“A contaminação deixada pela extrema direita é grande, mas é importante comemorar: negros, mulheres e jovens empobrecidos salvaram o Brasil”, analisa Michel Gherman

Entre derrotas e vitórias. É assim que o professor Michel Gherman, do Departamento de Sociologia e do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e do programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS) da UFRJ, navega em sua análise sobre a nova extrema direita brasileira.

Convidado do programa Soberania em Debate de 07 de dezembro, Gherman chamou atenção para dois fatos inegáveis: o amplo espaço conquistado pelo bolsonarismo, contaminando não apenas estruturas da sociedade civil, mas também, e principalmente, autarquias e instituições do poder público; e a cadeia de defesa da democracia formada majoritariamente por pretos, mulheres e jovens pobres, negando aos radicais o domínio completo sobre a massa. E, sem a adesão da massa, a extrema direita definha.

“A gente nao pode esquecer que, apesar de termos visto a conquista de setores importantes nas camadas médias baixas pelo bolsonarismo, o que garantiu a vitoria do Lula foi uma cadeia de defesa da democracia formada basicamente por tres grupos: negros, mulheres e jovens empobrecidos. É muito importante celebrar essa corrente de defesa da democracia formada menos por partidos, por articulações políticas e mais pelos elementos mais fundamentais da resistência da população brasileira. Foi isso que impediu a destruição do país”, destaca Gherman.

Enquanto o governo eleito ainda lida, com dificuldade, com a descontaminação das instituições, espaços democráticos engolidos pelo fascismo através de sistemáticos aparelhamento e ideologização, a sociedade civil também enfrenta seu papel no pós-fascismo. Na camada média e média-baixa da população, persiste em grupos menos numerosos, mas ainda cheios de potência destrutiva, uma lógica apaixonada movida a ressentimento e a uma percepção de mundo que imprime em mentes e corações uma suposta perda de privilégios à medida que pessoas antes excluídas passam a alcançá-los.

“Estamos vendo hoje o tamanho da contaminação. Acho que até mesmo Lula tomou um susto quando viu o tamanho do problema. O governo está tendo que desbolsonarizar estruturas importantes enquanto é obrigado a dialogar com a extrema direita que segue existindo e que mostra que veio para ficar. As lógicas que levam ao fasciscmo são muito vinculadas a percepções e sentimentos”, aponta o professor. “Não é possível entender a extrema direita sem compreender como grupos muito importantes da classe media se transformaram em defensores do bolsonarismo frente a revolução da profissionalização de uma camada que era excluída dos direitos, como as empregadas domésticas. A extrema direita foi nutrida pelo ódio e pelo ressentimento de setores que viram essas pessoas historicamente desvinculadas de seus espaços, frequentando aeroportos, por exemplo”, explica.

Projeto e financiamento

O planejamento e o financiamento, por meio da aproximação de interesses financeiros, são elementos fundamentais na construção do fascismo. Segundo o professor, o que se materializa na campanha de 2018 é o resultado final de um trabalho que vinha sendo progressivamente desenvolvido nos anos anteriores, seguindo a lógica do entrismo. Espaços da sociedade foram sendo ocupados e moldados com base na crença na falência política. Em diversos setores profissionais, sindicatos, associações de classe, conselhos foram sendo ocupados para servirem de base de sustentação da lógica fascista. “Nós ocupamos os espaços progressistas de representação por 30, 40 anos e, de repente, em cerca de cinco anos, começamos a ver a inversão disso. Isso não acontece de maneira espontânea: é projeto. A extrema direita não acredita no espaço público, mas ocupa o espaço público. Faz isso porque acredita que ele sempre foi domínio da esquerda”, destaca.

Em ritmo acelerado, psicólogos, advogados, médicos passaram a conviver com uma dimensão conspiracionista, segundo a qual, a partir da intervenção da esquerda nessas categorias, se promoveria a hiper sexualização, espaços jurídicos viciados e um ensino ideologizado. Ainda que abrandados pela derrota nas urnas, alguns desses espaços ainda não conseguiram se livrar de grupos que insistem em sua ocupação.

Por trás desses movimentos orquestrados, há um financiamento robusto capaz de transformar bravatas de grupos de Whatsapp em tentativas de golpe de Estado, como a de 8 de janeiro. Gherman explica que, a exemplo da Alemanha e da Itália na década de 1930 e 40, e da própria ditadura militar brasileira, existem vínculos profundos entre a extrema direita e a direita liberal, que assume o papel de linha auxiliar em troca de ganhos táticos.

“Elas dividem um medo da intervenção estatal pela esquerda, do desenvolvimentismo, do financiamento a partir da presença do Estado e de uma economia mais inclusiva. É aí que entra o apoio de grupos poderosos, que se colocam como barreira a qualquer política de representação popular e de distribuição de renda. São grupos vinculados a interesses econômicos muito específicos, que beneficiam a parte não produtiva da economia, ou uma parte que, embora produtiva, não se enxerga como parte da economia geral, contribuindo com impostos para melhorias efetivas. Para encontrar esses financiadores, basta olhar os autos do processo do 8 de janeiro. Ali estarão aqueles seguraram a mão de Bolsonaro e só largaram quando Bolsonaro, primeiro, largou a mão deles”, explica Gherman.

Desconstruindo o letramento fascista

O esforço coletivo para arrancar raízes que mergulharam fundo no imaginário brasileiro exigirá um desletramento no fascismo e um reletramento democrático. A lógica a ser eliminada precede o próprio bolsonarismo: vem sendo construída ao longo dos anos por jornais e programas da TV aberta conhecidos por “pingar sangue”, cuja linha editorial se resumia em violência, apoio à truculência policial e completo desprezo pelos direitos humanos. Algumas denominações mais virulentas das igrejas neopentecostais também participaram deste processo. Juntas, essas dimensões criaram, fortaleceram e popularizaram uma linguagem e, mais tarde, uma gramática fascista.

“A partir de uma ideia de comunicação empobrecida, cruel, rústica, sem metáforas e absolutamente direta, cria-se uma linguagem que estabelece uma gramática fascista. Demorou para a esquerda entender e vem daí o nosso atraso: nós entendíamos as palavras porque os significados eram os mesmos, mas não o uso delas, porque os significantes eram outros. É uma gramática que vincula a ideia de direitos humanos a ‘mi mi mi’. A de direitos da população LGBTQIA+ com doutrinação e sexualização. O termo ‘petista’ estava vinculado a ideias de degeneração moral, perigo, a dimensões conspiracionistas. É um letramento sofisticado que foi sendo produzido pela grande mídia, não pelas redes sociais, como muitos acreditam”, destaca Michel.

Futuro de luta e pedagogia

O diálogo, segundo Gherman, é o caminho para reverter o estrago que o fascismo causou no Brasil no final dos anos 2010 e início de 2020. Segundo ele, espaços como as igrejas precisam de mais atenção da esquerda. “A gente tem algumas questões fundamentais como a percepção das igrejas como inimigas. Precisamos dialogar com as pessoas que estão nesses espaços, produzindo a superação da pauta moral como referência única, vinculando o debate à possibilidade de desenvolvimentos humanos econômicos. Ou seja, as pessoas com mais capacidade de se financiar podem garantir mais direitos, inclusive para articular-se nas suas próprias igrejas.

Para ele, a esquerda está em um bom caminho, desconstruindo a extrema-direita e evidenciando suas contradições, mas precisa construir uma nova gramática que, a partir de um letramento antifascista, democrático, inclua as massas e produza entendimento. A disputa por formas de falar e de dizer, destaca o professor, é muito importante na  produção de uma reflexão sobre o futuro mas, na disputa do presente, é preciso alcançar mais pessoas.

“Precisamos fazer com que os grupos que não estão nos entendendo passem a nos escutar. Porque nem escutando eles estão. Tenho muito medo de uma perspectiva arrogante da esquerda. É preciso dialogar olhando no olho dos nossos maiores aliados, que são justamente aqueles que impediram a consolidação da extrema direita no brasil: os pretos, os pobres, os jovens, as mulheres, as camadas populares. Essas são as nossas grandes garantias de democracia. Em um diálogo honesto, aberto e não preocupado em garantir a nossa agenda cultural, a gente pode fazer com que eles sejam novamente fundamentais para que a vida de todos nós seja melhor e não o inferno que foi durante o governo bolsonarista”, finaliza.

O programa Soberania em Debate é um projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro – Senge RJ, transmitido ao vivo, pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social Jorge Folena, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lígia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais de Ana Terra. O programa também pode ser assistido na TVT aos sábados, às 17h e à meia noite de domingo.

 

Texto: Rodrigo Mariano/Senge RJ

Fotos: Marcelo Camargo/Agência Brasil (Destaque), Agência Senado, Secretaria Especial de Cultura e bpk/Reprodução e Elineudo Meira/Reprodução Brasil de Fato.

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