Advogada aponta a solidão institucional da mulher negra

Apenas 5% das mulheres no Brasil são juízas. Entre as procuradoras da República, não há uma mulher que se autodeclare negra. Apenas 51% de mulheres negras hoje estão no mercado de trabalho, e só ínfimos 2% dos escritórios de advocacia têm pessoas pretas na atividade, número que, aplicada a interseccionalidade – se buscarmos por mulheres pretas –, cai ainda mais.

Os números foram citados pela advogada Juliana Lima, conselheira da OAB-PE e co-fundadora da Abayomi Juristas Negras, para explicar o que chama de solidão institucional da mulher negra dentro do Direito. Ela sugere o teste do pescoço: olhe para os lados: Há mulheres negras? Onde elas estão e o que estão fazendo? A organização criada para enfrentar esse racismo institucional e promover o protagonismo das mulheres negras no Judiciário, setor com maioria histórica de homens brancos. A entidade atua na preparação de concursos para postos na carreira da Justiça, com foco nas mulheres negras, e é uma das cerca de cem signatárias da área do Direito que pediram em carta aberta ao governo a indicação de uma jurista negra ao Supremo Tribunal Federal (STF).

“É imoral se não houver essa indicação”, acredita Juliana. Ela lembra que o STF, com 132 anos de existência, nunca teve uma mulher negra entre seus quadros, e apenas três homens negros empossados como ministros. Em evento recente, a advogada conta que “o próprio [ministro Edson] Facchin parabenizou as ministras e reconheceu o número baixo de mulheres; declarou que anseia por cumprimentar uma nova ministra mulher negra.”

Juliana avalia que essa ausência de representatividade no Judiciário compromete o debate e a construção da pauta no STF, que deixa de repercutir “as dores e processos de vida”. Ou seja, o tribunal não reflete as questões relevantes para a maioria da população, que não é formada por homens brancos, cis, heterossexuais, perfil majoritário da corte.

“A Abayomi veio da necessidade de as mulheres negras se fazerem presentes com essa vivência no Sistema de Justiça e no STF, que julga grandes casos”, afirma. “É imprescindível que a gente fale de uma mulher negra no STF. É vergonhoso nunca ter tido uma mulher negra nesse lugar. E não haveria momento mais propício do que agora.”

Entre os temas importantes que envolvem diretamente o combate ao racismo estrutural e institucional no país, está no STF o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 973, chamada ADPF das Vidas Negras, que quer o reconhecimento de um “estado de coisas inconstitucional”, com alta letalidade de pessoas negras devido à violência do Estado e ao desmonte de políticas pública, reivindicando a implantação de um Plano Nacional de Enfrentamento ao Racismo Institucional.

Apesar de ter sido protocolada por sete partidos, Juliana observa que a ADPF foi produzida e instituída pela Coalizão Negra de Direitos, que reúne 250 organizações, em parceria com os movimentos Mães de Maio, Mães de Manguinhos e Mães da Maré.

Também está com votação inconclusa no STF um habeas corpus que questiona os fundamentos de abordagens policiais baseadas em perfilamento racial, sem critérios objetivos de suspeição. A Coalizão e outras sete entidades defendem a ilegalidade das provas resultantes de revista na pessoa motivada por filtragem racial — quando o policial aborda alguém apenas porque a pessoa é preta.

“Não vejo dificuldade nenhuma para o STF aprovar essa ADPF, que fala justamente sobre a questão do racismo institucional”, ressalta Juliana. “Porque muito se fala do racismo estrutural, mas pouco do racismo que acontece em várias instituições – e a PM é uma delas. O Brasil passou por um processo de embranquecimento, quando se acreditava que, a partir de cem anos, não haveria mais pessoas negras no país. Felizmente estou aqui para provar que esse projeto não foi bem sucedido. Continuamos resistindo.”

A advogada destaca que a necropolítica do Estado brasileiro está evidente nos dados do Mapa da Violência, tanto no que se refere à raça quanto a gênero. “O meu corpo [de mulher negra] tanto pode morrer vítima de violência doméstica, a partir de uma entrada incisiva da polícia numa periferia, ou por bala perdida, que só encontra um único corpo, não importa se é criança, adulto, menino, mulher, ancião… sempre encontra o corpo preto.”

A dor da mulher negra, diz Juliana, “é uma dor por si e uma dor com os seus, porque os seus estão sendo confundidos com pessoas criminosas, sendo mortos ou presos.” Os recentes sistemas de reconhecimento facial que tentam implantar, alerta a advogada, vão agravar esse quadro de injustiças. “A única coisa que reconhecem é a cor”, critica.

Encontro precioso
Os séculos de história de violências físicas, psicológicas, econômicas mantêm na sociedade brasileira espaços ainda interditos às mulheres negras, especialmente no campo do Direito, explica Juliana.

A Abayomi nasceu por iniciativa da procuradora Chiara Ramos e do seu sentimento dessa “solidão institucional”, ou seja, da percepção de que ela era a única negra nos painéis e nos espaços institucionais da sua área de atividade. “Ao ingressar na OAB de Pernambuco, ela entrou em contato com advogadas do estado e sentiu a necessidade de prepará-las para ingressar nesse sistema de Justiça. Decidiu então aplicar seus anos de experiência em preparação de concurso e sua metodologia numa estrutura afrocentrada”, lembra Juliana.

“Nosso primeiro grande desafio, como preparadores de concurso, é fazer uma mulher preta entender que ela pode ser uma procuradora, uma promotora, uma juíza, porque ela foi forjada para pensar, desde cedo, nas escolas, que esses espaços não são para ela. Há muitos estigmas. E começar a tirar os efeitos psicossociais do racismo é o nosso primeiro plano.”

O nome Abayomi tem origem Iorubá e significa encontro precioso, ensina Juliana. Sua história vem dos navios que transportavam de nações africanas pessoas para serem escravizadas no Brasil. Durante a viagem, crianças que choravam muito, assim como os doentes, eram arremessadas ao mar. Para protegê-las, as mães rasgavam suas próprias roupas para fazer bonecas de pano, só com nós, sem costuras. E a partir dos tecidos das bonecas, era também possível identificar a etnia e muitas vezes localizar a criança, por exemplo, dentro dos quilombos. Abayomi era a maneira encontrada pelas mães para não perder seus filhos, muitas vezes separados delas logo ao desembarcar no Brasil.

“A partir desse encontro precioso, surgimos promovendo um encontro de forma aquilombada com outras mulheres, para buscar esse empoderamento de fato, com nós mesmas, com nossa identidade, sem o embranquecimento que essa sociedade racista nos impõe”, diz a conselheira da OAB-PE.

Juliana Lima se define como uma feminista interseccional, alinhada, entre outras, a autoras como as filósofas antirracistas Angela Davis e Sueli Caneiro, a jurista Ana Flausina (autora do livro “Corpo Negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro”), que tem denunciado injustiças carcerárias, e Chiara Ramos, a grande inspiração.

> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)

> Confira o Soberania em Debate com a advogada Juliana Lima, co-fundadora da Abayomi Juristas Negras, entrevistada pelo advogado e cientista político Jorge Folena e pela jornalista Beth Costa, ambos da coordenação do SOS Brasil Soberano

 

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