Alianças e mobilização contra ameaça de golpe, defende Dirceu

O ex-ministro José Dirceu é entrevistado pelo advogado e cientista político Jorge Folena, e pela jornalista Beth Costa, da coordenação do SOS Brasil Soberano

Tudo indica que os militares que chegaram ao poder por meio da eleição de Jair Bolsonaro podem não querer sair do governo, o que torna ainda mais relevante “construir alianças mais amplas que a esquerda e principalmente apostar na mobilização popular”. Essa é a avaliação do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, que participou do Soberania em Debate, realizado pelo Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro, no dia 18.

Segundo ele, o Brasil vive ao mesmo tempo um momento “de definições e de impasse”. De um lado, a retomada das mobilizações e a volta do ex-presidente Lula ao campo eleitoral; de outro, a ameaça de golpe que paira sobre o país. “É uma situação preocupante, mas não vejo condições políticas para um golpe militar no Brasil”, afirma. “A mobilização popular e a unidade das forças democráticas podem sustentar o processo eleitoral até a vitória e a posse de quem vencer.”

Dirceu cita artigo da jornalista Maria Cristina Fernandes, do jornal Valor Econômico, que sistematizou as menções à intervenção militar nos discursos de Bolsonaro. “Uma aliança democrática para impedir isso, garantir o calendário eleitoral, cada dia se torna mais necessária. Não sei até onde Exército, Marinha ou Aeronáutica vão sustentar o governo ilegal e inconstitucional do Brasil. É bastante improvável, mas não impossível.”

Ele acredita que não haverá “espaço” a nível internacional para um golpe militar, que também produziria reações das oposições em várias cidades brasileiras. “O que eles vão fazer? Fechar o país? Reprimir? Censurar a imprensa? Fechar os outros Poderes?” A alternativa ao confronto, na avaliação do ex-ministro, seria o governo contar com o apoio do Judiciário e do Legislativo, como no golpe que afastou a presidenta Dilma Rousseff, agora já desmoralizado, como a Lava Jato ou as denúncias de “mensalão”.

O “fato histórico mais importante”, na análise de José Dirceu, é o reconhecimento da suspeição do juiz Sergio Moro, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e a anulação dos processos da 13ª Vara Federal de Curitiba contra Lula. “É o início da exposição das vísceras apodrecidas da Lava Jato, inclusive da ação ilegal e inconstitucional dos procuradores da operação.” A presença de Lula na política, ressalta o ex-ministro, acabou desaguando na retomada das ruas. “A manifestação de 29 de maio e a de 19 de junho mostram que, finda a pandemia, haverá um grande movimento político. Bolsonaro sabe disso e também os militares que o sustentam e o apoiam. Porque este é um governo militar. E os discursos de Bolsonaro, ultimamente, têm se dirigido ao Exército, aos militares.”

Dirceu tem certeza de que Bolsonaro perderá as próximas eleições. A oposição ao presidente cresce, e não apenas por causa da política econômica ou da pandemia. “Quando ele ataca a cultura e as universidades, corta investimento de ciência e tecnologia, quando ele se expressa com machismo, racismo, quando traz militares para a política, ele vai acumulando oposição”, diz.

Não se sabe, alerta, “é até onde Bolsonaro irá em busca de uma desestabilização do país e da inviabilização das eleições, ou para criar as condições para a fraude”. Nesse contexto está a campanha da extrema direita pelo voto impresso, que só serviria “para fraudar, abrir milhares de contestações judiciais e colocar em dúvida as eleições, a não ser que haja uma diferença de 10 milhões, 15 milhões de votos”.

A estratégia bolsonarista inclui implantar o medo, com ameaças e a ostentação da crescente presença militar na política. Por exemplo, na entrevista dada à revista Veja pelo presidente do Superior Tribunal Militar (STM), general Luis Carlos Gomes Mattos, que criticou os opositores do governo de estarem “esticando demais a corda”. Ou na crise com o general Eduardo Pazuello, que participou de manifestação política, em carro de som, ao lado de Bolsonaro, o que é proibido a oficiais da ativa. Nesse caso, Dirceu avalia que, na pior das hipóteses, os coronéis e os capitães se impuseram. “Na melhor das hipóteses, o Alto Comando, para não ter outra crise institucional com Bolsonaro – porque eles teriam que renunciar –, preferiu não punir o general.”

“Há uma zona cinzenta aí muito grave”, aponta. “Por isso houve uma aliança tão ampla no país contra o Bolsonaro. Os ex-ministros de Justiça, do Meio Ambiente, da Defesa, dos Direitos Humanos já fizeram manifestos comuns. O Lula se encontrou com o Fernando Henrique, muitas medidas do governo não passaram na Câmara; o STF tem colocados limites a ele, aos seus abusos, às tentativas de governar por decreto, impor censura, Escola sem Partido, colocar fim à autonomia das universidades, além das questões ambientais, ligadas aos indígenas e outras questões.”

O ex-ministro petista lembra que há um ano e meio já alertava sobre os riscos de desconsiderar o histórico das Forças Armadas, a confissão pública do general Eduardo Villas-Boas, no seu livro de memórias, de ter pressionado o STF a não conceder habeas corpus a Lula; os artigos que o vice-presidente, general Hamilton Mourão, no jornal Estado de S.Paulo, e as declarações do próprio Bolsonaro. “Evidente que houve uma intervenção das Forças Armadas; voltou a haver saída dos quartéis”, diz. “Os militares gostaram do poder. Foram chegando, chegando e sentaram. E não vai ser fácil [vê-los] sair.”

Base social armada
Além disso, ressalta Dirceu, está claro que o bolsonarismo usa a flexibilização da política de acesso às armas para equipar uma base social importante – na casa de centenas de milhares de cidadãos –, além daquela já armada, formada por PMs, guardas municipais e milícias. “Não são só os clubes de tiros, os caçadores, os colecionadores, as academias de MMA. É muito mais grave que isso, porque essa política de liberar geral as armas tem consequências na sociedade. Não somos nós que estamos comprando armas. Não são sindicatos, petistas, MST, não são os cidadãos que estão comprando armas para se defender.”

Bolsonaro vai criar no Brasil grupos paramilitares, como aconteceu na Colômbia, adverte o ex-ministro. “Então o país vai entrar em guerra civil, ao contrário da estabilidade que se pretende. Não vejo como o capitalismo financeiro, bancário, as grandes corporações, possam conviver com isso.”

Dirceu atribui o persistente intervencionismo militar à não democratização das Forças Armadas no Brasil, o único país em que não houve investigação nem processo ou julgamento dos crimes da ditadura. “Eles não aceitam; ao contrário, querem revisar a História para dizer que não houve golpe militar, nem ditadura militar”, diz.

Uma das raízes do problema está na educação dada pelas escolas militares, estagnada desde a ditadura. “E isso é muito grave, porque continuam sendo ensinados guerra fria, inimigo interno, anticomunismo, deslegitimação da esquerda e do socialismo. É uma doutrinação de 34 anos, que não aceita que as escolas militares sejam como todas as escolas do país: pluralistas, laicas, democráticas, onde se ensinam todas as correntes de pensamento.”

Consciência política e juventude
Por outro lado, Dirceu destaca que a maioria do país está contra o governo, conforme mostram pesquisas recentes, como a da XP ou a da Oxfam Brasil — “Nós e as Desigualdades” –, produzida em parceria com o Datafolha. Segundo esse levantamento, 86% dos entrevistados afirmam, por exemplo, que o governo tem a obrigação de reduzir a diferença entre os mais ricos e os mais pobres; 85% pensam que o governo precisa reduzir as desigualdades regionais no país; e 84% defendem aumento da tributação dos mais ricos para financiar saúde, moradia e educação.

“A maioria quer uma reforma tributária, com impostos sobre os ricos, e tem consciência do racismo e da desigualdade de gênero. A maioria diz que a desigualdade é o principal problema do país, que precisa de Estado, saúde e educação pública, habitação subsidiada.” Para Dirceu, a população reconhece e acredita no papel do Estado e que só a distribuição de renda leva ao crescimento. “O Bolsonaro produziu uma consciência política no país. Não é impunemente isso que ele faz no meio ambiente, na política externa, na saúde, educação, universidades, ciência, cultura. Não se desmonta a consciência política construída em cem anos.”

Nesse sentido, José Dirceu acredita que Bolsonaro gerou “uma juventude rebelde, lutadora, que está nas ruas e nas redes”. Advogados, economistas, artistas, intelecutais, acadêmicos, na faixa dos 30, 40 anos, que estariam produzindo um grande movimento de mulheres, negros e jovens. “Foi isso que saiu nas ruas. O Lula tem 30, 50 milhões de votos, temos peso. Mas há uma mobilização que independe de nós – contra Bolsonaro, contra a política econômica, com consciência dela, e mais radical. Como aconteceu no Chile.”

A mensagem do ex-ministro para a juventude, então, é direta: “A luta faz a lei.” Ou seja, é preciso olhar para os exemplos de Chile, Peru, Colômbia, onde os jovens estão lutando. Mesmo as vitórias do presidente Joe Biden e, antes, de Barack Obama, teriam sido em grande medida viabilizadas pela base social e eleitoral de Bernie Sanders, com os jovens e à esquerda, na arrancada final.

Alianças e eleição
Para retomar o governo para o campo progressista em 2022, José Dirceu ressalta que é preciso, “em primeiro lugar, unir os nossos: PSB, PCdoB, PT, PSOL”. Em alguns estados, alianças regionais poderão incluir setores de outros partidos, na centro-direita, e até o PDT, apesar da opção de Ciro Gomes pela linha antipetista e antilulista. Não haveria possibilidade de acordo, por sua vez, com partidos à direita, que devem ter candidatos próprios, nem com DEM, MDB, PSDB, que atravessam crises internas. “É mais provável que haja quatro ou cinco candidatos nesse campo todo, e que o PL, o PTB, PP, PRB apoiem o Bolsonaro.”

Embora o quadro deva continuar indefinido até outubro, com ênfase na pandemia, no esforço de vacinação, na reorganização dos partidos, a tendência, na avaliação de Dirceu, é que as alianças regionais tenham bastante peso. Principalmente devido à força de Lula no Nordeste, com até 80% dos votos, de acordo com o estado.

Na opinião do ex-ministro, há base suficiente para a esquerda resgatar o poder. Ele observa, por exemplo, que a soma dos votos dados nas urnas a Fernando Haddad, Guilherme Boulos e Ciro Gomes em 2018 equivale à votação de Lula, Leonel Brizola e Mário Covas em 89, ou seja, cerca de 44% no primeiro turno. “E Haddad teve 32 milhões de votos, mesmo depois da Lava Jato, do golpe, depois da maior campanha de descrédito e de criminalização, da tentativa de incriminar a maior liderança de um partido, que foi a Lava Jato.” Esses votos no PT, apesar dos ataques capitaneados pelo Judiciário, dão a Lula as condições de pacificar e unir o Brasil, acredita Dirceu. Até pela sua liderança internacional, ele pode novamente retomar a integração da América do Sul.

“O Brasil é um grande país”, diz. “Somos um país que, para dar certo, precisa fazer o que os outros fizeram: dar ao Estado o papel que ele deve ter, fazer as reformas estruturais na riqueza, para distribuir. O Lula dizia sempre: tem que investir no povo. Investir na cultura, na educação, na ciência, na juventude. Acreditar que o Brasil é capaz, como Getúlio [Vargas] e JK [Juscelino Kubitschek] acreditavam. Como o Lula acredita. Os militares não acreditam no povo. Dizem claramente que o Estado é que garante a unidade nacional e o desenvolvimento. Não. Quem garante é o povo. Sem povo, não adianta o Exército mais moderno. Os americanos foram derrotados no Vietnã por quê? Faltou o povo. O povo se voltou contra a guerra, porque sabia que era injusta.”

> Assista na íntegra o Soberania em Debate com José Dirceu  – “O futuro do Brasil e o momento internacional”

> O Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ).

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