UFMG: entidades denunciam escalada repressiva e ataque privatista ao ensino público

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A operação da Polícia Federal que levou à força para depor o reitor da Universidade Federal de Minas Gerais, Jaime Arturo Ramirez, e membros de sua equipe, provocou uma onda cívica de protestos, inclusive do compositor João Bosco, autor com Aldir Blanc da canção “O bêbado e a equilibrista”, da qual a PF sequestrou um verso para batizar a operação “Esperança Equilibrista”. As manifestações de indignação de diferentes grupos e entidades denunciam os ataques contínuos ao Estado de Direito, cujo alvo mais recente seriam as universidades públicas, na tentativa de desmoralizá-las e enfraquecê-las para levá-las à privatização. No episódio da UFMG, a PF reincide no abuso do instrumento da condução coercitiva para violar as garantias legais de professores e integrantes da comunidade acadêmica. Estratégia que levou ao suicídio recente do então reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier, vítima da operação “Ouvidos Moucos”.

“A pretexto de investigar supostos desvios de recursos públicos para a construção e implantação do Memorial da Anistia Política no Brasil, coordenado pela UFMG, as ações da Polícia Federal nesta manhã representam, mais uma vez, clara violação do Estado democrático de direito e um ataque às Universidades Públicas”, diz a moção do Conselho Técnico Científico da Educação Superior (CT-ES) da Capes. “A operação ‘Esperança equilibrista’ repete equívocos cometidos pela operação ‘Ouvidos moucos’ e nos traz à lembrança a desastrosa operação da PF na Universidade Federal de Santa Catarina, em setembro deste ano. Até o momento tal medida se mostrou injustificada e o resultado foi uma campanha difamatória contra a Universidade e a perda irreparável do professor Luiz Carlos Cancellier, reitor à época.”

Além da Capes, também divulgaram notas oficiais grupo de intelectuais, professores, estudantes e dirigentes de instituições acadêmicas, a Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), as universidades federais da Bahia e do Rio de Janeiro (UFBA e UFRJ), a UNE, a APUBH e o conjunto de ex-gestores da própria UFMG, além do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, entre dezenas de outras instituições. Em redes sociais ou por meio de entrevistas na mídia, posicionaram-se ainda parlamentares, professores, sindicalistas e a presidenta Dilma Rousseff.

“Os actos de que são vítimas [os acadêmicos detidos] visam, isso sim, desmoralizar as universidades públicas e preparar o caminho para a sua privatização”, escreveu Sousa Santos. “Estamos certos que estes desígnios não se cumprirão, pois a resistência da comunidade académica e do conjunto da cidadania democrática brasileira a tal obstarão.”

O risco de privatização é real. A operação da PF foi deflagrada no dia 6 de dezembro, exatos 15 dias depois de o Banco Mundial ter divulgado o relatório técnico “Um ajuste justo. Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”, encomendado por Michel Temer e no qual, entre outras medidas, a instituição financeira propõe a cobrança de mensalidades nas universidades públicas no país. O Banco Mundial, como observa o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), “concede empréstimos a ‘países em desenvolvimento’ em troca da aplicação de políticas de ajuste fiscal”.

Toda a operação policial foi realizada com aparatos cênicos de intimidação, como policiais armados e metidos em uniformes de combate com padrões de camuflagem. Segundo nota da PF, foram 84 policiais, 15 auditores da Controladoria-Geral da União e dois do Tribunal de Contas da União para cumprir oito mandados judiciais de condução coercitiva, além de outros 11 mandados de busca e apreensão. Ou seja, uma proporção superior a dez para um – se contados apenas os 84 policiais contra oito civis da comunidade acadêmica forçados a ir depor nas primeiras horas da manhã, o próprio reitor surpreendido de toalha, ao sair do banho.

“O Brasil, nos últimos anos, vivencia a construção de elementos de exceção legal justificados pela necessidade de realizar o combate à corrupção”, afirma o Manifesto em Defesa do Estado de Direito e da Universidade Pública no Brasil, assinado – até o encerramento deste texto – por 27 intelectuais, entre eles Paulo Sérgio Pinheiro (ex ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos), André Singer (professor titular de Ciência Política USP e ex-secretário de Imprensa da Presidência), Ennio Candotti (ex-presidente e presidente de Honra da SBPC), Fabiano Guilherme dos Santos (presidente da ANPOCS), Roberto Schwarz (professor titular de Literatura da Unicamp), Maria Rita Kehl (psicanalista).

Denunciam a criação no país de “uma máquina repressiva insidiosa, visando não só coagir, mas intimidar e calar as vozes divergentes sob o pretexto de combater a corrupção. Seu verdadeiro alvo, porém, não é corrupção, mas o amordaçamento da sociedade, especialmente das instituições que, pela própria natureza de seu fazer, sempre se destacaram por examinar criticamente a vida nacional”.

Diz ainda o manifesto: “Prisões preventivas injustificáveis, conduções coercitivas ao arrepio do código penal tem se tornado rotina no país. Neste momento amplia-se a excepcionalidade das operações policiais no sentido de negar o devido processo legal em todas as investigações relativas à corrupção violando-se diversos artigos da Constituição, inclusive aquele que garante a autonomia da universidade. É inadmissível que a sociedade brasileira continue tolerando a ruptura da tradição legal construída a duras penas a partir da democratização brasileira em nome de um moralismo espetacular que busca, via ancoragem midiática, o julgamento rápido, precário e realizado unicamente no campo da opinião pública.”

Verso sequestrado

Não passou despercebido o desprezo da PF à democracia, evidente ao batizar a operação de Esperança Equilibrista –, nome capturado de um verso da canção de Aldir Blanc e João Bosco que se tornou símbolo da luta contra a ditadura e da esperança por dias mais justos. Em seu perfil no Facebook, João Bosco se declarou “indignado” com a ação policial, que qualificou de “uma violência à cidadania”. “Não autorizo, politicamente, o uso dessa canção por quem trai seu desejo fundamental”, escreveu, enfatizando sua defesa pessoal da universidade pública: “espaço fundamental”, diz, “para a promoção de igualdades na sociedade brasileira. É essa a esperança equilibrista que tem que continuar.”

Os representantes da União de Negras e Negros Pela Igualdade (Unegro – Minas Gerais), em nota oficial, e a presidenta Dilma Rousseff destacaram a perversidade simbólica.

“A operação da PF chamada de ‘Esperança Equilibrista’ é uma clara afronta e um desrespeito com todos e todas que lutaram e continuam lutando pela garantia dos direitos humanos e pela plena democracia no Brasil, cuja memória é, justamente, uma das grandes revindicações da militância progressista em nosso país”, declaram os representantes da Unegro.

Para Dilma, ela própria vítima de prisão e tortura durante a ditadura militar, “batizada perversamente de Esperança equilibrista – uma referência traiçoeira à imortal obra de Aldir Blanc e João Bosco que simboliza o Hino da Anistia –, a operação da PF é uma bofetada nos anistiados e um desrespeito à memória dos torturados e dos que tombaram na luta contra a ditadura”.

O Memorial da Anistia

Em artigo publicado na revista literária Quatro Cinco Um, Lilia Schwarcz, professora do Departamento de Antropologia da USP, observa a intencionalidade nas ações da polícia. “A operação nada tem de esperançosa nem de equilibrista. Foi iniciada uma semana após o lançamento do relatório da Comissão da Verdade em Minas Gerais, bem às vésperas da votação da reforma da Previdência. A intenção é clara. Conduzindo coercitivamente professores que nada têm a esconder, e jamais se recusaram a se apresentar e colaborar, ela visa humilhar, desmoralizar mestres, a universidade, a pesquisa acadêmica, a educação e a intelectualidade crítica de forma geral.”

A UFMG é a base do projeto Memorial da Anistia, criado em maio de 2008 por meio de uma parceria entre o Ministério da Justiça e a universidade, para construção de um espaço para o acervo da Comissão de Anistia, servindo de instrumento simbólico de reparação moral e coletiva às pessoas que tiveram seus direitos violados nos governos ditatoriais. Em comemoração aos seus 90 anos, a universidade apresentou uma exposição sobre o tema, encerrada em agosto.

No site GGN, o jornalista Luis Nassif fez um histórico dos problemas enfrentados pela iniciativa, que permitiram sua captura como pretexto para a truculência. “A ideia seria reformar o Coleginho [na UFMG] e ali fazer uma exposição permanente. E, ao lado, um prédio para ser o acervo da Comissão de Anistia. Os problemas ocorreram quando se analisaram as condições do Coleginho, cuja estrutura, antiga, não suportaria as reformas. Foi planejado, então, a construção de um prédio ao lado, que abrigaria o acervo e a própria Comissão de Anistia. Os valores, de R$ 19 milhões, eram perfeitamente compatíveis com a nova estrutura proposta. Foram abertas três sindicâncias, no Ministério da Justiça, do Ministério Público Federal e na própria UFMG apenas para apurar se houve imperícia no projeto para o Coleginho, que não levou em conta suas condições. Com o impeachment, não houve sequer nomeação do novo presidente da Comissão de Anistia, e as obras foram paralisadas. Este ano, foi realizada uma audiência pública em Belo Horizonte, na qual se solicitou à UFMG que terminasse o projeto. E foi recusado pela óbvia falta de verbas que assola as universidades federais.”

Em nota, a Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg)  diz que as dificuldades concretas do projeto deviam merecer apoio dos entes públicos e não medidas policiais. "A construção do Memorial da Anistia em Belo Horizonte é um complexo projeto arquitetônico e de engenharia que envolve a reforma de prédios antigos e a construção de novos equipamentos em terreno com problemas estruturais. Portanto, o devido acompanhamento dessa obra, paralisada a fórceps pelo atual governo federal, não deveria ser objeto de ação policial e sim, de adequações financeiras, técnicas e administrativas." Para a entidade,  "ao criminalizar uma das maiores Universidades do país, abre-se a porta para a criminalização de todo um segmento que não se alinha aos setores autoritários. Nós da Covemg conhecemos bem essa metodologia."

Para o jornalista Luis Nassif, a operação demonstra três aspectos relevantes: "A primeira, é que não há um fato apurado e um suspeito preso. Monta-se o velho circo de prender várias pessoas, infundir terror na comunidade, e obter confissões sabe-se lá por quais métodos. A segunda é que a morte do reitor da UFSC não mudou em nada os procedimento. Tem-se uma PF incapaz de solucionar o caso do helicóptero transportando 500 quilos de cocaína, soltando o piloto e liberando o veículo em prazo recorde e, agora, a investida política contra a segunda universidade. A terceira, é que o nome dado à operação – “Esperança Equilibrista” – é claramente uma provocação aos setores de direitos humanos. Esse monstro está sendo diretamente alimentado pelo ministro Luís Roberto Barroso, do STF, que se transformou no principal inspirador da segunda onda repressiva dos filhotes da Lava Jato.”

Escalada da repressão

Segundo o Código do Processo Penal Brasileiro, a condução coercitiva só pode ser aplicada depois que a pessoa for intimada, e apenas se ela se recusar a comparecer para depor. De acordo com os relatos oficiais da UFMG, nenhum dos conduzidos à força pela PF chegou a ser intimado, sem chance, portanto, de ter se recusado a prestar esclarecimentos. A banalização da condução coercitiva para intimidar cidadãos, ao lado de outros ataques ao ensino público, faz parte de uma “escalada” repressiva, na avaliação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur),

“Dessa forma, assistimos perplexos à escalada da utilização de instrumentos de exceção com objetivos midiáticos pondo em risco o Estado Democrático de Direito, e que agora ataca a comunidade acadêmica, último bastião de resistência ao avanço das forças retrógradas e autoritárias que se verifica no momento no país”, afirma a entidade. “Tal ato de arbitrariedade associado a outros ocorridos recentemente, como a brutal invasão de seminário científico na Universidade Federal do Pará, por políticos vinculados a grandes interesses econômicos estrangeiros, e a flagrante ingerência indevida na soberania nacional de relatório do Banco Mundial coadunam-se com as tentativas de assalto às instituições públicas nacionais e de desmantelamento do Sistema de Ensino Superior Público do Brasil.”


Clique para ler na íntegra os posicionamentos a favor da UFMG

https://ufmg.br/comunicacao/noticias/anpur-ato-de-arbitrariedade-associado-a-outros-ocorridos-recentemente
https://ufmg.br/comunicacao/noticias/ufba-afirma-que-universidade-brasileira-esta-ameacada-por-ventos-sombrios
https://ufmg.br/comunicacao/noticias/dilma-rousseff-lamenta-a-acao-da-pf-na-ufmg
https://ufmg.br/comunicacao/noticias/unegro-diz-que-operacao-afronta-luta-pelos-direitos-humanos
https://ufmg.br/comunicacao/noticias/professor-boaventura-de-souza-presta-solidaridade-a-ufmg-em-mensagem
https://ufmg.br/comunicacao/noticias/intelectuais-lancam-manifesto-em-defesa-do-estado-de-direito-e-da-universidade-brasileira
https://ufmg.br/comunicacao/noticias/ex-reitores-manifestam-apoio-a-dirigentes-da-ufmg
https://ufmg.br/comunicacao/noticias/conselho-universitario-da-ufrj-praticas-incompativeis-com-democracia-nao-podem-ser-banalizadas

http://www.andifes.org.br/55192-2/
http://arevistadoslivros.com.br/conteudos/visualizar/Distopia-na-universidade
https://jornalggn.com.br/noticia/a-ditadura-ataca-agora-a-ufmg-por-luis-nassif

A UFMG está consolidando no site todas notas de solidariedade que chegam à universidade:
https://ufmg.br/busca/?q=Memorial%20da%20Anistia&tag=true

Para conhecer o Memorial da Anistia
http://memorialanistia.org.br/

Sobre o relatório do Banco Mundial
http://www.andes.org.br/andes/print-ultimas-noticias.andes?id=9175

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