É o movimento social de base que não deixa o país acabar


Organizados e engajados num trabalho cotidiano de mobilização, associações comunitárias e polos de cultura popular têm desenvolvido um trabalho contínuo de resistência aos retrocessos do governo, e são a base para a articulação que poderá resgatar o país do retrocesso. A avaliação é da historiadora Cláudia Rose, coordenadora do Museu da Maré e co-fundadora do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), que destaca a relevância de articular movimentos sociais e forças políticas para as eleições de 2022.

“Acredito que ainda há esperança”, diz. “E a gente tem que buscar realmente um pacto de reconstrução do país, com correntes políticas que possam contribuir e ser aliadas de fato. Mas a base está aí, na resistência do trabalho diário, e que impediu o Brasil de acabar.” Ela participou do Soberania em Debate com o tema “A resistência cultural nas comunidades”, realizado no dia 24 de setembro, pelo Movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ).

Segundo Claudia Rose, grande exemplo dessa capacidade de mobilização nas chamadas periferias foi a agilidade com que as comunidades reagiram para proteger a população de seus territórios dos impactos da pandemia de covid-19, em meio à indiferença e à ausência do poder público. “Imediatamente, movimentos e coletivos se organizaram para distribuir cestas básicas, kits de limpeza e higiene, EPIs (equipamentos de proteção individual). Isso aconteceu tão rapidamente, porque essas pessoas já estavam e estão organizadas no seu dia a dia.”

Ela observa que a mobilização se repetiu em praticamente todas as regiões do  Rio de Janeiro – Zona Oeste, Baixada Fluminense e em muitas favelas. “Isso mostra que existe uma base que está muito resistente e mantendo a utopia e a esperança pulsando. Então, já está sendo construído [um projeto de reconstrução do Brasil]. Basta agora a gente ter mais espaço na política, e isso vai acontecer, com certeza. Vamos torcer: 2022 está chegando e a gente está com muitas expectativas de conseguir virar o jogo.”

A tarefa, contudo, não será fácil, reconhece a historiadora. “Esse pessoal — fascistas, nazistas, neoliberais — está destruindo o país. É a elite do atraso, que entrega o país, porque nunca se sentiu pertencente a ele; que se sentiu europeia ou o estadunidense. Uma elite que está estudando fora e daqui só tira. É uma colônia de exploração para uma elite que suporta estar aqui; suporta, mas que tem como referência outros lugares – Miami, Europa. Infelizmente mais Miami. Então essa elite, que hoje passa vergonha internacionalmente e que quer colocar a sujeira para debaixo do tapete, criar uma terceira via, com essa elite é difícil refazer e reconstruir um país. Mas isso já está acontecendo.”

Se fosse estabelecer um marco, Cláudia Rose acredita que desde o golpe de 2016, que afastou a ex-presidenta Dilma Rousseff, “os coletivos e movimentos sociais estão articulados e lutando para não deixar que o país seja totalmente entregue”. Ressalta  que é “luta diária”, como observa no seu próprio trabalho feito no Museu da Maré e na escola de jovens e adultos (Ceja), onde também dá aulas de História. “São pessoas muito engajadas com a transformação, fazendo o dia a dia. Isso não parou de acontecer, só que talvez ainda esteja difícil de perceber. Mas eu tenho certeza de que, se não fosse isso, a gente já não teria o Brasil e já não teria mais solução.”

Vácuo político e fé
Apesar de esforço permanente de resistência no campo progressista, a coordenadora do Museu da Maré reconhece que houve um vácuo no trabalho de base, deixado pelas esquerdas, e ocupado pelas forças políticas associadas às igrejas. “Conversamos muito sobre a dificuldade de as pessoas terem acesso a uma formação política – não partidária, mas política. A própria esquerda, em algum momento, se afastou. Não quero generalizar, quando falo ‘a esquerda’, porque nós somos esquerda e estamos na comunidade. Mas o trabalho de base, político, no dia a dia, aquilo que a gente chama de trabalho de formiguinha e que muitas vezes pode nos dar a falsa impressão de que não dá certo, esse trabalho é fundamental. E, em muitos territórios, a gente viu isso ser substituído por uma visão religiosa de direita não liberal, que utiliza a fé das pessoas. Eu não diria que usa apenas com uma intenção financeira, mas principalmente com um discurso que aliena, mas que tem poder e importância, porque ocupa os vazios. Não há espaço para a ausência da participação e da organização popular. Se esses espaços ficam vazios, sempre tem alguém ou alguma coisa que vai ocupar essa função.”

Em um quadro de precarização grande da saúde pública, explica Cláudia Rose, as pessoas com demandas urgentes, que estão sentindo dor, por exemplo, e que não tem o atendimento devido, podem encontrar na igreja o que parece momentaneamente mostrar uma saída. “E a pessoa vai dizer que foi ali, naquele lugar, que encontrou a solução para aquele problema de saúde, assim como para um problema financeiro, ou amoroso, ou de saúde mental. Essas ausências são ocupadas por esse discurso, que vai mexer com a pessoa, responder às suas angústias. Fica cada vez mais difícil, diante disso, organizar a população numa outra perspectiva, mais de conscientização, mais crítica e à esquerda dessa realidade.”

Nesse sentido, a coordenadora do Museu da Maré defende uma reflexão e uma autocrítica das forças progressistas para entender onde foram deixados ‘vazios’. Além do engajamento pessoal, ela afirma que é necessário estar comprometido num movimento coletivo. “É uma força que a gente sabe que pode demorar, e com certeza demora fazer essas mudanças, mas, por isso mesmo, a gente tem que continuar e começar onde não tem, e o mais rápido possível, porque é um processo lento e demorado. “

Cultura, educação e soberania popular
Claudia Rose defende, ainda, a retomada de um programa de cultura popular, com fundamentos e valores na linha do Cultura Viva, desenvolvido na gestão do então ministro Gilberto Gil, titular da pasta da Cultura no governo Lula. “A gente não pode abrir mão de uma cultura comprometida com a cultura popular”, alerta. Dentro do movimento do Cultura Viva e dos Pontos de Cultura, e também dentro do Instituto Brasileiro de Museus, no campo da museologia dinâmica e popular, ela lembra que foi criado um outro ramo de ações —  os Pontos de Memória, com projetos culturais  voltados à preservação da memória popular.

“A gente viu o quanto isso fortaleceu as comunidades, o quanto isso levou à cena pública pessoas que antes eram reconhecidas no seu território, respeitadas pelo trabalho que desenvolviam ali, mas que não eram vistas e respeitadas como pessoas que estavam contribuindo com a cultura do Brasil, e não apenas com a cultura do seu território”, explica. “As pessoas, em primeiro lugar, são dali, de onde nasceram, onde elas trabalham, e é a sua raiz, o seu chão. Só que elas podem ser projetadas e se projetar para além desse território, como cidadãos do mundo, e é isso que nós somos. A gente não está restrita no território, mas a base é o território e uma cultura.”

A importância da política assertiva de Gil, avalia Cláudia Rose, “foi valorizar essa cultura dos territórios, para que fosse vista e valorizada por todos, como parte fundamental e indispensável para a diversidade da cultura brasileira”. É uma visão antigueto, diz a professora. “Não é porque o Museu da Maré está dentro da Maré que ele é um museu de gueto; não, é um museu para o Brasil e para o mundo.”

Da mesma forma, a educação paulofreiriana, proposta pela professora de HIstória Cláudia Rose não se restringe à cultura escolar, mas envolve uma intensa agenda cultural. “A cultura e a educação estão juntas e são importantes na formação cidadã para a soberania, tanto para a soberania do indivíduo, quanto para soberania da comunidade e da nação. É preciso investir e fortalecer essas essas duas dimensões humanas, educação e cultura”, afirma. “Não existe um povo soberano que não valorize sua cultura e a educação. O ataque [do governo] à educação, cultura, ciência não é à toa, porque não se quer um povo soberano.”

> O Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ).

> Assista na íntegra ao Soberania em Debate com a coordenadora do Museu da Maré,  Cláudia Rose, formada em História pela UERJ, entrevistada pelo advogado e cientista político Jorge Folena e pela jornalista Beth Costa, coordenadores do SOS Brasil Soberano

 

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