“Desastre diplomático afeta comércio e bem estar social”

Interior do Palácio Itamaraty – Foto: Daniella Duarte/MRE

Para o ex-ministro das Relações Exteriores e da Defesa nos governos Lula, Celso Amorim, o país vive um “desastre diplomático”, com reflexos gerais na perda de credibilidade junto a outras nações, e também, mais especificamente, na dificuldade para negociar vacinas contra a covid-19. “Era para o Brasil estar nadando em vacina”, diz, lembrando que o país foi parte ativa do Brics, parceiro dos três maiores produtores de vacina do mundo: China, Índia e Rússia. “Está sofrendo”, contudo, devido à abordagem agressiva de sua política internacional.

“Além da política em relação à vacina, de saúde, sanitária, ter sido um desastre, mesmo quando tentou corrigi-la, esbarrou na dificuldade da relação”, diz. “Porque é muito difícil você ficar xingando um país, o presidente falando em ‘vachina’, o ministro das Relações Exteriores falando ‘comuna vírus’, e ao mesmo tempo pedir ajuda.”

Os erros da gestão do ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, que deixou o governo em março, demonstraram, observa Amorim, a relevância de uma diplomacia baseada em relações solidárias, e não hostis, com outros países em desenvolvimento. Uma diplomacia mal desenvolvida, ressalta, “leva a um desastre não só econômico mas em termos de vida e de bem estar social”.

Mercosul e desmonte
No caso do bolsonarismo, o estrago é amplo. Amorim considera “gravíssimo” o movimento de “desconstrução de tudo que o Brasil tem de positivo”, pelo atual governo. Algumas perdas, segundo ele, podem ser impossíveis ou muito difíceis de serem revertidas, sobretudo na área comercial. Por exemplo, se parceiras tradicionais, como a China ou os EUA, aderirem a leilões de ativos da Petrobras, será bastante complicado reverter o processo no futuro. A mesma coisa no que se refere à intenção do Brasil de propor o fim do Mercosul, na sua opinião, um grande retrocesso para o país e para a região. “É como um casamento. Com a separação, difícil fazer voltar. Ocorrem casos, mas são raros.”

Amorim lembra que a integração sul americana tem sido buscada pelos governos democráticos brasileiros, desde a gestão de José Sarney, e se aprofundou com Lula por meio da criação da Unasul, “uma ferramenta importantíssima na política internacional”. Para o ex-ministro, em um mundo formado por blocos – além da União Europeia, os EUA e a China, que são blocos em si mesmos –, o Brasil, com grande presença internacional, tem melhores condições de lidar com esses arranjos de interesses se tiver seu próprio bloco consolidado na América do Sul.

“Isso é muito importante politicamente”, ressalta. “As pessoas pensam apenas economicamente. E mesmo economicamente, deu resultados extraordinários.” Entre 1991, criação do Mercosul, e 2005, o comércio mundial do Brasil multiplicou por cinco; e por 14, nas operações dentro do próprio bloco, que chegou a ser o segundo parceiro comercial do Brasil, acima dos EUA e abaixo apenas da União Europeia, informa o ex-mininistro. O mais importante, contudo, na sua avaliação, é o papel da integração para “garantir a paz e a democracia na região”.

O fortalecimento das relações Sul-Sul, envolvendo países da África e da Ásia, também rendeu ganhos comerciais e políticos, aumentando a credibilidade e relevância do Brasil como interlocutor e mediador de conflitos. “Nosso comércio com a África se multiplicou por cinco e se diversificou: exportamos ônibus, caminhão, além de continuar exportando produtos do agronegócio. Com os países árabes e o Irã, aconteceu a mesma coisa, um aumento enorme da nossa exportação: de carne a aviões, passando por açúcar, etc.”

Em cerca de sete anos, ele calcula que os negócios com países árabes tenham se quadruplicado. O Brasil propôs e realizou a primeira reunião entre América do Sul e países árabes, que se repetiu no Qatar, quebrando um velho paradigma. “Porque a gente só se relacionava com esses países através de Londres, de Nova York, ou de Paris. Passamos a ter uma relação mais direta, próxima.”

O efeito político foi evidente. Além de prestigiado para sediar eventos internacionais como a Copa do Mundo ou a Olimpíada, no governo Dilma, já com o chanceler Antonio Patriota, o Brasil elege o diretor geral da FAO, e, dois anos depois, o diretor geral da Organização Mundial do Comércio (OMC). “Nessas organizações internacionais é onde está a influência nas decisões. E o Brasil conseguiu, porque teve uma política ativa com esses países do Sul. Tivemos projetos com a Índia, África do Sul, Guiné Bissau, Haiti, Nepal…” A credibilidade global construída com essa cooperação, no entanto, avalia Amorim, “foi muito afetada e vai dar muito trabalho refazer”.

Acordo com a União Europeia
Embora o diplomata tenha sido sempre a favor de um acordo do Mercosul com a União Europeia, como forma de reduzir a dependência dos EUA e da China, ele é contra a versão negociada pelo governo atual. Na sua opinião, o acordo deve ser refeito, até com mais obrigações ambientais para o Brasil e, ao mesmo tempo, maior atenção às necessidades da indústria e da capacidade tecnológica brasileiras.

“Não sou a favor deste acordo que foi negociado, porque a pior coisa que existe em uma negociação é a pressão”, explica. “E esse acordo foi feito em função de duas questões: a eleição na Argentina, porque o Macri (presidente argentino em 2015-19) tinha que mostrar alguma coisa; e o Bolsonaro também estava querendo mostrar alguma coisa na área internacional. Do nosso ponto de vista, deixa a desejar; para os europeus, nas questões climáticas, ambientais, também. Então, se nós tivermos um governo normal, de preferência progressista, deveríamos dar uma pausa.”

CIA e Biden
Sobre as relações da América Latina com o novo presidente norte-americano, Joe Biden, Celso Amorim acredita que a diplomacia dos EUA ainda esteja “tateando” para ver como agir. “Evidentemente, são dominados pela luta pela hegemonia, sobretudo com relação à China e à Rússia. Mas acho que há uma mudança de método, em relação ao que era a política Trump.”

Apesar do encontro fora da agenda oficial, no último dia 1º, do chefe da CIA, William Burns, com o presidente Bolsonaro, que o ex-ministro considera “muito insólito e muito pouco usual”, o diplomata não acredita que haja apoio dos EUA ao bolsonarismo.

Ele já observa, inclusive, sinais concretos de uma abordagem menos beligerante, por exemplo, na questão da Venezuela. O fato de a Europa ter retirado o apoio a Juan Guaidó, que tenta impor um governo paralelo no país vizinho, indica, diz ele, que os europeus não esperam uma reação contrária relevante dos EUA.

“Com o Biden, não é que ele tenha feito uma mudança radical de política. Os objetivos podem até ser parecidos ou continuarem os mesmos, mas os métodos mudaram. Por exemplo, os EUA não dizem mais – e o Trump sempre dizia – que todas as opções estão sobre a mesa. O que significa, na realidade, a ameaça do uso da força.” Dentro do Partido Democrata, Amorim também não acredita que haja receptividade a uma “aventura militar”.

De qualquer forma, a visita de Burns é estranha e mereceria, na avaliação do diplomata, um pedido formal de esclarecimento por parte de parlamentares norte-americanos e brasileiros. Uma hipótese, segundo ele, seria um acordo de inteligência em torno da disputa com a China.

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