Reforma tributária penaliza consumidor e implode a Previdência

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O próximo lance do governo para consolidar o desmanche da rede de proteção social criada pela Constituição de 88, se forem aprovadas as reformas da Previdência e Trabalhista, será a Reforma Tributária. Desde o mês passado, um documento preliminar das propostas vem sendo discutido em fóruns empresariais em várias cidades do país. Similiar à que foi tentada em 2009, a reforma acabaria com dez impostos, entre os quais todos aqueles destinados a financiar a Seguridade Social (inclusive a Previdência), como a Cofins e a CSLL.

As diretrizes da proposta priorizam a tributação do consumo, uma opção que atinge principalmente a população de menor renda, para a qual têm maior peso relativo as taxações embutidas nos preços de comida,  roupa, aluguel, luz, serviços, adverte o cientista político Jorge Folena. Para ele, antes de reformar a arrecadação, é necessário entender para aonde vai aquilo que é arrecadado.

“O maior item no orçamento público são os juros. Antes da reforma tributária, o país precisa fazer a auditoria da dívida pública”, afirma. “A população tem que saber para o que está sendo destinado o dinheiro arrecado com os tributos. O governo não explica isto direito nem permite que se audite a dívida pública, como autoriza a Constituição de 88. Na verdade, quem paga maior parcela dos tributos do país são os cidadãos e não as empresas, que repassam os tributos sobre os produtos comercializados.”

Seriam extintos sete tributos federais (IPI, IOF, CSLL, PIS, Pasep, Cofins e salário-educação), o ICMS (estadual), o ISS (municipal), e o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). No seu lugar, a reforma instituiria um Imposto sobre Valor Agregado (IVA), incidindo sobre o consumo da maior parte dos produtos; e um Imposto Seletivo, aplicado sobre energia elétrica, minerais, combustíveis, transporte, cigarros, bebidas, eletroeletrônicos, eletrodomésticos, veículos, pneus e autopeças, um conjunto de 12 itens fornecidos por cerca de 1,5 mil empresas no país, de acordo com estimativa feita pelo relator do projeto, o deputado federal Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR). Cria também uma Contribuição sobre Operações e Movimentações Financeiras, com o propósito de “ajudar a sustentar a Previdência”.

Em uma primeira versão da proposta, o deputado Hauly afirma ter “o firme propósito de, no texto constitucional futuro, não destinar recursos genericamente para Seguridade Social”. Isso significa desmontar o modelo elaborado pela Constituição de 88, que estabeleceu um sistema composto por Previdência, saúde, assistência social e seguro-desemprego, de base tripartite (com contribuições de empregados, empregadores e Estado), apontando as fontes para sustentá-lo: além das contribuições na folha de pagamento, a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e a receita de concursos de prognósticos (as loterias). Modelo superavitário, não fossem as transferências de recursos para outras finalidades, principalmente para pagamento de juros da dívida pública.

“Nesse ponto, existe uma clara contradição entre a reforma da Previdência, que o governo diz ser necessária por falta de recursos para manter as aposentadorias e pensões atuais, e a proposta de reforma tributária, que visa diminuir as fontes de custeio da Seguridade Social (Previdência, Saúde e Assistência Social)”, aponta Folena. “Mais uma vez, torna-se claro que o governo Temer tem por objetivo desmontar as estruturas de proteção dos trabalhadores em favor do sistema financeiro.”

Hauly defende o “fim de toda e qualquer vinculação de receitas”. Sobraria para a Previdência apenas a contribuição sobre a folha de pagamentos de empregados e empregadores – insuficiente para financiar as aposentadorias –, e a contribuição sobre movimentações financeiras a ser criada na reforma. Para os demais pilares da seguridade, nem isso. No documento apresentado à Comissão da Câmara, em fevereiro, o relator reconhece, contudo, que a “posição pode se mostrar ousada demais para o momento”, e sugere vincular parcela da receita em impostos da União para compensar a extinção do salário-educação, com a mesma destinação, à educação básica pública.

“Da mesma forma, prevejo a necessidade de destinar determinada fração de receitas para financiar o seguro-desemprego e o abono salarial, uma vez que o PIS e o Pasep serão extintos”, escreveu. “Também penso ser convenientes a manutenção do piso mínimo de gastos com educação (art. 212), a destinação de recursos para o Fundeb (art. 60, ADCT) e a preservação do piso mínimo de gastos com saúde pública (art. 198), recalibrando-se, quando necessário, os respectivos percentuais.”

Concentração de renda
Para Jorge Folena, que também é advogado constitucionalista, estas medidas somadas às das reformas da Previdência e trabalhista destroem de vez o sistema de Seguridade Social brasileiro, e ferem a Constituição, que impede qualquer tentativa de reforma que viole cláusulas pétreas, como os direitos sociais da Previdência. “As contribuições sociais são tributos que visam assegurar os direito sociais relativos à previdência, à assistência social e à saúde, não podendo, desta forma, serem extintos, sob pena de implodir a Seguridade Social. Ao atingir mecanismos destinados à garantia de direitos individuais de cidadania, a proposta fere cláusula pétrea do texto constitucional, que não podem ser alterados por emenda (PEC), nos termos do artigo 60, capítulo IV.”

O Brasil precisa, na sua opinião, de uma reforma tributária que reverta o modelo concentrador, combata a desigualdade e permita que seja distribuída a renda entre todos os brasileiros que pagam tributos. Principalmente entre os mais pobres, que suportam a carga tributária sobre os alimentos, luz, remédios, vestuários, transportes etc. Para isso, deveria também aumentar a taxação de renda elevadas, por exemplo, reinstituindo os impostos sobre lucros e dividendos, extintos por FHC em 1996, sobre o qual o projeto do deputado Hauly é absolutamente omisso. Outra iniciativa importante seria reduzir, em contrapartida, os impostos cobrados sobre o consumo, que afetam ao conjunto da população. “O que se propõe agora é o oposto. O IVA sobre bens e serviços amplia a carga tributária de maneira indireta, transferindo o custo da tributação para o preço das mercadorias e dos serviços, pagos pelo povo no final da cadeia produtiva”, explica Folena.

Atualmente, segundo dados da Receita Federal relativos a 2015, a carga tributária sobre a renda (incluídas as faixas mais altas de remuneração) representa 5,97% do PIB e 18,27% do total arrecadados. Já os bens em serviços representaram 16,22% do PIB (mais do que o dobro da participação dos impostos sobre renda) e 49,68% da arrecadação. Entre os países da OCDE (veja os quadros no fim do texto), a carga tributária brasileira sobre bens e serviços é a segunda maior, atrás apenas da Hungria; e a menor de todas incidente sobre lucro, renda e ganho de capital. “A proposta alinhavada pelo deputado Hauly mantém o mesmo princípio, penalizando o consumidor”, avalia Folen""a.

De fato, na tributação da renda, a reforma seria discreta. Prevê somente duas alterações constitucionais: incluir a CSSL no Imposto de Renda sobre Pessoa Jurídica (IRPJ), chegando a uma alíquota entre 33% e 34%, e “permitir a cobrança do IR sobre o valor da verba indenizatória que supere o gasto ou patrimônio indenizado, acabando, assim, com estratagema comum de travestir renda em indenizações não tributáveis para fugir do pagamento do imposto.”

O deputado é ainda menos arrojado ao tratar do Imposto de Renda Pessoa Física. Acredita que “há algum espaço para aumento de alíquotas da tabela progressiva”, o que se traduziria na criação de um único degrau adicional, maior do que 27,5%, para as rendas mais altas. Mas o relator ainda parece ter dúvidas. “Porém, essa alternativa apenas penaliza quem já paga o imposto e traz ganho fiscal relativamente tímido, dada o pequeno número de contribuintes que oferecem à tributação valores mais expressivos na declaração de ajuste, conjunto composto quase exclusivamente por assalariados”, pondera, no documento levado à discussão. “Parece mais promissor explorar novas bases isentas ou pouco tributadas e fechar planejamentos tributários, inclusive os que incentivam a ‘pejotização’. Essa linha de estudo ainda tem que ser aprofundada, mas, salvo melhor juízo, não há necessidade de alterações constitucionais para empreender tais iniciativas.”

Também não há mudanças significativas na tributação sobre patrimônio ou propriedade, que, em 2015, foi 1,45% do PIB e 4,27% da arrecadação. Todos os impostos seriam mantidos (IPTU, ITR, IPVA, ITCMD e ITBI), com alíquotas uniformizadas. O que se pretende é a inclusão de embarcações e aeronaves na base do IPVA, excluindo a tributação sobre veículos de uso comercial destinados à pesca e ao transporte público de cargas e passageiros. E também a criação de um dispositivo que preveja reajustes mínimos da base de cálculo dos impostos municipais (IPTU e ITBI), em caso de omissão do legislador local.

Guerra fiscal
O projeto do deputado Hauly segue as mesmas bases do que foi levado ao Congresso em 2009, e também instituía um IVA sobre operações com bens e serviços, observa Folena. E mantém os seus principais erros. A diferença talvez esteja na forma idealizada para a partilha da arrecadação, que tenta driblar as resistências históricas da federação às reformas tributárias, e vencer a guerra fiscal.

Para isso, a proposta estabelece um longo período de transição – de 15 anos até a migração total para o novo modelo. “Ou seja, joga para frente o debate, numa manobra de aprovar a reforma”, avalia Folena. A grande dificuldade, porém, será convencer governadores e prefeitos de que suas entidades não perderão receitas. “O grande exemplo de perda de receita foi a Lei Kandir, que isentou as exportações do ICMS, sem que a União compensasse os prejuízos dos Estados, que acreditaram na proposta apresentada à época do governo FHC”, lembra Folena. Em entrevista à TV Câmara, o Hauly afirmou que, durante cinco anos, “Estados e munícipios não ganham nem perdem”, mantida a arrecadação líquida do último ano, ou a média dos últimos dois anos.

Inicialmente, a ideia da reforma era atribuir aos Estados e Distrito Federal os novos IVA e Imposto Seletivo. Mas, de acordo com um dos documentos sobre a reforma elaborados pelo relator, “as simulações mostraram um grave inconveniente nessa solução: o repasse de recursos dos Estados e Distrito Federal para a União, para compensar a perda de receitas pelo fim do PIS/Pasep, Cofins e IPI, seria da ordem de 40% da arrecadação do IVA e do Seletivo. Além disso, a esse percentual teria que ser acrescida a parcela dos municípios, superior a 20%, para repor o fim do ISS e a cota-parte de 25% do ICMS.”

Assim, o Imposto Seletivo foi destinado à União, e o IVA aos Estados, administrado por um “Superfisco”, cobrado na origem, onde o produto é fabricado, mas com receita distribuída com base no destino, onde o produto é vendido. Um sistema digital processaria arrecadação e distribuição. O presidente do IBGE, Paulo Rabello de Castro, em evento da entidade empresarial Fecomercio, ofereceu a infraestrutura do instituto para o controle desse processamento. E o deputado Hauly, na entrevista à TV Câmara, realizada a 21 de fevereiro, também afirmou ter recebido uma oferta de “doação” de um sistema eletrônico de cobrança, feita pelo empresário Miguel  Abuhab, dono da Neogrid, empresa de informática com sede em Santa Catarina, que produz sofware para gestão de cadeia de suprimentos.

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