Militarização quer impor ultraliberalismo no Continente

Fernando Brito, Jandira Feghali, Olímpio Santos, Francisco Teixeira, Carol Proner (es.p/dir.)- Fotos: Camila Marins/Fisenge


Debate realizado no último dia 18, no Senge RJ, faz um balanço das estratégias golpistas no Continente.

A militarização está de volta ao Continente, e chega em diferentes modelos, muitas vezes combinados: pela tutela do Executivo por setores das Forças Armadas, como no governo Bolsonaro; como braço repressor e violento, como no Chile; ou em formas novas de intervenção que articulam também o Judiciário – no Equador e no Brasil — e as forças policiais ou paramilitares, de forma brutal na Bolívia. Em todos os casos, o objetivo é impor a agenda ultraliberal, sem democracia. A Colômbia, que derrotou o uribismo nas eleições locais realizadas em outubro, ingressou no campo da instabilidade nesta quinta-feira (22), com grandes manifestações de rua e uma greve geral contra o governo de Iván Duque.

O alerta para a volta dos militares aos centros do poder é da jurista Carol Proner, doutora em Direito Internacional e integrante da Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia (ABJD), que participou no último dia 18 do Café com Política, debate que abordou a “República em crise”, junto com a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e do jornalista Fernando Brito, do blog Tijolaço, e mediação do historiador Francisco Teixeira e do presidente do Senge RJ, Olímpio Alves dos Santos. A atividade faz parte da agenda Movimento SOS Brasil Soberano, ação de mobilização do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ),

“Nosso contexto de base é o capitalismo sem pacto democrático; não dá para considerar o que estamos vivendo, fora de um contexto de guerra geopolítica”, diz Carol. Segundo ela, é uma anarcopolítica, tem lawfare, mas o quadro é o mais amplo da guerra híbrida. “A anarcopolítica é o caos e as quebras institucionais provocadas das formas mais absurdas; de onde menos se espera – às vezes por Twitter, às vezes por um ato em que eles acabam roubando a cena de um debate público. Porque a produção do caos, administrado até certo ponto, joga a realidade para a correlação de forças, que, neste caso, acaba sendo favorável a essa própria força capitalista, financeira, que não precisa fazer pacto nenhum com direitos, com democracia, com participação social.”

A novidade no caso do lawfare, segundo Carol, está na sua aplicação militar. “O uso do Direito para fins de concentração de riqueza sempre existiu, mas seu uso mais recente é militar. Os EUA entenderam que um bom advogado internacional pode ser mais importante do que um estrategista militar. Isso está nos textos das Forças Armadas norte-americanas, sobretudo na Força Aérea, onde surgiu esse conceito.”

O golpe boliviano, contudo, inaugura uma nova forma de golpe, aponta Carol, e põe em xeque as organizações internacionais. “É um modelo novo, desavergonhado, escancarado, absolutamente violento. Com relação a qualquer convenção, pacto, no que diz respeito à democracia, não há como dizer que Evo Morales não sofreu um golpe.”

A deputada Jandira Feghali destaca, na Bolívia, além da violência “chocante” e da agenda liberal econômica, os componentes culturais, étnicos e de classe, evidentes no desprezo das forças de elite que tomaram o país aos valores dos povos indígenas, franca maioria nacional. “Na América do Sul estamos assentados sobre um vulcão, em uma ebulição absurda. E os instrumentos [de golpe] são muitos: bélicos, jurídicos, as simulações de legalidade ou de processo constitucional, como houve no Brasil.”
O jornalista Fernando Brito lembra que estão para serem iniciadas as negociações do Brasil com a Bolívia para renovação do acordo de gás. O golpe, nesse sentido, favorece diretamente o governo Bolsonaro — apoiador de primeira hora da derrubada de Evo Morales — e setores industriais brasileiros.

Grupo de Puebla
Para criar uma consciência jurídica internacional sobre o que está acontecendo na América do Sul, Carol Proner conta que o Grupo de Puebla, movimento político internacional que reúne líderes progressistas da América Latina e Europa, criou, na última reunião do grupo, no início deste mês, o Conselho Latino-Americano de Justiça e Democracia (Clajud), composto por 18 juristas, entre os quais a própria Carol e o ex-magistrado espanhol Baltasar Garzón.

O Clajud enviou à Organização dos Estados Americanos (OEA), no dia 12, um pedido formal de proteção para membros do governo Evo Morales e do Judiciário boliviano (leia a íntegra: https://www.conjur.com.br/dl/juristas-latinos-pedem-oea-proteja.pdf ). “Estamos intercedendo pelos ministros da Justiça, da Defesa, dos Tribunais Eleitorais da Bolívia que [desde o golpe que derrubou Evo Morales] estão incomunicáveis, mantidos na Embaixada do México, mas de forma muito vulnerável”, explica Carol.

A solicitação de medidas protetivas foi encaminhada ao secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), Paulo Abrão. “Têm o objetivo de evitar danos irreparáveis da vida, integridade e liberdade pessoal, um risco que provém da grave e urgente situação que enfrentam diante do contexto político-social que atravessa o Estado Plurinacional da Bolívia”, diz o ofício, assinado pelos membros do Clajud.

O Grupo de Puebla, embora relativamente novo, nasceu com força, especialmente devido ao “vazio de outros espaços”, avalia Carol. Em particular, como contraposição à OEA, que, de acordo com a jurista, “talvez esteja em um momento escancaradamente pró-imperialista, pela conduta de seus organismos internos”. Além dos presidentes eleitos do México e da Argentina, apoiam o grupo Evo Morales e Álvaro García Linera, presidente e vice derrubados no golpe boliviano, e também o ex-presidente espanhol José Luis Zapatero, parlamentares do Peru, do Chile, várias lideranças da área de relações internacionais. Do Brasil, participam, além de Carol Proner, a ex-presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula, e o ex-deputado Aloisio Mercadante, um dos idealizadores do grupo.

Mais de 30 presos políticos no Equador
Os integrantes do Clajud também produziram, recentemente, um relatório sobre o Equador, país onde Carol observa uma perigosa mudança de estratégia. Segundo ela, o lawfare está estendendo seu alcance para além do suposto combate à corrupção, passando a criminalizar a própria ação política dos opositores.

“Dado o paro nacional – a greve geral de 3 de outubro –, com apoio o movimento da Confederação Nacional de Indígenas do Equador (Conaie), aparentemente se faz no Equador um pacto parecido com o do Chile, em alguns aspectos”, explica Carol. “Também se decreta o Estado de Exceção, e se muda a acusação de corrupção para prisão política. As prisões políticas que eram por crime de corrupção, agora passam a ser feitas com a acusação de rebelião armada.”

Neste cerco da repressão, mais de 30 pessoas já estão presas, inclusive líderes indígenas e jornalistas. Entre elas, o dirigente do movimento correista Força Compromisso Social Virgilio Hernández, e Paola Pabón, a governante da província de Pichincha, onde se localiza a capital, Quito.

“Não estamos prestando atenção, mas no Equador temos prisão política. Algumas das pessoas presas estavam em casa, sequer foram às ruas, mas postaram no Twitter – o que implica a investigação, nestes casos, dos seus espaços privados de manifestação.” Hernández, por exemplo, diz Carol, é um professor, um intelectual, acusado de “rebelião armada” por ter feito postagens em rede social contra o governo.

A judicialização da política sob o pretexto de combate à corrupção sistêmica já produziu outras prisões e exílios, lembra Carol. O ex-presidente Rafael Correa e muitos dos seus aliados continuam impedidos de voltar ao Equador e não podem sair de onde estão asilados, devido aos tratados internacionais anticorrupção, outra estratégia de dominação internacional, explica a jurista.

Por isso mesmo, ela alerta que, no Peru, é muito perigosa a estratégia da esquerda de apoiar métodos similares aos lavajatistas contra opositores de direita. “A esquerda não pode flertar ou reforçar processos não democráticos, é preciso respeitar o devido processo legal. Não podemos flertar com o Estado de Exceção.”

Reações nas urnas e nas ruas
Para o historiador Francisco Teixeira, apesar da ofensiva da direita sobre o Continente, as reações avançam. “No início do ano, o Equador deu provas de não aguentar o processo ultraliberal implantado a partir de um plano regressista imposto pelo FMI; a Argentina soçobrou com o mesmo processo regressista e o projeto de Macri foi derrotado amplamente nas urnas; na Colômbia, o Centro Democrático, do presidente Iván Duque e do ex-presidente Álvaro Uribe, foi arrasado nas urnas, de ponta a ponta.”

Na Colômbia, Francisco Teixeira observa que a derrota do uribismo foi particularmente expressiva no departamento de Antioquia, origem do partido de Uribe, “fronteira onde se armam os ataques à Venezuela”. Um relevante sinal da insatisfação popular colombiana, destaca, foi a eleição – “num país ultramontano, terrivelmente católico” — da presidenta da Câmara de Bogotá, Claudia López, candidata progressista, lésbica, representante de minorias, pela Alianza Verde, om apoio do Polo Democrático.

No Chile, as manifestações iniciadas a 18 de outubro, durando mais de um mês, apesar da repressão brutal que deixou dezenas de mortos e mais de 200 casos de cegueira provocada por balas policiais, desmascararam os efeitos do modelo econômico defendido agora no Brasil pelo ministro da Economia Paulo Guedes.

A proposta do presidente chileno de um plebiscito sobre uma nova Constituição, contudo, na avaliação de Francisco Teixeira, é um retrocesso e um novo golpe nas demandas populares. “Houve uma mobilização intensa de rejeição ao pacto assinado pelos partidos, com exceção do Partido Comunista”, diz. “O Partido Socialista assinou o acordo e teve o prédio de sua sede incendiada. O pacto propõe uma nova Constituição, que deverá partir de um plebiscito a ser feita apenas em meados do ano que vem. Ora, sete entre dez chilenos exigem uma Constituição — agora. Com a saída do Partido Comunista, que corretamente preferiu se alinhar com as reivindicações populares, a Concertación (Coalizão de Partidos pela Democracia) está destruída. O pacto pelo plebiscito é extremamente reacionário, não dá conta do movimento de rua.”

Chance de paz na Venezuela
A Venezuela tem resistido aos esforços norte-americanos para derrubar o presidente Nicolás Maduro e parece reconstruir as condições de pacificação interna. De acordo com Carol Proner, comissão da ABJD enviada ao país avaliou que evoluem positivamente as disposições para uma negociação pacífica entre governo e oposição. “A oposição está disposta ao diálogo; para as forças políticas internas o uso do diálogo para a paz é considerado muito importante, um quadro totalmente oposto da Bolívia.”

A deputada Jandira Feghali informou que estão sendo averiguadas as responsabilidades pela invasão da embaixada venezuelana em Brasília, na madrugada de 13 de novembro, durante a reunião dos Brics no país.

A parlamentar ressalta que todo o movimento da extrema-direita no Continente busca impor a agenda neoliberal, a quebra dos Estados, perda de direitos, a total desregulamentação do mundo do trabalho. “Basta ver o último pacote de PECs. A PEC 905 é uma nova reforma trabalhista, com 45 revogações de direitos. Querem taxar o seguro-desemprego; ou seja, a taxação não das grandes fortunas, mas das grandes pobrezas para pagar dívida.” A saída, alerta, é a união efetiva do campo progressista”.

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