Banco Central: autonomia para quem?

Sede do Banco Central, Brasília – Foto: Jonas Pereira/Agência Senado

Jorge Folena*

O Senado Federal e a Câmara dos Deputados aprovaram projeto de lei complementar, por ora pendente de sanção presidencial, que define os objetivos e dispõe sobre a autonomia do Banco Central e a exoneração de seu presidente e de seus diretores.

O referido projeto surgiu da iniciativa do Senador Plínio Valério (PSDB/AM), sendo totalmente questionável a sua constitucionalidade formal, na medida em que a Constituição estabelece que “são de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: (…) disponham sobre: a criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração-direta e autárquica (…)”.

A Lei 4.595, de 31/12/1964 (que dispõe sobre a Política e as Instituições Monetárias, Bancárias e creditícias e cria o Conselho Monetário Nacional) prevê que o Banco Central da República Federativa do Brasil é uma autarquia federal (artigo 8º), sendo “administrado por uma diretoria de cinco membros”.

O referido projeto de lei dispõe que a Diretoria Colegiada do Banco Central do Brasil terá nove membros (artigo 3º), sendo uma “autarquia de natureza especial caracterizada pela ausência de vinculação a Ministério, de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia técnica, operacional , administrativa e financeira, pela investidura a termo de seus dirigentes e pela estabilidade durante seus mandatos”. (artigo 6º).

O projeto de lei apresentado pelo Senador Plínio Valério trata de cargos em autarquia, na Administração Pública Federal, padecendo assim de vício de constitucionalidade formal, por invadir a iniciativa do Presidente da República. Além disso, pelo projeto de lei, a estabilidade de preços passará a ser o objetivo fundamental do Banco Central, que também terá que zelar pela eficiência do sistema financeiro; que ficará exclusivamente sob o controle da burocracia, diretamente ligada aos bancos; retirando dos governos eleitos pela vontade da soberania popular qualquer possibilidade de ação e iniciativa de política governamental voltadas à população, o que viola o princípio constitucional do sufrágio universal, na medida em que é concedido um mandato de autonomia e estabilidade aos dirigentes do Banco Central para a execução de uma tarefa própria do governo, sem que este possa doravante interferir.

Há muito tempo defendo que assuntos desta natureza têm que ser submetidos a plebiscito ou ratificados por meio de referendo(1), uma vez que a delegação dada ao mandato de parlamentares e presidente da República não é suficiente para que decidam isoladamente estes temas importantes para toda a coletividade; o que necessita de amplíssimo debate e aprovação popular, por meio dos instrumentos da democracia participativa, previstos na Constituição.

Desde o final da década de 1990 que juristas, como Sérgio Ribeiro Muylaert, têm alertado sobre a ocupação e o controle das atividades do Estado por agentes do mercado, a exemplo do que foi implantado no Governo Fernando Henrique Cardoso, por meio das agências reguladoras (de energia, telefonia, saúde suplementar, transportes etc.), em consequência das privatizações e concessões desmedidas, adotadas no país sob o argumento de que iriam melhorar os serviços públicos, diminuir o preço das tarifas e aumentar o número de empregos (que, ao contrário, somente diminuem).

O que temos visto desde então é que tais agências reguladoras têm atuado muito mais para favorecer os concessionários e prestadores de serviço do que para proteger os interesses dos usuários, a exemplo do que recentemente vimos no Estado do Amapá, onde diversas localidades sofreram um período prolongado sem energia elétrica (o apagão da luz), decorrente da privatização do setor de distribuição de energia e seus repetidos cortes de custos administrativos.

Outro exemplo desta ocupação por agentes do mercado em atividades estatais essenciais foi a aprovação do estatuto das empresas públicas (Lei 13.303), que impôs uma série de restrições ao sócio controlador destas empresas (o governo), obrigando-o a respeitar a independência do Conselho de Administração da empresa e sujeitando-o a responder por abuso de poder.

A referida lei prevê ainda que os diretores destas empresas devem preencher requisitos próprios dos homens ou mulheres que atuam no negócio; ou seja, esses cargos devem ser ocupados por executivos ligados ao mercado de atuação da empresa.

Esta forma de controle, sob o pretexto de “autonomia” e “independência” por parte dos gestores das empresas públicas, conduzida por pessoas diretamente ligadas ao mercado, tem promovido resultados muito bons para o setor financeiro, mas extremamente prejudiciais à população.

É o que temos visto ocorrer na Petrobras, que, nestes poucos dias do ano 2021, já promoveu tantos aumentos no preço dos combustíveis e do gás de cozinha, cujo consumo está ficando cada vez mais difícil para os brasileiros, apesar de o Brasil ser um dos maiores produtores destes produtos essenciais.

A independência do Banco Central representará o efetivo controle da economia por parte dos banqueiros, que colocarão os seus escolhidos com autonomia e estabilidade para trabalhar na instituição, sem que o Governo tenha qualquer controle sobre a atuação deles, ainda mais que, doravante, o objetivo fundamental do Banco será “assegurar a estabilidade de preços”.

Assim, o mercado ficará cada vez mais livre para agir, sem nenhuma regulamentação efetiva por parte da sociedade, e, mesmo diante de suas ações especulativas, o Governo não poderá agir para resguardar a população para quem ele governa.

Pois tudo estará nas mãos de burocratas do mercado financeiro sem nenhuma preocupação com a sociedade, pois respondem tão somente aos seus chefes, os banqueiros, que ficam mais ricos a cada dia através da exploração de tudo e de todos. Estaremos inteiramente à mercê de pessoas que não têm compromisso com “o desenvolvimento equilibrado do País” e tampouco desejam “servir aos interesses da coletividade”, como deveria ocorrer em um sistema financeiro nacional estruturado nos termos da Constituição.

O argumento apresentado no Senado para a aprovação do projeto de autonomia do Banco Central foi o de que é preciso blindar a entidade para que governos de viés populista não façam intervenção no Banco durante períodos eleitorais. O que não ocorreria, por estarem os dirigentes do Banco Central blindados pela estabilidade. Referido argumento é falacioso, na medida em que o mercado financeiro também tem as suas preferências políticas e os blindados diretores do Banco Central poderão agir para favorecê-las.

A autonomia do Banco Central é uma agressão à soberania popular e retira do soberano (o eleitor, o que elegeu o governo) o destino e o comando do país e o entrega nas mãos dos banqueiros, que têm como objetivo acumular riqueza e poder a qualquer custo, inclusive da governabilidade e do futuro de um país e seu povo.

* Jorge Folena é doutor em Ciência Política pelo Iuperj, com pós-doutorado pelo CPDA da UFRRJ, e mestrado em Direito pela UFRJ. Também é diretor de Direitos Humanos da Casa da América Latina. Além de diretor do IAB, integra a coordenação do Movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ).

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