PL da “queima de arquivo” propõe destruição de provas documentais e acesso privado a dados públicos

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Imagine que uma pessoa tenha adquirido um lote de terra no Mato Grosso, operação comprovada por um único arquivo digital, armazenado em uma base de dados local ou nacional. Um dia, invadem o sistema e alteram os dados desse arquivo; o proprietário perde o direito à terra, e ainda terá que pagar pelo uso até aquele momento de um terreno que, agora, segundo o documento adulterado, tem outro dono. Este é apenas um dos muitos riscos e danos à sociedade apontados pela historiadora Beatriz Kushnir, caso seja aprovado o Projeto de Lei da “Queima de Arquivo” (PL 7920/2017, antigo PLS 146/2007), que prevê a destruição de documentos públicos originais após sua digitalização. Contra o PL, o Fórum Nacional das Associações de Arquivologia do Brasil, o Conselho Nacional de Arquivos, o Grupo Tortura Nunca Mais, a Auditoria Cidadã da Dívida, dentre mais de 20 entidades, lançaram uma campanha de mobilização e abaixo-assinado nas redes.

O projeto trata da digitalização em mídia ótica ou eletrônica de documentos sob a guarda de órgãos da administração pública federal, estadual e municipal, e também de entes privados. E estabelece a possibilidade de os originais, uma vez digitalizados, serem “eliminados”. “Ao legalizar a destruição dos documentos originais após sua digitalização, a garantia de autenticidade dos documentos públicos poderá ser duvidosa e discutível, impossibilitando futura verificação no caso de suspeita de fraudes, o que pode ser considerada uma verdadeira ‘queima de arquivo”’, afirmam as entidades no site ‘Queima de arquivo não’.

“Não há uma experiência dessa em nenhum país do mundo”, alerta Beatriz. Ela contesta uma das principais justificativas do PL, a redução de custo. “Não é verdadeira que a solução digital é mais econômica. O storage (dispositivo de armazenamento digital) dura três anos, após o que precisa ser migrado, instalado em ambientes de processamento de dados que exigem investimentos altos em segurança, para garantir a confiabilidade e a integridade das informações.”

Outro problema do PL é permitir que cartórios e firmas particulares de digitalização façam a passagem do documento para suporte digital. “Transfere para o setor privado um trabalho que é da esfera pública, inclusive onerando o Estado, porque será preciso contratar essas firmas para uma atividade que os arquivos públicos já realizam”, diz Beatriz. A terceirização, na opinião dela, também significa perder o controle sobre os dados documentais e inviabilizar o trabalho dos arquivos.

A atuação dos arquivos públicos é regulada pela Lei Nacional de Arquivos (nº 8159/91). Já a Lei 12.682, de 2012, dispõe sobre a elaboração e o arquivamento de documentos em meios eletromagnéticos, e indica, de forma clara, que documentos originais não podem ser descartados no processo de digitalização. Na época da tramitação da lei, Beatriz lembra que se tentou a mesma manobra proposta agora no PL, mas, alertada pelo Conselho Nacional de Arquivos e outros especialistas do setor, a então presidenta Dilma Rousseff vetou a possibilidade de destruição dos originais, devido ao risco de insegurança jurídica. “Cada um dos arquivos públicos, nas suas diferentes instâncias, tem políticas de gestão de documento, faz um trabalho diário dentro dos órgãos públicos, treinando pessoas nas secretarias, nos ministérios, orientando como construir tabelas de temporalidade.”

Grupos como a Comissão da Anistia, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos e o Grupo Movimento Tortura Nunca Mais, que reúnem documentos e provas para cobrar do Estado reparações pelos crimes e violações de direitos humanos cometidos contra os cidadãos, bem como outros movimentos que lutam pela transparência pública e combate à corrupção, como a Auditoria Cidadã da Dívida, correm o risco de terem os seus esforços comprometidos, uma vez que dependem de documentos autênticos e confiáveis. Além disso, o Projeto pode impedir a investigação de escândalos políticos e econômicos, diante da possibilidade da falta de provas.

O PL 7920/2017 já foi aprovado no Senado, onde tinha o número PLS 146/2007. Como ganhou emendas, voltou à Câmara para tramitação. Segundo Beatriz, que também integra os quadros do Programa de Pós-Graduação em Gestão de Documentos e Arquivos da UniRio, as entidades contrárias à proposta pretendem pedir uma audiência pública sobre o PL quando ele chegar à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC).

Clique aqui para assinar o abaixo-assinado e conhecer a campanha Queima de arquivo, não

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