“Periquitos!” Tribunal militar condena civis usando a GLO

Exército Brasileiro homenageou os soldados mortos durante a Intervenção Federal no Rio de Janeiro. (RJ, setembro de 2018) – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Acusações de desacato, desobediência, resistência à revista, durante a intervenção militar no Rio de Janeiro, são tratadas como ataques à instituição das Forças Armadas.

Jorge Folena*.

O Superior Tribunal Militar (STM) é um tribunal de revisão das decisões proferidas pela primeira instância da Justiça Militar; é um órgão composto por 15 julgadores, sendo 10 militares (4 generais do Exército, 3 almirantes da Marinha e 3 brigadeiros da Aeronáutica) e 5 civis, com formação jurídica (3 oriundos da advocacia, 1 da magistratura militar e 1 da procuradoria de justiça militar).

De 2014 a 2019, há diversos julgamentos de recursos no STM [2], em que civis foram condenados por desobediência e/ou desacato, por terem se insurgido contra a autuação por militares das Forças Armadas no policiamento ostensivo, em comunidades de favelas do Rio de Janeiro, em decorrência de Operação de Garantia da Lei e da Ordem.

O que chama a atenção nesses julgamentos é a forma como a “instituição militar” das Forças Armadas tenta se impor sobre o poder civil, de modo a justificar o processamento e o julgamento pela Justiça Militar das pessoas que se rebelaram, a exemplo do que ocorreu em diversas passagens da História brasileira, em que essa justiça foi empregada para perseguir cidadãos por suas posições políticas. Nesta nova fase, continua sendo utilizada contra negros, mestiços e pobres nas favelas do Rio de Janeiro, o  que é aceito com passividade por parte dos oficiais militares, que passaram a atuar na ordem interna como aparelho repressivo contra os indivíduos de agora, muitos deles descendentes dos escravos de outrora.

Assim, a perseguição realizada no passado pelos capitães do mato contra escravos rebelados se mantém presente. Nestes casos, sendo utilizado como argumento para justificar as prisões o potencial de ofensa à instituição militar, supostamente violentada pelos civis insurgentes.

No julgamento do processo nº7000050-50.2019.17.00.0000, o acusado respondeu à ação penal porque, em 20/08/2016, não reconheceu os militares, em patrulhamento, como força policial:

“O denunciado não obedeceu à ordem, alegando que não acompanharia os militares por não serem eles polícia.

Diante da recusa, (…) o conduziu até a faixa de areia e tentou iniciar a revista pessoal, momento em que o denunciado se alterou, insistindo que não aceitava ser revistado.

Em razão do comportamento do denunciado, (…) lhe determinou que se colocasse de joelho para a realização da revista, tendo este novamente recusado.”

No julgamento acima, não foi considerada nenhuma possibilidade de humilhação do denunciado, que foi colocado de joelhos para ser revistado, mas tão somente as ofensas que foram eventualmente disparadas contra o ofendido e a “função militar”, num nítido comportamento de proteção da instituição e do corpo militar.

O STM entendeu, no julgamento do processo nº0170-43.2014.7.01.0201, que:

“pratica os crimes de resistência mediante ameaça ou violência e de desacato a militar, o civil que, ao ser abordado por militares da ‘Força de Pacificação’, no Rio de Janeiro, se opõe à execução de ato legal ao receber ordem para ser revistado, resiste à prisão, desfere palavras de baixo calão aos integrantes da corporação, bem como empurra e ameaça militar no cumprimento de sua missão. (…) Tal delito atinge diretamente a autoridade da administração militar.”

Pelas decisões acima, a ofensa proferida pelo civil que, por qualquer comportamento, questiona a ação meramente de polícia da força militar, é direcionada contra a ordem “administrativa militar”. Ou seja, a ofensa é contra a instituição militar, que não admite ser questionada, o que revela um traço de autoritarismo e suposta superioridade sobre a sociedade civil.

O STM, no processo nº142-75.2014.01.7.0201/RJ, condenou o acusado sob o argumento de que “comete o crime de desacato o réu que, de maneira livre e consciente, desrespeita militares que faziam ronda, chamando-os de ‘periquitos’ e cospe por duas vezes nos pés do Ofendido”.

O que se pode constatar é que o emprego de forças militares, em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), encontra forte resistência no meio da população pobre, negra, mestiça e marginalizada das comunidades faveladas, que não encontraram nas Forças Armas qualquer amparo de proteção, mas tão somente mais repressão.

Portanto, o STM construiu a sua jurisprudência com condenações por desacato e desobediência, aplicadas contra os moradores de comunidades e favelas, para assegurar a simbologia de uma imaginada superioridade da instituição militar sobre a sociedade civil, como tentativa de manter uma indevida “tutela militar” e, assim, justificar a atuação das Forças Militares diante da sociedade, mesmo que seja como força de repressão e não de garantia da soberania.

[1]Advogado; doutor em ciência política, com pós-doutorado, mestre direito; membro e vice-presidente da Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros.

[2]Processos 0079-37.2011.7.01.0201, 0264-88.2014.7.01.0201, 0170-43.2014.7.01.0201, 0229-31.2014.7.01.0201, 0142-75.2014.7.01.0201, 0229-31.2014.7.01.0201, 0193-37.2014.7.01.0201, 0086-56.2015.7.01.0201, 0108-75.2015.7.01.0201.

* Jorge Folena é advogado e cientista político. Integra a equipe de coordenação do Movimento SOS Brasil Soberano.

 

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