votos para fazer maioria simples e 58, 60, para reforma constitucional é completamente diferente. (…) Vocês perceberam que nunca mais falaram em reforma política? A mídia, Globo, Folha de S. Paulo, Bandeirantes… nem os partidos, nem os procuradores da Lava Jato, nem o Judiciário, nem o ministro [Luís Roberto] Barroso, arauto do Iluminismo, da reforma das instituições brasileiras… “

No segundo volume de suas memórias, que o ex-ministro já está escrevendo, vai contar o esforço feito por Márcio Thomaz Bastos e Tarso Genro, ambos ministros da Justiça no governo Lula, logo depois das acusações de caixa 2 ao PT,  para costurar uma reforma política com as várias entidades — ABI, OAB –, partidos políticos, centrais sindicais. Sem sucesso. A própria presidenta Dilma, ao propor uma Constituinte exclusiva para isso, foi chamada de “ditadora”, lembra Dirceu. “Não querem reforma política, não querem nada. Querem continuar no poder.”

> O Soberania em Debate faz parte da agenda do Movimento SOS Brasil Soberano, que é uma realização do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ). Por meio de eventos, debates e produção de conteúdos temáticos, a iniciativa tem o objetivo de recolher subsídios para colaborar na construção de um projeto de desenvolvimento nacional com empregos, soberania e justiça social.

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