Mesmo sem decisão do STF, tribunais adotam marco temporal


Enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) não conclui o julgamento do marco temporal, tese ruralista que fixa uma data para efeito das demarcações de terras indígenas, a proposta já está servindo para questionar direitos dos povos tradicionais em tribunais de primeira e segunda instância. A denúncia foi feita pela socióloga Pagu Rodrigues, da etnia Funiô, que integra a Comissão de Povos Indígenas da OAB-SP, durante Soberania em Debate, realizado no dia 17 de setembro, pelo SOS Brasil Soberano, movimento do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ). Para ela, “manter-se vivo” é o ato maior de resistência das populações indígenas, atingidas na atual conjuntura por resoluções da Funai que desrespeitam convenções internacionais, pela contaminação de covid-19, inclusive em povos isolados, e por perseguições de ruralistas e mineradoras. Do total de recursos para controle da pandemia, a Funai, por exemplo, só usou 1%.

“Enquanto não se vota o marco temporal, a verdade é que todas as demarcações de terras indígenas no país estão correndo risco”, diz Pagu. “Porque a orientação da Advocacia Geral da União (AGU), desde o governo Temer, é seguir o marco temporal em julgamentos de primeira e segunda instância. Todos os governos bancados pelos ruralistas vêm orientando essa política.”

O marco temporal ignora as relações históricas das populações indígenas com seus territórios, ao impor uma espécie de marco zero, propondo que sejam demarcadas apenas as terras indígenas ocupadas ou sob conflito possessório no dia 5 de outubro de 1988, data da homologação da Constituição Federal. Com repercussão geral desde uma decisão do STF de 2019, a proposta do marco temporal originalmente faz parte do RE (Recurso Extraordinário) 1.017.365, em julgamento na corte, relativo a um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Funai e o povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada da Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ. Segundo a rede Conectas, de defesa de direitos humanos, o território em disputa já foi identificado pelos estudos antropológicos da Funai e declarado pelo Ministério da Justiça como parte da terra tradicional dos Xokleng.

“O marco é inconstitucional e traz um retrocesso imenso, sobretudo em relação a tudo pelo que se lutou na Constituinte de 88, para garantir o mínimo de direitos relacionados à questão indígena, em dois artigos: o 231 e o 232”, explica Pagu. A Constituição, diz ela, já garantiria que todas as terras indígenas deveriam ser demarcadas cinco anos após a sua promulgação. “O marco temporal quer simplesmente derrubar isso.” Sua aprovação seria um ataque ao conjunto da sociedade porque, como destacou a socióloga, “quando você intervém num direito constitucional, está dizendo que a jurisprudência pode ser de fato derrubar qualquer direito constitucional. E não somos só nós. É a classe trabalhadora também.”

O ministro Edson Fachin, relator do RE no STF, acolheu os argumentos dos direitos indígenas e deu voto contrário ao marco, mas o ministro Nunes Marques, o único já indicado pelo atual governo, votou a favor. Previsto inicialmente para terminar em setembro, o julgamento, contudo, foi interrompido em 15 de setembro, sem prazo de retorno, devido a um pedido de vista feito pelo ministro Alexandre de Moraes.

A indefinição, segundo Pagu, joga as populações numa “berlinda”. “A gente não sabe quando o marco temporal vai ser julgado de novo. Porque tivemos um pedido de vistas do Alexandre de Moraes e ele pode se estender no tempo que eles determinarem: um, dois meses… E, quando o tema voltar para a pauta do STF, a gente também não sabe se vai ser pauta prioritária de votação.”

Na prática, o marco temporal reacende conflitos em muitas áreas que já estavam pacificadas, com territórios homologados, e cria enormes dificuldades para outros cujos processos de demarcação foram paralisados no governo Bolsonaro ou que nem conseguiram começar, explica a socióloga. De acordo com Pagu, são cerca de 12% de terras indígenas demarcadas, a maior parte na região Norte, na Amazônia.

No Nordeste, praticamente não há território demarcado, mas apenas reservas indígenas. “Se o marco for aprovado, elas não serão demarcadas, e as reservas não serão mais reconhecidas”, avisa Pagu. “E estamos falando de um Nordeste inteiro indígena, onde por muito tempo não se reconheceu a presença indígena. A política de reconhecimento é da década de 50, mais precisamente dos anos 2000, quando a gente tem, pela Funai e pelo governo brasileiro, o reconhecimento da retomada de uma série de etnias que eram ignoradas. Então a gente sabe que o desastre, ali, se o marco for aprovado, vai ser imenso.”

A situação também é crítica no Sudeste. Na capital paulista, segundo a socióloga, Jaraguá foi demarcada como terra indígena em 2015, mas corre o risco de ter seu processo revisitado, assim como Parelheiros. Ela cita, ainda, as inúmeras terras Guarani e Tupi-Guarani no litoral do estado de São Paulo, que estão com suas demarcações paralisadas desde a década de 90 e que, provavelmente, se o marco temporal for aprovado, não irão adiante. Situação parecida com a do Sul do país.

No centro-oeste, o cenário se agrava com o histórico de violência nos territórios Guarani-Kaiowá. “É um absurdo, uma atrocidade, o que estamos assistindo”, dis Pagu. “Estamos contando muito com que os votos dos ministros [do STF] sejam favoráveis à causa indígena.”

A socióloga aponta um padrão político-jurídico. “O governo federal via de regra faz o processo de demarcação. Como as terras estão em áreas de sobreposição de parques, o que faz o governo estadual? Entra com mandado de segurança, mandando suspender. O STF, nos últimos casos, como o do Jaraguá, julgou favoravelmente e manteve a demarcação. Mas em algumas aldeias no litoral do estado, a situação é mais complexa. E o que vai acontecer [se o marco for aprovado] é que Jaraguá, Parelheiros vão ter sua demarcação derrubada. Territórios como São Vicente, Praia Grande, Vale do Ribeira, que estão com processos de demarcação paralisados desde a década de 90, não vão ter mais as terras demarcadas. É um contingente de terra Tupi-Guarani imenso no Estado de São Paulo. E vai ser um desastre.”

Genocídio e pandemia
Para Pagu, a tese do marco temporal é mais um componente da política de extermínio do governo. “O genocídio da população indígena está em curso, não é uma narrativa da história do Brasil”, diz. “Está em curso de diferentes formas: o marco temporal é uma forma de reafirmar esse genocídio; e a pandemia também tem sido usada como política de genocídio da população indígena.” Do orçamento inicial de R$ 11 milhões para aplicar nos aldeamentos durante a pandemia, a Funai só executou 1%.

De acordo com a integrante da Comissão de Povos Indígenas da OAB-SP, já são 19 línguas correndo risco na Amazônia, onde a grilagem aumentou 29% durante a pandemia. “Vimos ser proibido o envio de cesta básica, corte na política de saneamento básico, profissionais de saúde sem equipamento adequado de proteção. E a orientação do presidente foi mandar 100 mil unidades de cloroquina para os territórios indígenas. É a política de fazer morrer. Decidiram nos matar, mas decidimos não morrer. Porque fomos em cima da nossa medicina tradicional, conseguindo pouco a pouco manter algum controle da pandemia.”

Entre os indígenas de contexto urbano, o quadro é mais grave, com um índice de contaminação 16% maior do que na população de maneira geral, e cinco vezes maior do que nas terras homologadas, calcula Pagu. Ela explica que o Plano Nacional de Vacinação excluiu a população indígena de contexto urbano, e, embora o STF tenha determinado que essas pessoas tinham que ser vacinadas, a Funai não se responsabiliza por elas. “Até hoje, na verdade, existe uma instrução suprema, mas os equipamentos de saúde estaduais e municipais não orientam a vacinar os indígenas de contexto urbano. É uma política de genocídio sim o que está sendo feito nessa pandemida.”

Funai capturada
Nesse sentido, a socióloga critica o aparelhamento dos cargos de confiança na Funai por pessoal abertamente hostil à causa e ações da entidade contrárias à Constituição, por exemplo exigindo comprovação de identidade indígena. “Essa tentativa de derrubar a autodeterminação dos povos indígenas, e, por exemplo, pedir a heteroidentificação, ou seja, ter agora que provar que você é índio, se não, não tem direito a nada, é uma política da década de 70.” A medida, segundo ela, também contraria convenções internacionais, como a 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o país é signatário, e que assegura a autodeterminação.

De acordo com Pagu, verifica-se, na Funai, “a presença de missionários e evangélicos, até militares, ocupando cargos de confiança nessa linha da antropologia conservadora, de dizer quem é ou não indio”. Um entendimento que distingue os índios que estão vivendo em terras homologadas, daqueles em contexto urbano, e que não deixam de ser indígenas por causa disso.” Porque não é responsabilidade dessa população estar vivendo fora de seus territórios; ela foi expulsa por fazendeiros e conflitos inúmeros”, argumenta.

O quadro de profissionais de carreira da entidade, embora comprometidos, com advogados, antropólogos, sociólogos, teria perdido sua autonomia frente aos coordenadores regionais e à própria presidência. “O que a gente tem assistindo na parte de garantia de direitos é que, muitas vezes, não se aprova uma mudança legal sobre determinadas questões referentes à Funai, e aí começam a aplicar a mudança de maneira administrativa: soltam resolução atrás de resolução, e essas resoluções são validadas e usadas como orientação geral para a política da Funai. Uma delas é a questão da heteroidentificação. A Convenção nº 169 garante a autodeterminação e autodeclaração dos povos indígenas. Como não conseguem fazer a mudança por meio de uma PEC (a 215), porque envolve uma comissão internacional, faz o quê? Numa canetada administrativa começa a impor essas coisas.”

Frente avançada da luta ambiental
Os ataques governamentais aos povos tradicionais se explicam, também, porque os indígenas têm feito a resistência mais constante e acirrada da defesa ambiental. “Estamos passando por uma crise climática, ambiental, dos direitos da natureza. E hoje quem preserva todos esses direitos da natureza, faz a resistência ao modelo do capital e do lucro, é a população indígena, tradicional”, diz Pagu. Ela lembra a afirmação feita por Davi Kopenawa, xamã e liderança Yanomami, segundo quem quando o último xamã sucumbir, e a Amazônia for devastada, o céu vai cair. “E a verdade é que quem está segurando esse céu somos nós indígenas. A gente é 5% da população, que está preservando 80% dos direitos da natureza.”

Pagu também observa que 46% do território estão sob posse dos 3% mais ricos do país. “A gente vê todas as demais desigualdades, há uma desigualdade mãe, que é a questão fundiária.” Por isso, ela defende a unificação das lutas no campo da esquerda. “A gente precisa começar a unificar essas lutas. Neste próximo período, é estratégica a luta da população indígena, mas com a luta da classe trabalhadora conjuntamente com a nossa. Porque quando a gente conseguir fazer reforma agrária, vamos peitar os interesses econômicos do grande capital. Quando fizer a reforma das comunicações, vamos estar peitando interesses da indústria e do capital financeiro. Quando fizer essas reformas estruturantes, a gente consegue debater direito a questão dos povos indígenas, dos povos tradicionais , e também da classe trabalhadora. Daqui a cinco anos, os centros urbanos não terão qualidade de vida para ninguém. E estamos aqui, de pé, sangrando, e fazendo essa luta para dar continuidade a esse planeta. “

> O Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sidicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ).

> Assista na íntegra ao Soberania em Debate com a socióloga Pagu Rodrigues, entrevistado pelo advogado e cientista político Jorge Folena e pela jornalista Beth Costa, coordenadores do SOS Brasil Soberano.

 

 

 

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