A censura e os tempos atuais do Brasil de Crivella e Bolsonaro


Prof. Dr. Pedro Muñoz*

A ordem de Crivella para censurar um livro em quadrinhos, por conter imagens de dois personagens homens se beijando (foto), é abusiva e ilegal. No entanto, fiscais da Prefeitura foram à Bienal do Livro do Rio de Janeiro para “identificar” e “lacrar” livros supostamente “impróprios”. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ) imediatamente manifestou seu “repúdio” e considerou o ato de Crivella “arbitrário”.

Em seguida, a direção da Bienal conseguiu uma liminar junto ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) contra Crivella e a favor do direito dos autores e expositores de comercializar o livro “Vingadores – A cruzada das crianças”. O desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes considerou que a postura da Prefeitura reflete “ofensa à liberdade de expressão constitucionalmente assegurada”. Não faltaram críticas a ele de bolsonaristas da internet. Quando parecia que a justiça tinha sido feita, acordamos com a notícia de que a liminar do desembargador Heleno Nunes foi suspensa pelo presidente do TJ-RJ. Por fim, Gilmar Mendes e Dias Toffoli, ministros do Supremo Tribunal Federal, suspenderam a censura.

O prefeito do Rio de Janeiro tentou se defender nas redes sociais, afirmando que tentava “cumprir a lei e defender a família”. A Prefeitura ainda usou uma fake news para justificar a ação. No Twitter, um dos autores do livro, o desenhista britânico Jim Cheung, mostrou-se surpreso e alegou que o livro é de 2010 e que Crivella está “fora de contato com os tempos atuais”. Afinal, o que são os tempos atuais do Brasil de Crivella, Dória e Bolsonaro?

Desde 2014 o país passou por uma guinada à direita e o populismo de extrema-direita tomou conta de diversas esferas de poder. Atos como o de Crivella se tornaram recorrentes. Em 2018, o Colégio Santo Agostinho, da Zona Sul do Rio Janeiro, suspendeu o uso do livro “Meninos sem pátria” que era considerado “comunista” por pais de alunos. Na semana passada, o Governador João Doria mandou recolher das escolas de São Paulo um material didático que, segundo ele, conteria “ideologia de gênero”. Bolsonaro não faz por menos. Censurou um comercial do Banco do Brasil e a agência brasileira de cinema, a ANCINE. Mostrou desejo por interferir nos conteúdos cobrados no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e quer recontar a história da ditadura militar de 1964-1985/88. Em 2017, o próprio Crivella já havia censurado a exposição “Queermuseu” e nada foi feito pela Justiça contra essa arbitrariedade.

Todos episódios refletem, segundo Manuel Castells, um conjunto de crises no século XXI, sendo a mãe de todas, a crise da democracia liberal. A eleição de Crivella, Dória, Witzel e Bolsonaro fazem parte de uma cadeia de acontecimentos que incluí o Brexit, a eleição de Trump nos EUA, a crise dos partidos na Espanha e o crescimento da AfD na Alemanha. Para Castells, tais acontecimentos estão diretamente conectados com o 11 de Setembro de 2001 (marco da guerra contra o terror), com a crise global de 2008, com o surgimento de novas tecnologias (smartphone e redes sociais) e com uma reação à globalização. Em suma, diz o sociólogo espanhol, o ocidente vive uma crise de representação política e um processo de decadência dos partidos tradicionais. O Brasil de Crivella e Bolsonaro é apenas mais um exemplo disso. Nas palavras da antropóloga e historiadora brasileira Lilia Schwarcz, vivemos nos tempos atuais “democraduras”.

A censura do livro “Vingadores” nos permite observar questões profundas. Concordo com o historiador argentino Frederico Finchelstein, quando afirma em entrevista ao jornal El País que “Bolsonaro é um dos populistas mais próximos do fascismo”. Também concordo com ele, quando diz que “não há fascismo sem ditadura”. Hannah Arendt lembra que a guerra tornou o nazismo abertamente totalitário. Portanto, embora não possamos falar em fascismo sem ditadura e sem a guerra, também não podemos ignorar o colapso moral e humano que testemunhamos nas democraduras dominadas pelo populismo de extrema-direita.

No Brasil, vive-se uma confusão entre o certo e o errado, ou entre o legal e o ilegal desde 2015. Ordens ilegais são cumpridas, já as legais, contudo, são desobedecidas, a partir de um novo padrão de moralidade lava-jatista. Afinal, qual lei Crivella estava cumprindo quando buscava supostamente defender a família? Deve-se lembrar que, no Brasil, o casamento civil de pessoas do mesmo sexo ou gênero está previsto em lei (Resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça). Em julho de 2015, foi sancionada no Estado do Rio de Janeiro a lei nº 7041 que “estabelece penalidades administrativas aos estabelecimentos e agentes públicos que discriminem as pessoas por preconceito de sexo e orientação sexual”. Por fim, em junho deste ano, o Supremo Tribunal Federal tornou a homofobia e a transfobia crimes equivalentes ao racismo.

Mas, ao obedecerem às ordens de Crivella, os fiscais da Prefeitura cometeram atos ilegais? No Brasil, os agentes públicos podem desobedecer a seus superiores hierárquicos para não desrespeitarem a lei? Segundo o Estatuto dos Servidores Federais, a Lei n. 8.112/90, em seu art. 116, inciso IV, é dever do servidor público “cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais”. O artigo 22 do Código Penal de 1940, ao abordar o tema do crime e da obediência hierárquica, afirma: “Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem”. O estatuto dos servidores municipais do Rio de Janeiro é omisso nessa matéria. A desobediência de servidor pode ser punida com advertência, suspensão (em caso de reincidência) ou demissão, se a insubordinação for considerada grave. Não há ressalva sobre ordens superiores ilegais. De toda forma, no ordenamento jurídico brasileiro, nenhuma lei municipal pode se sobrepor às leis estaduais, federais e à Constituição.

O que chama a atenção na crise política e institucional brasileira é o caos jurídico. O fenômeno das fake news e a campanha de desinformação na internet tornam tudo ainda pior. Na campanha eleitoral, o então candidato Jair Bolsonaro foi entrevistado pelo jornal de maior audiência do país, o Jornal Nacional, e tentou entregou uma cartilha falsa, a qual ele chamava de “kit gay”. Embora a entrega não tenha sido permitida pelos âncoras do jornal, a reação da imprensa foi tímida e a fake news do “kit gay” dominou a campanha de Bolsonaro. O Poder Judiciário, por sua vez, vem assumindo posições controversas, pois está rachado e parte de seus membros parece seguir bandeiras ideológicas. A insegurança jurídica é tema atual.

A posse de Bolsonaro embaralhou ainda mais o certo e o errado, o legal e o ilegal, o verdadeiro e o falso no país. A crise econômica e a política do ódio agravam ainda mais o cenário. O resultado é avassalador: um aumento do número de mortes na periferia em ações policiais, especialmente de negros; um crescimento brutal do número de estupros e de feminicídios; forte homofobia e mortes de homossexuais e transsexuais; bem como uma disparada no número de crimes ambientais, como no caso das queimadas na Amazônia. Bolsonaro vem perdendo popularidade e um de seus filhos está no centro de um escândalo de corrupção e de possível envolvimento com milícias ligadas, inclusive, ao assassinato da ex-vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco. Porém, mais um processo de impeachment seria péssimo para o país. Como alternativa, foi lançado em São Paulo na semana passada o movimento de oposição à Bolsonaro com mais de 10 partidos, da esquerda à direita, chamado “Direitos Já, Fórum pela Democracia”.

No Brasil, não há um regime totalitário e tampouco existem leis que invertam o imperativo moral do “não matarás” para o “matarás”. Mas, vive-se hoje uma forma de banalidade do mal, antessala do fascismo. Há uma confusão na faculdade do juízo e uma deterioração dos valores humanos no íntimo de pessoas comuns, que não necessariamente são fascistas. Não faltam exemplos disso na internet e no nosso dia a dia. O ódio transformou parentes em inimigos. Nesse ambiente extremamente polarizado do Brasil, direitos humanos virou sinônimo de defesa de bandidos. Em 2018, livros sobre a história dos direitos humanos foram rasgados na biblioteca central da Universidade de Brasil (UNB), em mais um ato de intolerância. Embora Jim Cheung esteja coberto de razão, faltou-lhe perceber o que são os tempos atuais do novo Brasil de Crivella, Bolsonaro, Doria e Witzel. Falta-nos diálogo e dialética.

* Pedro Muñoz é professor do Departamento de História da PUC-Rio. historiador pela UERJ e psicólogo pela UFRJ. Doutor em História das Ciências pela Fiocruz, com doutorado sanduíche pela Freie Universität Berlin.

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