Dia 4, STF retoma análise das operações policiais no RJ

Da esq. p/dir: Paulo Baía, Daniel Hirata e Jacqueline Muniz/reprodução

Com a liminar do ministro Facchin sobre ADPF 635, de 5 de junho, restringindo as incursões nas comunidades, houve queda de 74% na letalidade da ação do Estado e também redução no número de crimes, mostram dados do ISP.


No próximo dia 4 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635 (ADPF 635), que restringe operações policiais nas comunidades durante a pandemia de Covid-19, acolhida liminarmente pelo ministro Edson Facchin, em 5 de junho. “Pela primeira vez na história, temos uma medida judicial para delimitar o poder da policia”, destacou a antropóloga Jacqueline Muniz, professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF) e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “A ADFP é uma grande conquista, talvez o maior avanço dos últimos anos” na área de segurança, avalia Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF) e pesquisador do Núcleo de Estudos de Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU/UFRJ). “Considero a decisão do Facchin uma enorme novidade e já trouxe efeitos concretos: os primeiros dados que saíram do ISP (Instituto de Segurança Pública) mostram a queda da letalidade”, acrescenta o cientista político Paulo Baía, professor da UFRJ.

Os três pesquisadores participaram do Soberania em Debate sobre o tema Violência e Segurança Pública, realizado pelo Movimento SOS Brasil Soberano, no dia 17, com a mediação do historiador Francisco Teixeira. Eles integram a Rede Fluminense de Pesquisadores de Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos, que divulgou nota pública (leia aqui), em apoio à ADPF 635, atualmente com cerca de cem signatários, entre acadêmicos e representantes de movimentos da sociedade civil contra a violência policial. A expectativa é que, a partir do julgamento do STF, as ações policiais, atualmente baseadas na lógica política e em interesses difusos e não em um modelo profissionalizado e racional, passem a ter um pouco mais de controle social e transparência.

A liminar do Supremo restringindo as operações apenas aos casos extremamente excepcionais foi confirmada, no último dia 20, pelo presidente do STF, Dias Toffoli, que rejeitou pedido da União para suspendê-la. Em vigor, a medida permitiu observar na prática, e comprovar com números, aquilo que os pesquisadores já intuíam: que as operações produzem muitas mortes e não são eficazes para combater a criminalidade. Sem elas, a letalidade tem sido menor, e as ocorrências de crimes também. Dados que os pesquisadores esperam que subsidiem o julgamento da ADPF 635 no STF.

Daniel observa que relatório divulgado pela UFF, em 19 de junho, já apontava, desde a decisão do ministro Facchin, que a redução de 70% nas operações veio acompanhada de uma queda à metade no número de feridos nas comunidades e em 85% no de mortes em operações policiais. Mais recentes, os números do ISP vão na mesma direção: registram, em junho, que 34 pessoas foram mortas por agentes do Estado, em comparação a 153 no mesmo período, em 2019, e a 129 em maio deste ano (queda de 73,6%). Foi o menor número de mortos pela polícia desde dezembro de 2015, com 29 mortos.

Também caíram os crimes violentos letais intencionais (homicídio doloso, roubo seguido de morte e lesão corporal seguida de morte), com o menor número (1.953 vítimas) para junho, desde 1999. Os dados mostram queda de 42% nos roubos de rua, 36% nos roubos de veículos e 36% nos roubos de carga no primeiro semestre deste ano, em comparação ao mesmo período do ano anterior, refletindo, além da liminar do STF, a menor circulação nas ruas devido ao isolamento social.

“Há um argumento velado ou explícito de que as operações são necessárias para controlar a violência no Rio, o que nunca foi demonstrado”, criticou Daniel. Com a liminar de Facchin e a redução significativa das operações, será então possível mostrar que este raciocínio não se confirma. “Dados do ISP mostram que a restrição das operações veio com a diminuição dos crimes contra a vida e patrimoniais. Não há nada que justifique a brutalidade, a violência do Estado, a violação dos Direitos Humanos como prática para controle de combate ao crime. Embora isso pareça ser evidente, neste momento em que vivemos, isso deve ser reforçado.”

Zona Oeste e milícia
A decisão do ministro Facchin, além de estar efetivamente evitando mais mortes durante a vigência da liminar, despertou em outros estados o interesse em buscar uma iniciativa similar, para que a PM não seja um Estado dentro do Estado, afirma Paulo Baía. E também, diz ele, deve aprofundar o debate sobre o controle das polícias. “A ADPF mostra exatamente isso: não se quer impedir a ação policial, mas que ela tenha o controle do Ministério Público estadual, ou seja, que o MP exerça sua função constitucional.”

Baía ressalva, contudo, que o MP do Rio está “contaminado”, desde o governo de Sérgio Cabral, e que os poucos órgãos de controle existentes – como as Ouvidorias de Polícia e a Corregedoria-Geral Unificada – foram desmontados na gestão de Wilson Witzel. Mesmo assim, o cientista político ressalta que é importante pressionar pelo restabelecimento de instâncias de fiscalização do uso da força. “Mesmo que nossa experiência mostre que isso é frágil, precisamos reforçar os mecanismos de controle.”

Nesse sentido, Daniel enfatiza o controle externo da polícia, com mobilização e engajamento social, e cobra maior transparência das operações, que, diz ele, precisam ter um sistema de prestação de contas. Relatórios, dados e informações que expliquem, por exemplo, por que o Estado concentra o uso da força nas áreas de atuação da facção criminosa Comando Vermelho, e não enfrenta as milícias, principalmente na Zona Oeste da capital.

“Não temos dados sobre o principal instrumento de segurança, as operações policiais produzidas pelo estado do Rio – quantas, onde são feitas, quais os resultados”, denúncia o coordenador do Geni/UFRJ. “Não há dados oficiais para um debate público qualificado. E aí, avançando sobre a questão das milícias, seria muito importante mostrarmos onde são feitas ou não as operações policiais, em que lugares a polícia incide muito fortemente e quais grupos armados estão localizados nesses lugares.”

De acordo com Daniel, percebe-se que a Zona Oeste, em geral, tem sido preservada das operações repressivas, em comparação às áreas dominadas pelo Comando Vermelho, especialmente a partir de 2007, quando o Rio começa a receber grandes investimentos em infraestrutura, para os megaeventos. A região, como eixo de expansão urbana da cidade, passa a registrar enorme valorização do preço do solo. “Foi ali que a gente tinha grupos de milicianos preservados de gastar dinheiro na guerra contra as operações, e ganhando dinheiro com revenda de imóveis, controle de VANs… Alguma coisa, durante 15 anos, forçou operações em regiões de domínio do Comando Vermelho, por exemplo, e não atuou da mesma maneira nas áreas de milícias. Então cadê a prestação de contas, a transparência, para saber, afinal de contas, para que e a quem servem essas operações, e para onde está sendo direcionado o uso da força? Tão importante quanto ter um uso racional e qualificado da espada, é dizer para quem está apontada a espada e para quem não, porque sabemos que há interesses políticos e econômicos poderosos neste Estado.”

Os dados até agora disponíveis “mostram claramente”, segundo Paulo Baía, “que a face da morte é negra, parda, de mulheres, populações periféricas”. Responder às perguntas feitas por Daniel – para quem serve e onde tem [ação policial] – mostrará, diz o professor da UFRJ, quem está conduzindo a política de extermínio e segregação.

Protocolos abertos
Nesse contexto, torna-se ainda mais evidente a relevância da ADPF. “Pela primeira vez, temos um instrumento normativo importante para que algum controle externo da polícia possa ser feito”, diz Daniel. “Mas só a ADPF é insuficiente. Por exemplo, ela reforça algo que já devia ser rotineiro – que a polícia deve enviar relatórios sobre as operações. E cadê o Ministério Público para mostrar esses relatórios e dizer quais foram as justificativas das operações?” Ele cita, em particular, a operação que interrompeu uma festa no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, e resultou na morte do menino João Pedro Matos, de 14 anos, baleado pelas costas, no dia 18 de maio.

“Isso entra na categoria de [situação] extremamente excepcional? O MP está fazendo controle do quê? A ADPF é um marco, uma grande grande frente de luta para controle da atuação arbitrária das polícias, mas sozinha não vai conseguir resolver”, alerta o pesquisador do Geni/UFRJ. “Temos que engajar outros entes administrativos e a sociedade civil, para que esse controle seja exercido.”

Em Mineápolis, nos EUA, onde George Floyd, negro, foi assassinado em 25 de maio por um policial branco, desencadeando uma onda antirracista no país, todos os protocolos de uso da força são públicos, conta Jacqueline Muniz. “Porque a previsibilidade do uso da força é que dá superioridade de método, seja no mundo da guerra, seja no mundo da polícia”, explica ela. “Aqui não, aqui o protocolo é segredo, ninguém pode falar… Porque não passa no teste da qualidade e superioridade tática, da consistência logistica, da decisão estratégica e muito menos da finalidade politica”.

Uma ausência de parâmetros, de racionalidade, de protocolos, que funcionaria como terreno fértil para o desenvolvimento das práticas do arbítrio. “Estamos falando de uma coisa muito séria, e é isso que deu na miliciarização”, diz Jacqueline, que compara as delegacias de polícia a “vaticanos dentro de Roma”. “Porque ninguém manda em nada. É um jogo de chantagens perigosíssimas. A gente tem que entender que esse é o espaço do lusco-fusco, das chantagens…”

A pesquisadora, que trabalhou no final dos anos 90 na Secretaria Estadual de Segurança do Rio e, nos anos 2000, no Ministério da Justiça, chama a atenção, também, para a falta de uma política de segurança formalizada no governo Bolsonaro. “Não vi até agora a política de defesa escrita do Bolsonaro; vejo indivíduos, funcionários de uma autarquia militar, demandando vantagens, benefícios e privilégios previdenciários. Não vi ninguém discutindo defesa.”

Nesse cenário brumoso, “todo o esforço de produzir dados vai no sentido de qualificar o debate público para que a gente possa compreender como está sendo usada a força”, explica Daniel. A determinação de Facchin, na sua opinião, deveria ser uma diretriz permanente, com operações policiais dentro das comunidades apenas em casos absolutamente excepcionais. Porque, ao contrário, elas se tornaram rotina: “Acontece todo dia, com veículos blindados, helicópteros.. Enfim, não é possível que esse seja o instrumento de ação pública preferencial – e ele o é. Nas operações policiais é que se concentram todos os recursos financeiros e humanos das polícias no Rio de Janeiro, e os resultados são pífios – tanto com relação à vida, que deveria ser a prioridade das políticas de segurança, quanto à redução de criminalidade.”

Das 1.810 mortes registradas no ano passado por agentes no estado, a Polícia Militar do Rio respondeu por mais de 30%. Embora o território fluminense tenha 16,5 milhões de habitantes, mata quatro vezes mais do que todas as polícias dos EUA, com 328,2 milhões de habitantes, compara o pesquisador. “É um absurdo a polícia do Rio ser a mais letal do Brasil, com quase um quarto (¼) de todas as mortes decorrentes de intervenção de agentes do Estado”, critica Daniel Hirata. “E sabemos que as populações negras, pobres, de favelas do Rio, são as mais expostas à violência, que se agravou no período pandêmico. Neste momento em que a polícia deveria estar se somando aos serviços humanitários, de saúde, o que vimos foram operações sendo feitas durante distribuições de cestas básicas. Uma loucura.”

Polícia-ostentação ou síndrome do cabrito
As operações policiais são o sumo do que Jacqueline Muniz chama “polícia-ostentação”, ou “síndrome do cabrito” – sobe e desce morro. Uma prática espetacularizada, de alto custo e ineficiente, na sua opinião. Segundo a pesquisadora, esse modelo foi se constituindo como “guerra contra o crime”, desde os anos 1990, inaugurado no governo de Moreira Franco (1987 a 1990), que prometia acabar com o crime em 200 dias, e implementado por Marcelo Alencar, a partir de 1995. “Tem a ver com a substituição gradual das atividades de policiamento convencionais, monótonas, – e que funcionam. É barato, arroz com feijão, mas não tem licitação, polícia de espetáculo, de tiro-porrada-e-bomba, de giroflex ligado, do teatro operacional que eu chamo polícia-ostentação ou síndrome do cabrito, sobe e desce morro. Começou lá o discurso de guerra contra o crime, que tem rendimento político e eleitoral: a insegurança no Rio é um sucesso, em termos de projeto de política econômica e de poder. Está tudo certo; mas não está para mim, que quero polícia – porque polícia é negócio da democracia. Quem gosta de polícia é defensor de direito civil; quem não gosta, gosta da síndrome do cabrito, peito de pombo, cara feia.”

A qualidade técnica é o que separa, na avaliação da pesquisadora, a “operação especial”, consistente, da “operação policial”. “Mudaram o nome de propósito, para virar rotina”, diz Jacqueline. “Operação policial sem tática, sem cadeia de comando… maximiza riscos. Além disso, você mobiliza uma quantidade imensa de policiais (para ter 50, precisa empenhar 200), o que leva a escassez de cobertura ostensiva e dificuldade de pronta-resposta…maximizando a oportunidade de crimes. Para fazer uma operação, está gerando escassez. Polícia não é nível de prontidão como as FFAA, não tem estoque. Então, o que acontece: a lógica da síndrome do cabrito, do sobe e desce morro, não é para produzir nem soberania sobre território nem sobre a população. É para produzir o efeito ostentação, subir o preço do alvará, transformando o policial em trouxa.”

O que Jacqueline defende é o controle profissional, a qualificação da ação tática de polícia. “Operações especiais, sim, com superioridade tática, com juízo estratégico. Queremos repressão sim, qualificada.” Isso, significa, diz ela, estabelecer uma política que possa ser transmitida e ensinada aos policiais, para, a partir dela, construir sistemas de premiações, formas de controle interno e externo, definição de protocolos claros, métricas.

“Preparo só faz sentido, nas Forças Armadas ou onde quer que seja, se você tem mecanismos de governança, no caso, uma política de polícia”, explica a pesquisadora. Oposto a isso, ela cita, no Rio, por exemplo, a metodologia de controle do armamento, feito com base nos estoques, de forma genérica, e não no seu uso individual. Uma manobra intencional que não permite distinguir o policial de “dedo nervoso”, daquele de “dedo democrático”.

Genocídio e Tribunal de Haia
“Aí chegamos ao genocídio, porque não há outra palavra a dizer”, diz Paulo Baía. “Nós estamos, efetivamente, através da omissão ou da ação política, promovendo o genocídio da população brasileira.” Para o cientista político, a reação do Ministério da Defesa e de outros comandantes militares no governo à acusação feita pelo ministro Gilmar Mendes, do STF, no dia 11 de julho, comentando o alto número de mortos pela Covid-19 no Brasil, de que as Forças Armadas estavam se associando a um genocídio, deve-se ao medo de que a palavra, dita por um ministro, tenha o peso de uma tipificação de crime. “A reação das FFAA não foi à ideia de que há genocídio, mas à ideia da tipificação de crime que a fala de um ministro do STF pode levar”, acredita.

Baía destaca que Bolsonaro já foi denunciado por risco de genocídio indígena na crise da Covid-19 ao Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia. À mesma corte, uma nova denúncia contra o presidente foi protocolada neste domingo (19), desta vez pela Rede Sindical Brasileira UNISaúde, que reúne mais de 50 entidades e sindicatos da área de saúde, por “falhas graves e mortais” na abordagem da pandemia, que causaram a marca assustadora de mais de 87 mil mortos no país, até esta data.

A nota de apoio à ADPF 635 continua aberta a novas adesões. O texto se insere no contexto da criação da própria Rede Fluminense de Pesquisadores de Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos, no ano passado, como reação às eleições que levaram ao poder grupos de extrema direita, tanto no governo federal quanto na cidade e no Estado do Rio, explica Daniel Hirata. Naquele momento, explica o pesquisador, “havia uma disposição de diferentes pesquisadores, de universidades públicas e da PUC Rio, em torno da construção de certos consensos mínimos acerca da segurança pública para o caso do Rio de Janeiro”. A restrição às operações policiais nas comunidades, por exemplo, é um desses consensos.

Baixe as artes e espalhe a campanha a favor da ADPF 635:

Clique para assistir ao Soberania e Debate sobre Violência e Segurança Pública na íntegra:
https://www.youtube.com/watch?v=vUEs5HAg0GE

> O Soberania em Debate faz parte da agenda do Movimento SOS Brasil Soberano, que é uma realização do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ). Por meio de eventos, debates e produção de conteúdos temáticos, a iniciativa tem o objetivo de recolher subsídios para colaborar na construção de um projeto de desenvolvimento nacional com empregos, soberania e justiça social.

 

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