Povo na rua e renovação no Legislativo, defende Dilma

O Brasil recuou 15 anos em cinco, na área social, avalia a ex-presidenta Dilma Rousseff. A gestão Bolsonaro “é terrível”, diz. Inclui a volta da fome e do empobrecimento das classes médias baixas, o esfacelamento da Petrobras, as manobras para privatizar e desnacionalizar a Eletrobras e os Correios, a falta de investimento na educação, os ataques à Amazônia e aos demais biomas do país, além da militarização da máquina pública e sua captura pela corrupção, alvo das investigações da CPI da covid. Um conjunto de ações integradas que visam destruir os ativos, os recursos, a liberdade e a soberania nacional, alerta a ex-presidenta. Para vencer o desastre, ela defende fortalecer o movimento nas ruas, esclarecer a população e enfatizar a importância da renovação parlamentar.

“Importante destacar que, em março de 2019, em uma fala do presidente eleito Jair Bolsonaro, em Washington (EUA), ele disse o seguinte: ‘não vim para construir nem reconstruir; eu vim para destruir. E se alguma coisa eu fizer que der certo, é justamente destruir tudo que eles fizeram.’ Eles somos nós. E nesse sentido ele cumpriu”, lembra Dilma, que participou do Soberania em Debate, promovido pelo Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), no dia 16.

O primeiro dado dramático do projeto bolsonarista, destaca a ex-presidente, é a volta da fome e do avanço da insegurança alimentar e nutricional no país, conforme pesquisa da VigiSan (em  http://olheparaafome.com.br/  e https://www.oxfam.org.br/especiais/olhe-para-a-fome/). O levantamento mostra que, dos 211 milhões de brasileiros, pelo menos 116 milhões convivem com alguma insegurança alimentar. Em seu aspecto mais grave, a fome já atinge cerca de 19 milhões de brasileiros. A ex-presidente compara com o marco de 2014, quando o Brasil, a Índia e a Indonésia deixavam o mapa da fome, de acordo com a medição feita pela ONU.

Para piorar, Dilma aponta a desocupação e o desemprego em nível recorde, somados à precarização do trabalho gerada pela reforma trabalhista feita no governo Temer e agravada por Bolsonaro, mesmo antes da crise sanitária. “É importante registrar isso, que a pandemia aprofunda tendências já existentes. Além da pandemia, você tem um quadro extremamente grave de trabalho precário, intermitente, fruto da reforma trabalhista. Tem a inviabilidade de os trabalhadores por conta própria subsistirem do que ganham e, além disso, uma falência dos pequenos negócios.”

Ou seja, há “um processo de empobrecimento generalizado na sociedade brasileira”, afirma. Não só daqueles que tinham superado a pobreza e que agora regressam a ela, mas também das classes médias nos níveis baixos de renda. “É um caos social, que se articula nessa pandemia, que a gente pensava que estava centrada só no negacionismo, mas está centrada também na corrupção. Porque essa história das vacinas está muito mal contada. Por que fazer uma gestão desse nível em relação à Covaxin [vacina indiana sem aprovação dos órgãos reguladores], usando intermediário, se batia na porta do Ministério, todo santo dia, a Pfizer, que é um grande laboratório e com uma vacina incontroversa?”

A ex-presidenta ressalta que o Brasil já poderia ter iniciado a vacinação em dezembro, o que teria evitado milhares de mortes. “Uma das coisas mais graves que nós perdemos: nós perdemos pessoas, brasileiros e brasileiras. E isso impactou nas famílias, que tiveram essas pessoas perdidas para o vírus, por conta do negacionismo do governo, incapaz de gerir a crise.”

O esquartejamento da Petrobras
No balanço de perdas, Dilma registra ataques à soberania nacional em várias frentes. “Primeiro, quero destacar a questão das empresas públicas, porque a privatização não é privatização – é desnacionalização, entregar as nossas riquezas, construídas ao longo de anos, para investidores internacionais, geralmente fundos especulativos ou fundos financeiros. A privatização é isso.”

Sem alarde, por meio de operações aparentemente dispersas, é o que o governo vem fazendo com a Petrobras – “um esquartejamento”, nas palavras da ex-presidenta. “Não vendem a Petrobras de cara, porque o impacto seria enorme. Então o que fazem? Estão transformando a Petrobras em uma empresa média, que vai se dedicar pura e simplesmente à extração de petróleo. É um escândalo o que estão fazendo com a Petrobras. Coisas absurdas, como: vende-se toda a logística da Petrobras; depois, paga-se pela logística, pelo que vendeu. Toda a estrutura será paga em dois anos. É um escândalo a história da Petrobras.”

Maior empresa de petróleo da América Latina, uma das maiores do mundo, a Petrobras liderou um projeto integrado na área de energia, com uma capacidade imensa de produzir petróleo e garantir abastecimento para o Brasil, mas também gerando ciência, tecnologia e inovação. “A cadeia do petróleo sempre foi crucial para o Brasil adentrar uma economia de agregação de valor”, argumenta Dilma. As atividades da empresa se refletiam na área de petroquímicos, na agregação de valor produzindo combustível, diz, até na indústria de móveis. Basta pensar em tudo que é necessário para colocar de pé uma plataforma de petróleo. A Petrobras tinha, ainda, uma capacidade enorme de interação com as universidades, na produção de conhecimento.

“Não é trivial explorar petróleo em águas profundas, em uma temperatura geralmente elevada, em alta pressão. A Petrobras gerou tecnologia no nosso Brasil, com efeitos importantíssimos nessa cadeia. Foi responsável pelo ressurgimento da indústria naval, através da política de conteúdo nacional. Mas tudo isso foi destruído.” No caso do setor naval, Dilma calcula que chegamos a ter 100 mil empregos. “Uma das coisas mais tristes de ver é esse processo, grave, porque fere o desenvolvimento econômico e a criação de emprego de qualidade; a capacidade dela de abrir o leque.”

Eletrobras e Correios
A inserção da Eletrobras no rol das empresas privatizáveis é outra ação “gravíssima” contra o país, afirma a ex-presidenta. “Pode ter certeza de que não há capital nacional capaz de comprar a Eletrobras; será também objeto da desnacionalização”, diz Dilma, que alerta para a perda da segurança elétrica, impactando a vida de todos. “Você vai ter tarifas elevadas e não vai ter garantia de fornecimento”, avisa a ex-presidente. “Vamos lembrar o que aconteceu em 2001: desabastecimento e apagão, por falta de planejamento a médio e longo prazo, e pelo não investimento. Porque o setor privado só investe quando o lucro é certíssimo. O setor público investe para garantir a estabilidade do abastecimento e a modicidade tarifária – que são tarifas as mais baixas possíveis.”

Nesse sentido, a lei que autorizou a privatização da Eletrobras tornou o impacto da privatização ainda pior com o incentivo às termelétricas, nos chamados jabutis – emendas que atenderam interesses de parlamentares ou bancadas específicas, para facilitar a aprovação da medida no Congresso. “É aquele negócio: jabuti não sobe em árvore; se está na árvore, ou é enchente ou mão de gente. A mão de gente [são] os interesses privados que cercam o setor elétrico”, denuncia Dilma. “Disseram o seguinte: as térmicas não pararão de funcionar. Isso rompe com toda a estrutura do setor elétrico, em que você manda funcionar a unidade que tem menor custo, geralmente a que usa a água como combustível, porque a água é gratuita. As usinas, no setor elétrico, funcionam assim: primeiro as mais baratas, à água; e depois as mais caras, que foram construídas e pagas para funcionar só quando precisa. Agora, no Brasil, inverteram, vão funcionar sempre. À medida que vão funcionar sempre, vão elevar o preço da energia. Tudo isso em detrimento nosso, da indústria do Brasil, que precisa de energia em todos os setores.”

No caso dos Correios, que o governo Bolsonaro também quer privatizar, Dilma observa que se trata de uma imensa plataforma de logística, que ganha força estratégica cada vez maior com a digitalização da economia. “O que é a Amazon? O que é o grupo chinês Alibaba? São grupos que utilizam a logística”, compara. “Você compra pela internet, e é fundamental que entreguem na sua casa. A estrutura que faz isso tem um valor absurdo. Essa estrutura nos leva para o mundo digital, das plataformas. O Brasil, que poderia ter uma plataforma de logística, está entregando essa nossa plataforma, os Correios. Um absurdo ser privatizada. Podem ter certeza que as grandes empresas internacionais que utilizam plataformas vão todas estar de olho. É mais uma desnacionalização.”

Meio ambiente, educação e soberania
Do balanço da destruição promovida pelo bolsonarismo não escapam, ainda, o meio ambiente, a educação, e o próprio Estado – cuja militarização crescente ameaça a democracia e o equilíbrio entre os poderes.

“Não vamos esquecer que também fere a soberania nacional desmatar a Amazônia, os biomas”, afirma Dilma. “Deixar a boiada passar é inadmissível. O que eles fizeram em matéria de desmatamento e de destruição da fiscalização em todos os biomas, no pantanal… é uma devastação. Terá que se recompor toda a questão do meio ambiente no Brasil. Até porque já está claro que não vamos cumprir nenhuma das metas [de combate ao desmatamento] estabelecidas.”

A ex-presidenta ressalta, ainda, que, ao minar também o acesso à educação, o governo está atacando, simultaneamente, o meio de combater a pobreza e a saída para promover desenvolvimento. “Sem educação, não superaremos a pobreza. Ao mesmo tempo, a educação é base da riqueza. Só seremos desenvolvidos com educação de qualidade, que é a base da ciência, da inovação, da tecnologia. Se a gente quiser fazer uma corrida para nos desenvolver, sem educação, não existe hipótese disso ocorrer. Com o teto dos gastos, estamos vendo um sucateamento da educação no Brasil. Teve um fôlego, que foi o Fundeb, aprovado contra a vontade do governo Bolsonaro, mas é sistemática a deterioração dos processos educacionais.”

Ao lado dos ataques estruturais aos recursos do país, Dilma aponta as “incursões antidemocráticas” do governo Bolsonaro. Entre elas, destaca “a grande ameaça sobre a democracia” que foi a prisão do ex-presidente Lula. “Feriu-se, ali, a questão da justiça. E um sistema que, além da desigualdade social, tem uma desigualdade jurídica brutal, não pode ficar em pé. É inadmissível. E não é só que é autoritário, mas corrupto. Começa a corroer as instituições por dentro.”

Como organizar a resistência
Na avaliação de Dilma, só será possível superar “o país destruído, a terra arrasada”, para reconstruí-lo em outro patamar, “em um processo de inclusão democrático, popular e soberano, se o povo nas ruas se manifestar”. Segundo a ex-presidente, já se pode ver a reação acontecer na América Latina.

“Ao superar essa pandemia, temos que nos organizar, reivindicar, ir para as ruas, organizar o país para essa nova etapa”, diz. Dilma cita um provérbio africano, segundo o qual “enquanto a história das caçadas for contada pelos caçadores, os leões não têm vez.” Para a ex-presidenta, a ótica dos leões, das leoas, dos leões negros, vai ser construída nas ruas e elegendo parlamentares progressistas. “Neste momento, no Brasil, não tem outro caminho: é importantíssimo que se continue lutando no parlamento, em todas as câmaras, assembleias de todo o Brasil. Mas a fala das ruas é a fala que estrutura a saída.”

Ela observa que o PT nunca somou mais de cem parlamentares no Congresso, campo que sofreu uma guinada ainda mais à direita, após a dissolução do centro democrático formado no final da ditadura civil-militar. “Temos que mudar isso e reconstruir o país”, diz.

Uma nova formação no Legislativo é fundamental, na opinião de Dilma, assim como a consciência das principais raízes retrógradas das elites brasileiras: o integralismo, o intervencionismo militar e, articulando essas influências, a escravidão. “Uma parte da violência incontida que existe neste país, principalmente em relação aos mais pobres, aos chamados pretos, pardos, e às mulheres, tem origem na escravidão. Ninguém fica 300 anos na escravidão sem produzir efeitos no povo e na elite escravocrata, que despreza e olha o povo como um não sujeito. Isso é o grave no Brasil. A elite jamais se interessou em dar educação. Essa questão do não sujeito, que é típica da escravidão, contamina todas as relações sociais. Quando você supera o Bolsonaro, não extingue as raízes que o levaram ao poder. E é uma coisa para a qual devemos alertar. Porque este país precisa ter valores: os da cooperação, da solidariedade, do respeito ao outro, de respeito à diversidade. Ser capaz de discutir, sem achar que o outro é inimigo.”

Com uma nova correlação de forças, Dilma é integralmente a favor da proposta de um referendo revogatório. “Temos que falar sobre o referendo revogatório antes das condições para ele existir. Porque temos que deixar claro, para quem está comprando, que vai haver um referendo revogatório.”

Leia mais aqui: http://sosbrasilsoberano.org.br/semiparlamentarismo-e-mais-um-golpe-contra-lula-diz-dilma/

Assista na íntegra o Soberania em Debate com a ex-presidente Dilma Rousseff, entrevistada pelo advogado e cientista político Jorge Folena e pela jornalista Beth Costa, coordenadores do SOS Brasil Soberano.

> O Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ).

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