A disputa econômica para desbloquear o Brasil

Será preciso muita determinação para garantir que ocorram no Brasil as mudanças demandadas pelas urnas nas eleições que levaram Lula ao poder, e, junto com ele, o seu projeto de desenvolvimento econômico, deixando para trás o rentismo em prol da retomada dos investimentos públicos. A avaliação é de Paulo Kliass, formado em Administração Pública, com doutorado em Economia. “A primeira questão é a definição de uma vontade politica”, diz. “A população expressou um desejo de mudança, de recuperar o futuro. E o governo tem elementos da ordem econômica e política para tocar para frente.”

Kliass adverte que, fora do Brasil, nem os maiores representantes do capitalismo avançado estão obedecendo a regras rígidas do fiscalismo, que produziu aberrações com a Emenda Constitucional 95, conhecida como teto de gastos, que proibiu por 20 anos a expansão dos gastos públicos. “No mundo, já se percebeu que, do ponto de vista fiscal, o necessário é o governo ter uma política anticíclica, contracíclica. Porque, ao contrário do que os jornais e especialistas entre aspas dizem, a economia de um país não funciona como a economia doméstica, em que, se eu não tenho recurso, não posso gastar. O país pode fazer dívida pública, lançar tributos para gerar recursos, tem reservas internacionais – no caso do Brasil, mais de US$ 70 bilhões.”

Uma política anticíclica é aquela que contraria ou visa interromper um ciclo. Na economia, se refere a um conjunto de medidas para reverter ou atenuar os efeitos do ciclo econômico — no caso, do ciclo recessivo ou de estagnação da atividade produtiva. Concretamente, para o especialista, “sem aumento dos gastos públicos, não se consegue atravessar momentos difíceis”.

Assim, os principais países capitalistas do mundo, após as últimas crises, em 2008 e na pandemia, acordaram para a importância de recuperar o protagonismo do Estado no processo econômico e social. No Brasil, contudo, diz o especialista, as elites sabotam as chances de futuro do país, estrangulando o investimento público.

“A recuperação do Estado na economia tem dimensão ampla, e pode ajudar muito na restauração da capacidade de crescimento e de um desenvolvimento econômico redutor de desigualdade e ambientalmente sustentável”, explica o economista. “A gente está tratando de um problema muito forte e estrutural, que é a relação das elites empresariais e classes dominantes brasileiras com a questão econômica e social.”

Embora o país e grande parte do mundo tenha vivido nas últimas cinco décadas sob a hegemonia do Consenso de Washington, do neoliberalismo, da ideia de ajuste fiscal, privatização e Estado Mínimo, está em curso uma mudança clara de orientação. “No auge da crise de 2008 e 2009, o Estado americano virou acionista da General Motors, ícone do capitalismo”, lembra Kliaas, sugerindo, a esse respeito, o livro Estado Empreendedor, de Mariana Mazzucato. Na obra, a autora mostra como a consolidação das novas potências tecnológicas, nascidas no Vale do Silício, só foi possível com forte contribuição do governo dos EUA.

Para recuperar a capacidade de oferecer crédito às empresas no Brasil, devido à intransigência das elites e do BC, Kliass acredita que o presidente Lula precisará ter “uma posição mais incisiva”. Na sua avaliação, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e os presidentes do bancos públicos “não estão muito preocupados em reduzir os spreads e oferecer financiamento mais substantivo para áreas estratégicas”. Diferentemente do BNDES, diz ele, cujo presidente, Aloizio Mercadante, já teria adiantado que vai colocar o banco a serviço da democratização do acesso ao crédito.

É imprescindível, na opinião de Kliass, recuperar a capacidade de investimento público. “Precisamos acabar com essa inverdade de que o Estado não tem recurso”, afirma. Ele lembra que, para fazer superávit primário, o governo anterior obrigou o BNDES a devolver cerca de R$ 500 bilhões, que estavam disponíveis em caixa e poderiam servir para empréstimos e para fomento o desenvolvimento. “Os bancos privados não dão empréstimos com longo prazo. Com esses juros, é melhor para eles aplicar em títulos da dívida pública, do que em investimentos inovadores, que podem levar até 15 anos para amadurecer.”

BC e os juros fora da lei
Ao insistir nas taxas de juros mais altas do mundo, o Banco Central bloqueia as possibilidades de desenvolvimento nacional e descumpre a própria lei que regula sua atuação, critica Kliass. Ele ressalta que o BC é responsável por decisões de política monetária relacionadas ao controle da inflação, mas também ao emprego e à atividade econômica.

“Se formos seguir a lei, a diretoria do Banco Central, não está cumprindo a lei”, afirma. “O Banco Central e o Copom [Conselho de Política Monetária] não têm por atribuição ficarem exclusivamente preocupados com metas de inflação. Passamos décadas de hiperinflação, mas já superamos isso desde 94; já são quase 70 anos de estabilização relativa da moeda. E nessa lei para dar [ao BC] a independência e dar mandato [aos diretores], colocaram um detalhe copiado do FED [Federal Reserve, dos EUA]: o mandato do board, do comitê do FED, preocupa-se com a inflação, mas as taxas precisam ter como referência também o nível de atividade da economia e o desemprego.”

A dificuldade para enfrentar o descumprimento da lei, ou o que poderia ser considerada uma sabotagem ao país, diz Kliass, é, no entanto, institucional e política. Pela lei, só quem poderia revogar os mandatos da diretoria do BC – nove executivos, todos indicados na gestão Bolsonaro – é o Senado.

Petrobras
A presença do Estado no fomento à economia também pode vir na forma de regulações, aponta Kliass. Para atacar a inflação, por exemplo, ele destaca a necessidade de suspender a política de paridade de preços internacional (PPI) da Petrobras, que replica no país os aumentos de combustíveis no mercado externo. “Essa política desastrosa da Petrobras precisa mudar”, diz.

Observa, ainda, que houve aumento das tarifas de energia elétrica e dos alimentos, porque a gestão anterior tinha uma orientação de evitar qualquer regulação. Historicamente, lembra, o Brasil comprava e vendia alimentos para evitar aumentos especulativos ou sazonais nesses preços.

Também recomenda “superar um equívoco que foi a ilusão com os mercados internacionais”. Por exemplo, critica a abertura das ações da Petrobras na bolsa de Nova York, que estabeleceu limitações à gestão da empresa, sujeitando-a à interferência de acionistas minoritários. “A Petrobras não é uma petroleira privada, tem que obedecer a um projeto de país.”

A estatal, diz Kliass, precisa voltar a destinar os seus recursos para seus próprios projetos. Desde 2016, numa manobra do governo Temer, os lucros da Petrobras passaram a ser aplicados na forma de dividendos, para acionistas, “em vez de serem reaplicados num projeto de país”, critica o economista.

“É uma empresa de energia, que tem que pensar o futuro, e precisa de dinheiro. Só achou o [petróleo no] pré-sal, porque teve um acúmulo histórico de investimentos em pesquisa, ciência e inovação, dentro da cadeia de petróleo. E isso precisa ser recuperado. A maioria do capital é do governo federal. Os dividendos, em vez de irem para acionistas – que também não pagam um centavo de Imposto de Renda, por causa da lei de isenção para lucros e dividendos –, se a empresa tiver resultados positivos, superavitários, que sejam utilizados em investimento para dar continuidade e futuro a esses processos das novas tecnologias, novas reservas, o caminho oposto ao dos últimos seis anos.”

China
O novo governo abre oportunidades em várias frentes, acredita Kliass, e poderá fazer o Brasil reconquistar sua relevância internacional. Estão na pauta do governo Lula a articulação com países africanos, o aprofundamento da unidade do Mercosul, abrindo novos campos de negócios, em particular com a China.

“Estamos numa ordem multipolar, com emergência da Rússia, da China. Embora a Europa ainda seja muito dependente dos EUA e da questão da Otan, a longo prazo verificamos a decadência do modelo norte-americano e da importância cultural dos EUA, com emergência de novos atores. E isso favorece a inserção do Brasil. Rompe a lógica, ainda do FHC, de subserviência do país aos interesses dos EUA.”

Nesse sentido, o economista considera importante o encontro programado pelo governo com a China – de que Lula não pode participar por razões médicas –, e a inclusão do Brasil em projetos de infraestrutura internacionais. “O que é fundamental nessa lógica é que não seja uma troca de adesismo – dos EUA por uma adesão cega à China. Porque no jogo internacional não tem bonzinho. A China tem barreiras à importação de nossas carne, da soja… Tudo isso precisará ser negociado. Mas que não sejamos exportadores de matéria-prima e um importador de produtos industrializados manufaturados, de valor agregado. Isso era o que a gente fazia no século 19. Precisamos reforçar os setores geradores de emprego, que são portadores do futuro, no sentido da tecnologia e inovação – basicamente a área industrial e da economia do conhecimento, que estamos deixando para trás.”

> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)

> Confira o Soberania em Debate com Paulo Kliass, formado em Administração Pública, com doutorado em Economia, entrevistado pelo advogado e cientista político Jorge Folena e pela jornalista Beth Costa, ambos da coordenação do SOS Brasil Soberano

 

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