Dia do combate à LGBTIfobia celebra liberdade de Chelsea. Mas a violência aumentou.

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Neste 17 de maio, Dia Internacional da Luta Contra a Homofobia, a Transfobia e a Bifobia, a soldado trans norte-americana Chelsea Manning foi solta, após sete anos de prisão por divulgar, por meio do WikiLeaks, informações sobre mortes de civis no Iraque por integrantes das forças dos EUA. A sentença e a crueldade aplicada pelo Estado no caso da soldado, uma mulher trans, que foi obrigada a cumprir pena em prisão masculina, reflete o quadro de violências cometidas no mundo contra a população LGBTI. O Brasil destaca-se como um dos países mais brutais, com o maior número de assassinatos de travestis e transexuais, e altíssima taxa de impunidade. “Uma vergonha e uma tristeza”, afirmou a representante da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman, durante evento de celebração do combate à LGBTIfobia, no escritório das Nações Unidas, nesta quarta-feira (17), em Brasília.

Em 2016, foram 343 mortes de pessoas LBGTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,Transexuais e Intersexuais). Uma a cada 25 horas, afirmou Nadine, citando dados do monitoramento feito pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) e pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (Rede Trans Brasil). Um terço das vítimas tem entre 19 e dez anos. Do total, 173 mortes foram de gays, ou pouco mais de 50% do total; 144 de travestis e transexuais (42%); 10 lésbicas(3%), 4 bissexuais (1%) e 12 parceiros de transexuais e travestis (T-lovers). O risco de as pessoas trans serem assassinadas é 14 vezes maior do que dos gays. A maioria dos crimes ocorreu na via pública, por tiro, facada, asfixia e espancamento; 34% pelas mãos de companheiros e ex-companheiros; 13%, por familiares das vítimas. E menos de 10% dos casos resultaram em processos de punição para os assassinos.

“O tema da impunidade nos crimes relacionados à população LBGTI é urgente”, advertiu a representante da ONU Mulheres, destacando que a discriminação é mais grave com mulheres trans ou lésbicas. Nesse sentido, Tatiane Araujo, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT), lamentou o Legislativo brasileiro não ter conseguido aprovar nenhuma lei que criminalize enfaticamente a violência contra essa população.

Ao contrário, há um recrudecimento da intolerância, na opinião de Georgiana Braga-Orillard, diretora da UNAids Brasil. Ela aponta, por exemplo, a existência de um projeto na Câmara dos Deputados que quer criminalizar a transmissão de HIV, penalizando e reforçando o preconceito em relação a uma condição médica. “Vemos um ódio cada vez mais aberto; a transformação da transfobia, da homofobia, em linha política, em que há um orgulho de discriminar. Não podemos aceitar.”

As questões de gênero e sexualidade, diz ela, devem ser tratadas desde cedo na sociedade, nas escolas, nas famílias, nas comunidades. “É parte da vida e de quem somos. Zero Discriminação é um objetivo, porque todos nascem livres e iguais, mas não morrem igual, como ilustra o caso da Dandara [Dandara dos Santos, travesti espancada e morta a tiros em 15 de fevereiro, em Fortaleza, Ceará].” Nos quatro primeiros meses de 2017, os dados de monitoramento das entidades da sociedade civil já indicam um aumento de 18% no número de assassinatos, em relação ao mesmo período do ano passado.

Censo trans
Contra a invisibilidade social das populações discriminadas e para apoiar iniciativas nas áreas de direitos humanos e combate à violência, que também possam ajudar a responder às suas demandas, algumas ações estão sendo desenvolvidas no sentido de levantar dados e informações mais precisas sobre seus integrantes. A Rede Trans Brasil abriu, no último dia 14, um questionário on-line para quantificar a população trans em todo país, de modo a subsidiar a cobrança de políticas públicas na área da saúde, educação, assistência social, segurança pública, entre outras áreas. O formulário, com 25 perguntas (que podem ser respondidas em menos de três minutos) estará disponível até 14 de agosto no perfil da rede no Facebook ou em link direto para o questionário.

Chelsea
A libertação de Chelsea foi comemorada em diferentes pontos do planeta como uma vitória dos movimentos LGBTI. Aos 22 anos, antes mesmo de ser julgada, Chelsea esteve em confinamento solitário por 11 meses e foi forçada a ficar nua, sem seus óculos, sofreu humilhação e privação do sono. Juan Mendez, relator especial da ONU sobre tortura, descreveu o tratamento dado a ela nessa ocasião como cruel, desumano e degradante. Foi condenada por corte marcial a 35 anos de prisão, com base em depoimentos sigilosos e “provas secretas”. Em 2016, tentou cometer suicídio duas vezes e fez uma greve de fome para denunciar as medidas disciplinares às quais foi submetida. Em janeiro, sua pena foi comutada por Barack Obama em um de seus últimos atos como presidente dos EUA, depois de enorme pressão popular, que incluiu petição com mais de 115 mil assinaturas.

Entre o vasto material divulgado por Manning, ex-soldado americana que esteve no Iraque como analista de inteligência, está o vídeo Collateral Murder. Trata-se de uma filmagem de soldados americanos a bordo de um avião atirando contra civis desarmados, matando pelo menos 12 pessoas — inclusive dois jornalistas da Reuters — e ferindo duas crianças. “Pela primeira vez, eu posso ver um futuro para mim como Chelsea”, afirmou, em nota divulgada na última semana. “Eu posso imaginar sobreviver e viver como a pessoa que eu sou e posso finalmente estar no mundo exterior. Liberdade costumava ser algo que eu sonhava, mas não me permitia imaginar plenamente. Agora, liberdade é algo que eu voltarei a experimentar com amigos e entes queridos depois de quase sete anos de barras e cimento, de períodos de confinamento solitário e de minha saúde e autonomia restritas, inclusive através de rotineiros cortes de cabelo forçados”.

Segundo Nadine Gasman, da ONU Mulheres, os direitos da população LGBTI estão explicitados nas diretrizes da ONU desde 2011, data da primeira resolução sobre orientação sexual e identidade de gênero da organização. Na época, ela lembra que um relatório da entidade constatou o padrão sistemático de violência e discriminação de forma ampla, na saúde, educação, no ambiente de trabalho, na incitação e ataques físicos à população. Um padrão que permanece. Em 2014, 78 países possuem leis para criminalizar relações consensuais entre adultos e adultas do mesmo sexo; cinco deles com pena de morte.

Comunicado da ONU
Em comunicado divulgado na véspera (16) do Dia Internacional contra a Homofobia, a Transfobia e a Bifobia, relatores especiais da ONU cobraram dos Estados-membros políticas que protejam os direitos das crianças trans. Para os especialistas, países devem implementar medidas pelo respeito à diversidade, como legislações contra a LGBTIfobia e a criação de programas educativos sobre orientação sexual e identidade de gênero.

“Infelizmente, em algumas famílias, crianças trans ou com identidade de gênero diversa permanecem estigmatizadas, excluídas, marginalizadas e rejeitadas. Muitas dessas crianças continuam sob risco de sofrer violência física, sexual e psicológica em comunidades e dentro das próprias famílias, incluindo os crimes cometidos em nome da ‘honra’”, alertaram os especialistas em direitos humanos das Nações Unidas.

Também observaram que a rejeição torna jovens trans mais suscetíveis a problemas de saúde mental, como a depressão e sentimentos de isolamento. Isso pode levar ao suicídio e à autoagressão, que são a terceira maior causa de morte evitável entre adolescentes, provocando cerca de 67 mil óbitos por ano, segundo os dados mais recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Os relatores avaliam que a simples existência de leis e regulamentos que criminalizam a expressão de gênero, incluindo as infrações por ‘cross-dressing’ (uso de vestimentos associadas ao sexo oposto) ou por ‘imitação do sexo oposto’ e outras medidas discriminatórias, têm impacto na liberdade e na segurança desses jovens e tendem a fomentar um clima de tolerância ao discurso de ódio, à violência e à discriminação, com impunidade. Também recomendaram às igrejas não difundirem mensagens negativas sobre pessoas trans e de gênero diverso.

(Informações sobre a libertação de Chelsea Manning, de Tiago Madeira, no site Juntos)

 

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