Desafios de um novo tempo: como o mundo e o Brasil vêm se preparando para a revolução tecnológica da Inteligência Artificial Generativa

Até poucas décadas atrás, novas tecnologias, mesmo as mais disruptivas, surgiam em um ritmo que permitia o acompanhamento por regulações que buscavam garantir que o uso de novas ferramentas e plataformas não causassem mais dano que ganhos para a humanidade. Com o advento da internet e dos computadores, tudo mudou. Enquanto nos debruçávamos sobre temas importantes relacionados à rede mundial de computadores, surgiram os smartphones e as redes sociais, alterando profundamente, mais uma vez, as relações, a economia, a política entre tantas outras áreas das nossas vidas.

Agora, repetimos o ciclo: enquanto ainda se debate a regulação das redes sociais, outra grande transformação digital se instala rapidamente e alcança a humanidade sem nenhuma preparação para isso. O ano de 2023 e, principalmente, o de 2024, ficarão marcados por novas formas de nos relacionarmos com o mundo graças à Inteligência Artificial – IA (ou AI, na sigla em inglês).

Segundo o professor Juliano Maurício de Carvalho, doutor em comunicação e vice-coordenador do curso de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia da Unesp, embora desde a década de 50 já convivamos com a programação de máquinas para responder perguntas após acessar uma determinada base de dados, o que o Chat GPT, Bard e outras plataformas de inteligência artificial trouxeram em 2023 é uma revolução que impactará diversas áreas de nossas vidas.

A capacidade atual das IAs de dialogar com linguagem simples e direta e, a partir disso, executar trabalhos complexos, como a criação de imagens hiper-realistas ou a redação de textos sobre os mais diversos assuntos é apenas a ponta do iceberg. “Ocorre que o nível probabilístico das inteligências generativas é ainda mais sofisticado que das suas versões anteriores. Se elas faziam uma quantidade determinada de cálculos, agora fazem 100 vezes mais. E a próxima fará um milhão. A AI generativa cria essa possibilidade de interconexões com milhões de probabilidades a partir de um grande acervo”, explica Juliano.

Impactos inevitáveis

O professor destaca que “até 300 milhões de empregos em tempo integral em todo o mundo podem ser automatizados de alguma forma pela inteligência artificial”. O dado é de um relatório recente do Goldman Sachs, que alerta que 18% do trabalho global poderia ser informatizado. “O CEO da Microsoft disse na última semana que devemos pensar em semanas com três dias de trabalho e não quatro dias, como vem sendo debatido no mercado. O que ele está dizendo com isso é que a AI vai impactar de tal forma nossos postos de trabalho que enfrentaremos situações muito complicadas”, aponta o professor.

Aplicativos de entrega de comida e de transporte individual já dão o tom da precarização que o estabelecimento da IA generativa pode trazer: a comodidade de receber compras em casa e se deslocar de carro pela cidade pagando valores baixos, somados à pandemia, geraram, segundo Juliano, uma espécie de insensibilidade quanto a essas questões na sociedade. “Há um conjunto de relações acontecendo aí, que tiram postos de trabalho, precarizam funções e colocam pessoas em condições aviltantes. É algo que está centralizado em um poder econômico que nem está no nosso país, em larga medida”, destaca.

Outra preocupação relacionada à AI está na sua capacidade de gerar imagens fotográficas realistas onde pessoas reais aparecem em situações que jamais aconteceram. Em março, imagens do Papa Francisco usando um casaco “puffer”, tendência na moda, viralizaram nas redes sociais. Segundo as publicações, o mandatário da igreja católica havia contratado um estilista. A imagem, no entanto, era um deep fake, nome dado a conteúdos que são falsos, mas realistas a ponto de ser difícil determinar sua falsidade. Naquele mesmo mês, circularam fotos do ex-presidente americano, Donald Trump, reagindo a policiais que tentavam prendê-lo. Em outra imagem, Vladimir Putin, presidente da Rússia, aparecia ajoelhado beijando a mão do presidente chinês, Xi Jiping. Nenhuma das imagens era real.

“Hoje, em cinco minutos, podemos criar um vídeo onde uma pessoa aparece falando, com a voz dela, sem que a pessoa em questão jamais o tenha gravado. Isso pode ser catastrófico para a humanidade. Pode ser utilizado não só do ponto de vista político, mas por alguém que queira prejudicar pessoas e seus patrimônios. Isso precisa e está sendo observado nas regulações, inclusive com responsabilização de quem produz esses conteúdos”, declara Juliano.

Regulação, diálogo e literacia digital

Para proteger cidadãos e cidadãs dos impactos negativos que a nova tecnologia pode trazer, parlamentos de todo o mundo discutem a questão e avançam com as suas regulações, colocando os direitos no centro do debate. “A Comunidade Europeia já vem debatendo isso há 5 anos e acabou de soltar a sua regulação. O governo americano também colocou seus critérios regulatórios. A China também já tem sua legislação sobre o assunto. Temos uma manifestação formal da Unesco a respeito dessa regulação e acabamos de ver a Academia Brasileira de Ciência soltar uma manifestação sobre a inteligência artificial. Na última semana, a CUT falou sobre isso. Um aspecto muito comum em todos esses esforços é que o Estado precisa ter uma voz sobre o assunto”, explica Juliano.

No Brasil, o Congresso Nacional debate três projetos que tramitam na Câmara dos Deputados. No início de 2022, o senador Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso, construiu uma comissão de especialistas para se debruçarem sobre o tema ao longo do ano de 2022. Eles produziram um relatório importantíssimo a partir de várias audiências com especialistas nacionais e internacionais nas mais diferentes áreas da AI. O resultado foi um documento de 800 páginas, que levou a um substitutivo apresentado no começo de 2023 tratando do tema. Nos parece que é o ponto de partida mais maduro, com maior espelhamento com as políticas da União Europeia e com o que está sendo discutido nos organismos multilaterais no mundo inteiro sobre a temática da AI”, comemora Carvalho.

O professor alerta, no entanto, que apenas a regulação por si só, não será suficiente para enfrentar os problemas que podem escalar, principalmente, em períodos eleitorais marcados pela polarização. “Não adianta o Estado delimitar responsabilidades e limites se não empoderarmos a sociedade. Se tínhamos uma tarefa hercúlea com a educação graças às mídias sociais, a AI vai colocar isso exponencialmente. Precisaremos investir em literacia digital. Temos duas responsabilidades: uma, que diz respeito a preparar a sociedade e, outra, uma conversa franca e objetiva com todas as mulheres e homens que são desenvolvedores de algoritmos para essas inteligências. Há uma responsabilidade enorme nas linhas de programação. Estes profissionais, em larga maioria, não estão sediados em território nacional. Essa é uma conversa também sobre soberania”, explica Juliano e completa: “Como essas bases estão sendo alimentadas? Elas têm livros brasileiros? A música popular, o conhecimento arquitetônico do país está lá? Nossa sabedoria popular vai ser incorporada? Ou vamos ‘evangelizar’ uma nova sociedade a partir de uma cultura que está sendo pensada por grandes computadores que guardam esses conteúdos em outros lugares do mundo? Isso tudo está sobre a mesa como um desafio que nós precisamos enfrentar”.

Apesar das múltiplas possibilidades de impactos e mudanças drásticas no cotidiano de todos, Juliano destaca que não há necessidade de olhar a questão como algo apocaliptico. “A agenda é enorme e traz cenários difíceis, mas tenho uma grande esperança de que podemos lidar com isso. Não acredito nessa senciência, nesse medo de que a AI tome o rumo da história sozinha. Somos mulheres e homens e a história ainda é nossa. A tecnologia tem que estar a serviço disso. É nesse mundo que eu acredito”, finaliza.

O programa Soberania em Debate é um projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro – Senge RJ, transmitido ao vivo, pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social Jorge Folena, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lígia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais de Ana Terra. O programa também pode ser assistido na TVT aos sábados, às 17h e à meia noite de domingo.

Para acessar o documento com as recomendações da Academia Brasileira de Ciências sobre a Inteligência Artificial, clique aqui.
Para conferir o programa na íntegra, clique aqui.

 

Texto: Rodrigo Mariano
Fotos: Microsoft Bing e Chat GPT/Microssoft (Destaque), Reprodução Academia Brasileira de Ciências. 

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