Artigo: Pensar é um ato político?


Sergio Muylaert *

“Abdicar de pensar também é crime”. (Hanna Arendt – 1906-1975)

1- Sem afrontar os especialistas, cabe destacar a importância da conduta humana que resulta do ato de pensar. Tanto maior, em vista do que afiançou a excepcional filósofa: “Em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam”.

2- De fato, a palavra deveria ser um meio eficaz para a cura dos absurdos da vulgaridade. A ela serem devotados tratamento e cuidados especiais, conforme admitiu desde os tempos de Roma, Marco Tulio Cícero (Dos Deveres, capítulo XXXIII).

3- Ao consultarmos laços mais aprofundados encontramos interessante registro: “Ninguém compreende coisas falsas” (vejam-se Santo Agostinho e Tomás de Aquino)

4- Devemos, também, reparar nos ricos ensinamentos posteriores: “é para a ação que algumas ciências se cultivam”. O que é “depositado na existência, destina-se a qualquer ação”. Eis a concordância com o autor florentino (1265-1321), ao dizer que o intelecto especulativo se transforma em intelecto prático, cujo fim é agir e fazer (Dante Alighieri. Monarquia, Livro I, capítulos II e III).

Segue-se com a máxima sob a qual se diz que “não é lícito ao Imperador cindir o Império”, pois o alicerce do Império é o direito humano, visto pelo sábio italiano, que o imperador não pode alienar a jurisdição imperial da qual recebe a sua qualidade (Livro III, Cap. X).

5- De outra passada, assim argumentou Spinoza (1632-1676), ao responder a uma arrogância clerical desrespeitosa de um correspondente: “Eu não tenho a pretensão de ter encontrado a melhor filosofia, mas sei que reconheço a verdadeira…pois a verdade é a pedra de toque de si própria e da falsidade” (ap. Scheler, Visão filosófica do mundo. Perspectiva, 1986, p.62)

6- Bem se vê, a partir dos inúmeros experimentos civilizatórios, quantos deles atravessaram a calçada do tempo sem comover as autoridades e com raríssimas exceções os experimentos terão visitado algum braseiro dos ranchos nas instituições castrenses, deste país.

7- Por força do hábito, sempre se deram grandiosos eventos políticos, muitos dos quais destinados a concentrar e a engordar patrimônio privado. Em contrário, casos bem mais graves se deram de forma ostensiva, violenta e arbitrária, sob o estímulo reforçado das chusmas parasitárias do poder despótico, nos limites das masmorras e fora da lei e da ordem.

8- Basta referir o insidioso ato político de 21 anos (1964-1985) para alavancar o poder da força e suprimir direitos. Mesmo durante o período da nova Constituição Federal de 1988, violentou-se o patrimônio nacional, por ato de expansionismo sob a cangalha dos velhos cacoetes repressores. Logo adiante, sem quaisquer disfarces, as propostas autoritárias se incorporam (1985-2016) ao repuxo da força bruta.

9- Lá se foram sete décadas e meia, desde a edição histórica do livro Geografia da Fome, de Josué de Castro. Lá se perdem as metodologias de ensino de um Paulo Reglus Neves Freire, as incomparáveis lições de Celso Furtado, e aí vamos, sob a estratégia pós-2016, sob os preceitos nazifascistas e as pinceladas de ordem ultraliberal.

10- Eis o perfil deste projeto, tresloucado, meia-sola, sob a forma de ato político de recauchutagem, que teima em conspurcar os legítimos fundamentos da soberania econômica e as soluções de um construtivismo nacional promissor. No contexto, a despeito dos quase 190 mil mortos e dos 8 milhões de infectados, haverá quem faça restituir a sociedade civil a recente tragédia do arbítrio por simples auto exaltação. Assim, o ato político, orientado a perseguir e punir, vem sendo pensado com o intuito de recair, pesadamente, sobre os recentes movimentos sociais, na saúde, na educação, ou mesmo, nos movimentos “antifascistas” deflagrados pelas categorias policiais.

11- Disso se extrai uma única conclusão capaz de impedir qualquer crédito a estes bafejos “mudancistas”, de palanque, cujo discurso ribombante atrai para si a pecha do “coronelismo, enxada e voto”, do fisiologismo cartorial, ou do patriarcado das Casas Grandes contra a Senzala. Vejam-se o imobilismo conformista e a indolência dos quais estão a surgir soluções aviadas a mercê do surrado ato político e da enganosa arte da mídia local. O que se pode reiterar diante desses atos?

12- A precariedade de uma noção elementar de ética, o decoro público e o respectivo recato. Cada qual responde pelo consequente despreparo cultural e a deficitária fisionomia da dignidade. A aneuria do povo está a demandar a prática vertebral e redutora de uma progeria secular e crônica, geradora do envelhecimento precoce da população. Não restará dúvida quanto aos efeitos irreversíveis do ato político, como venha a assumir os segmentos do poder, diante da cidadania. Recorde-se a frase da filósofa: Abdicar de pensar também é crime.

* Sergio Muylaert é advogado e escritor. Membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros, ex-procurador-geral da Universidade de Brasília, foi vice-presidente da Comissão Nacional de Anistia do Ministério da Justiça e fundador e presidente da Associação Americana de Juristas (Brasília).

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