Para economista, Brasil vive um tipo de “invasões bárbaras”


“Hoje, a missão do Brasil não é colocar o homem na lua; a missão do Brasil é colocar um prato de comida na frente de cada cidadão brasileiro, é garantir moradia digna, educação, acesso à saúde, saneamento, segurança pública, cultura e transporte público de qualidade”, afirma o economista Guilherme Santos Mello, professor do Instituto de Economia da Unicamp e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura do IE/Unicamp.

Mello participou do Soberania em Debate no dia 24 de agosto, promovido pelo SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ). Ele admite que há um longo caminho a percorrer, mas ele tem esperança, e lembra que tratar desse tema é pensar em profundidade na soberania do país. “O que é um país soberano?”, questiona. “É um país que dispõe de autonomia para decidir a sua forma de organização política e as políticas de desenvolvimento que adota”. Segundo ele, “precisamos saber que país queremos ser – com isso, será possível planejar a reconstrução e retomar o desenvolvimento.”

Segundo o economista, a rota para a autonomia plena foi bruscamente interrompida a partir de 2014. A presidenta Dilma Rousseff é reeleita e seu adversário no segundo turno, Aécio Neves (PSDB-SP), rejeita o resultado, dando início a uma sequência de pressões, que culminaram no golpe do impeachment, e na posse do vice Michel Temer (PMDB-SP), e, em 2018, a eleição de Jair Bolsonaro. Em pouco tempo, o Brasil passou do desenvolvimento inclusivo ao que Mello chama de “invasões bárbaras”:

“Os bárbaros quebravam tudo, para você não poder reconstruir, não conseguir voltar atrás”, explica. “É um pouco isso que a gente vem presenciando nos últimos anos, seja com essa fome por vender o patrimônio público e destruir as instituições públicas, seja pela adoção de regras fiscais ainda mais malucas e completamente fora da realidade”.

Na prática, o Brasil teria voltado a um estágio de “mais-valia absoluta”, e que, apesar de causar estragos irreparáveis, Mello acredita que possa levar a um desmoronamento total do próprio governo Bolsonaro

“Alguém poderia dizer que a burguesia brasileira desistiu de ganhar competitividade e extrair aquilo que chamamos de mais-valia relativa, ou seja, o lucro que você tem ao produzir inovações, ao melhorar as técnicas de produção”, diz. “Os países desenvolvidos fazem isso. Nós voltamos para o reino da mais-valia absoluta, que é extrair mais valores e mais lucro por meio da exploração mais brutal do trabalho, do aumento da jornada e da redução do salário e dos direitos. Esse desmonte é um projeto de um grupo da burguesia, que inclui setores do mercado financeiro, que enxergaram como mais rentável a estratégia neocolonial. O problema é que isso não se sustenta ao longo do tempo. O tamanho do desemprego, da devastação ambiental, da pobreza, da fome, começam a gerar incômodos”.

Esse desgaste não atinge apenas a população que luta para sobreviver. Se os grupos mais devastadores — garimpeiros, madeireiros, grileiros — seguem com Bolsonaro, uma parte da indústria já observa que, com a atual situação, é impossível se manter de pé. “O Estado vai ter que ser capacitado para promover um projeto que integre a inclusão social com sustentabilidade ambiental. E fazer isso juntamente com uma classe empresarial que esteja disposta a reconstruir o país e não a colocar fogo na floresta”, conclui.

Histórico econômico
O professor da Unicamp lembra que até 1930 o país tinha um Estado enfraquecido e uma economia basicamente agrária-exportadora, com uma lógica social ainda das aristocracias rurais. O governo Vargas iniciou a industrialização e a urbanização. O operariado e a classe média urbana começam a ser atores importantes. A transformação do Estado ganha mais força a partir da década de 1950, em especial no governo JK, época do Plano de Metas e de grandes obras de infraestrutura, e também da formatação de uma estrutura cultural, com o surgimento, por exemplo, do Cinema Novo e da Bossa Nova.

“O Tom Jobim falava que a gente tinha que inventar o Brasil; o Estado teve que inventar um país novo, que era bem diferente daquele de antes de 1930”, diz. “Só que, em 1964, você tem uma ruptura com essa construção por causa do golpe militar”.

Segundo Mello, o golpe militar não tinha a intenção de desmontar esse modelo de Estado desenvolvimentista. Pelo contrário: os militares, em especial a partir de 1967 e no período do chamado milagre econômico, “usaram e abusaram” do discurso desenvolvimentista. Mas sem nenhuma inclusão social.

“O golpe promove um desenvolvimentismo excludente, em que o trabalhador não tinha vez, não tinha voz”, destaca o economista. “A definição política do país era toda do regime militar. Os salários foram esmagados quando esmagaram os sindicatos”.

Nos anos 1980, com a crise da dívida externa e os aumentos dos juros nos Estados Unidos e do preço do petróleo, foi preciso abandonar a estratégia. Após intensa disputa política, em 1988, Mello observa que o campo progressista conseguiu incluir na Constituição metas para a inclusão social, com a construção do Sistema Único de Saúde, de um sistema de educação pública e de uma seguridade social para todos – já fraturada, em alguma medida, pela Reforma da Previdência, na gestão Bolsonaro. Nos anos 1990, os governos neoliberais de Fernando Collor e Fernando Henrique tentaram criar mecanismos para limitar as demandas sociais. Por fim, o país entrou no ciclo dos governos progressistas do PT e alçou o voo da soberania, que se espera retomar.

> O Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ).

> Assista na íntegra ao Soberania em Debate com o economista Guilherme Mello, entrevistado pelo advogado e cientista político Jorge Folena e pela jornalista Beth Costa, coordenadora do SOS Brasil Soberano.

 

 

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