Reforma administrativa ameaça a educação pública


É preciso chamar a atenção para o impacto da reforma administrativa no setor educacional, seja na contratação de professores, seja na organização do sistema, alerta o historiador Rafael dos Santos, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com doutorado em Educação pela USP. Assim como na saúde e em outros segmentos, o educador, que tem forte inserção no movimento social, argumenta que não se faz uma política pública consistente com prestadores de serviços e colaboradores temporários. Na sua avaliação, se passar, a reforma será um desastre para a educação brasileira, que já enfrenta ataques do governo às universidades, crise de recursos, entre outros muitos problemas.

Rafael defende um modelo educacional que respeite a realidade e interaja de forma orgânica com as populações, apoiando e estimulando a transformação social. Ele participou do Soberania em Debate sobre “Revolução pela Educação”, no dia 20 de agosto, ao lado de Pedro Enrique Monforte, estudante de engenharia na UFRJ, que integra as Brigadas Populares e o Núcleo Estudante do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), e trabalha na criação de pré-vestibulares populares em comunidades e áreas vulneráveis do Rio, por meio do Coletivo Força Motriz, de engenharia popular, da UFRJ.

Entre as medidas que deterioram as iniciativas no país na área da educação, o professor da UERJ destaca a emenda constitucional que instituiu o teto dos gastos, e interrompeu políticas de expansão do acesso ao ensino público, que “apesar de algumas críticas, vinham fortalecendo o acesso das minorias”. Ele aponta, em especial, a transformação do Fundef em Fundeb, ampliando a destinação dos recursos para além do ensino fundamental, chegando à educação infantil e completando o ciclo do financiamento. “A PEC dos gastos barrou isso”, lamenta.

Rafael cita dados do Ministério da Fazenda, mostrando que, em 2019, em relação a 2015, último ano completo de gestão da ex-presidenta Dilma Rousseff, foram executados apenas 35,44% do orçamento para ensino superior. Os serviços para educação básica corresponderam a 56% das transferências para estados e municípios em 2015, e a 35,27% para o ensino profissional. O total destinado às despesas administrativas com educação – salários, material básico, recursos operacionais do MEC – foi de apenas 37,44%.

O professor da UERJ também rebate as alegações de que o gasto público é excessivo no país. “Para quem acha que o Estado brasileiro é caro, dados da Intrínseca Consultoria Ecomômica dão conta que, em 2014, o gasto público da França somou o equivalente a 54% do PIB; da Suécia, a 49%; do liberal Reino Unido, 40%; dos ultraliberais EUA, 31%, incluindo sua enorme despesa militar; e de 32% no Brasil”, compara o historiador.

A presença do Estado é fundamental, insiste Rafael. Ele observa que já existem soluções disponíveis para promover mudanças e melhorias relevantes na educação, que poderiam estar sendo implementadas. Por exemplo, ele lembra que o governo Bolsonaro vetou o uso do Fundo de Universalização das Telecomunicações (Fust) para apoiar a eduçacão a distância na pandemia, fonte que poderia estar financiando acesso banda larga nas escolas.

“O Fust é alocação programática; tem mais de R$ 30 bilhões contingenciados. Esse dinheiro é para ser aplicado na universalização das telecomunicações e podia ser aplicado na educação. Também o Fundo Setorial do Audiovisual tem alguns bilhões parados. Por que não destinar uma parte dele para produção de conteúdo voltado para educação? Games, seriados, filmes, com ampla liberdade de conteúdo.”

Ao contrário, diz Rafael, o que temos é retrocesso. Lamenta, nesse sentido, a extinção, por falta de recursos, da TV Ines, canal de televisão em Libras, produzido por surdo e para surdos, no Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines).

Militarização e privatização
Rafael compara a atual falta de políticas públicas na área, com as ações dos governos Lula e Dilma, no projeto Cultura Viva, dos ex-ministros Juca Ferreira e Gilberto Gil. “Nos governos Lula e Dilma, havia os Pontos de Cultura, que reconheciam a sinergia entre cultura e educação. Gil foi o maior ministro da Cultura das últimas décadas. Em segundo lugar, Juca Ferreira. E agora, neste governo, temos escolas cívil-militares, que o próprio governo reconhece que não poderá colocar em muitos lugares.”

O maior problema do projeto das escolas militares, contudo, diz o historiador, é que elas criam no imaginário da população “a ideia de que a militarização é uma coisa boa para a sociedade”. Ou seja,
“o que fica subjacente no imaginário, ao propor isso, é a ideia de que mais militar resolve. Enquanto deveria haver um movimento civilista.”

Outras ameaças à educação no país, segundo o professor da UERJ, são o PL 3076/20, que cria o programa Future-se, e o Projeto de Lei Novos Caminhos para o Ensino Mèdio. “Esses programas são a privatização da educação, estimulando uma lógica empresarial dentro das estruturas públicas da educação, passando a boiada.”

Segundo Rafael dos Santos, já existe um capitalismo acadêmico, no campo da educação e da pesquisa, que dá maior ênfase à quantidade de artigos e produzidos, do que à qualidade deles, “em um modelo de graduação e de produtividade que não estimula a solidariedade, o intercâmbio, o trabalho de campo, até o valor do ócio criativo; só estimula a competitividade.” Segundo o historiador, é um discurso baseado no conceito de “empreendedorismo”, que mascara uma “questão perversa”: “transfere para o indivíduo a responsabilidade por estar desempregado, a responsabilidade por se manter empregado.”

A educação virou uma commodity, na opinião do professor da UERJ. Ele observa que os grandes grupos econômicos assumem a educação privada, a ponto de o mesmo conglomerado ter diferentes marcas, para atender a diferentes grupos comportamentais: “uma mais conservadora para quem quer um conteúdo mais conservador, outra mais progressista”.

Luta popular
No extremo oposto das ações para mercantilizar a educação, a sociedade civil se movimenta para fortalecer a educação popular. A trajetória de Pedro Monforte passa pelo movimento estudantil, fazendo ação política fora dos muros da universidade, com diferentes projetos que buscam a transformação social. “No Rio, na luta popular junto às favelas, utilizamos a tecnologia que aprendemos dentro da universidade a favor das pessoas”, explica.

Um dos principais projetos nessa direção é o de educação popular, iniciado há três anos, na Rocinha. “A Rede de Educação Popular já tem quatro cursos pré-vestibulares comunitários”, conta o estudante. “Acreditamos que a luta por educação é uma pauta estratégica para a esquerda. Não só por ser uma pauta popular, ainda mais entre a juventude, uma das faixas de trabalhadores que mais sofre, mas também porque não existe nenhum processo de transformação, revolucionário, que se sustente sem educação. É preciso ter intelectuais orgânicos, militantes populares, que vivem a luta no cotidiano para sobreviver e ter boas condições de vida. É fundamental esse envolvimento, para recompor a capacidade da esquerda de ter base social e identidade popular, capaz de organizar a luta.”

Para Pedro Monforte, “lutar pela educação pública é lutar pela dignidade”. Os cursos de pré-vestibular acontecem em comunas, centros de educação popular, onde acontecem vários projetos – de economia solidária, organização das mulheres, centros de debates e de referência de construção política.

> O Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ).

> Assista na íntegra ao Soberania em Debate com o historiador Rafael dos Santos e o ativista da educação popular Pedro Monforte, entrevistados pelo advogado e cientista político Jorge Folena e pela jornalista Beth Costa, coordenadora do SOS Brasil Soberano.

 

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