Paraíso do Tuiuti: a História na avenida

Quando o grito está engasgado na garganta e a fala gagueja e pensamos que tudo já foi dito, todos os poetas foram citados e todas as palavras mágicas escandidas, resolvemos, afinal, que somos humanos. Talvez valha a pena um carnaval, só esse carnaval. Aqui e acolá um “Fora Temer” limpe a nossa garganta, reúna o cuspe e permita o escarro. Mas, eis que lá na avenida, na Passarela do Samba, sonho de Brizola, obra de Niemeyer e Darcy, onde um dia centenas de crianças estudaram o dia inteiro, com comida, médico e educação, emerge um novo hino, uma exaltação daquelas de que somente os mais velhos ainda lembravam. Era como ouvir Mano Décio da Viola, Cartola, Silas de Oliveira e outros tantos filósofos dos quilombos, poetas das favelas e compositores dos barracões. Aliados à coragem da Escola e do carnavalesco Jack Vasconcelos, formado na UFRJ, disposto a retribuir o que a sociedade lhe deu, e consciente da relevância do ensino público para o fim da escravidão moderna, os compositores Claudio Russo, Aníbal, Jurandir, Dona Zezé, Moacir Luz – disseram em samba o indizível, o inesperado, o oculto que estava tão revelado: era todo o mal-dito, o inter-dito de um povo que se transforma em coro de uma Nação:

“Irmão de olho claro ou da Guiné
Qual será o seu valor? Pobre artigo de mercado
Senhor, eu não tenho a sua fé
e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arroz
Eu fui mandiga, cabinda, haussá
Fui um Rei Egbá preso na corrente
Sofri nos braços de um capataz
Morri nos canaviais onde se plantava gente
Ê Calunga, ê! Ê Calunga!
Preto velho me contou, preto velho me contou
Onde mora a senhora liberdade
Não tem ferro nem feitor
Amparo do Rosário ao Negro Benedito
Um grito feito pele do tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito
Um rito, uma luta, um homem de cor
E assim, quando a lei foi assinada
Uma lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra bondade cruel
Meu Deus! Meu Deus!
Se eu chorar não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social
Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti o quilombo da favela
É sentinela da libertação”

Um quase um hino, porque samba que se preze não deixa ninguém congelado, com que a Paraíso do Tuiuti saúda todos e todas as raças, aquelas mesmas que pouco antes tinham sido ofendidas por um zumbi de secretário de Educação. A amplitude do canto contra todo “cativeiro social” inclui, soma, resume e avança numa síntese cadenciada, pontuada de emoção, em versos e notas que nenhum marqueteiro bilionário, e traidor, ou intelectual de display de bispos e de pequenos tiranos exangues jamais conseguiriam fazer.
Não! É uma canção para quem tem “sangue avermelhado nas veias”, quem come feijão com arroz. Não tente, não insista, não imite, senhor bispo, ou você, velho pálido, pequeno tirano, ser exangue: sua voz não tem o canto do povo!

Quilombos, favelas, trabalho, arroz e feijão emergem de corpos e instrumentos como motivos de libertação, afirmados e erigidos em honrosa memória de uma história de lutas. Há orgulho, recusa de jogar a toalha, recusa de acusar o país ou o povo e de vitimizar a sua própria trajetória. Não são gente fotografada para “causar” e vender uma mercadoria que já foi gente e não se dá conta do seu próprio cativeiro.

Como na outra canção, bastam os 37 segundos que a “Dona da Voz”, em gaguejos, com a garganta seca, não consegue dizer de quem são as mãos, mãos enormes que manipulam notícias, mentiras, imagens, pessoas, patos e fatos que desfilam na avenida. Mas basta isso, 37 segundos:

“Basta um dia
Não mais que um dia
Um meio dia
Me dá
Só um dia
E eu faço desatar
A minha fantasia”
(Chico Buarque, 1975)

Pois bem, bastou um dia: uma noite que, no seu final, trouxe todo o mistério – o imenso ser morto-vivo, aquele que é sem ser, aquele que está, sem existir, aquele que não é o que diz ser. Um imenso vampiro exangue, símbolo maior do desamor, do desânimo, da desesperança e do abandono que assola uma Nação. Aquele que drena o sangue mais pujante de uma jovem Nação, protegido, oculto, esquivo e escoltado por uma legião de “Reinfields”, foi, contudo, obrigado a ouvir:

“Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro”
(Chico Buarque, 1970)

A “Paraíso do Tuiuti” – ou o “Paraíso” da Tuiuti – , na mesma semana em que um candidato a Mussolini de tiro de guerra pregava o genocídio de nossa gente, fez o caminho inverso: investe na vida, recusa a pulsão de morte daqueles que só sabem o ódio, que amam os cultos à renúncia ao gozo e promovem a sangria dos direitos do povo. Mais que cem mil faixas, que um milhão de cartazes, as vozes da/o “Paraíso” já são história da resistência brasileira. Saltaram as análises de conjuntura, as autocríticas e as críticas, os textões como este, e fizeram a matéria-prima da revolução: paixão e poesia. Recusaram a pulsão de morte que transpassa a sociedade brasileira exorcizando os vampiros, os mortos-vivos, os colaboracionistas de tipo “Reinfields”, e os elogios ao genocídio. Dançaram e cantaram o prazer de serem livres e o projeto do gozo vencendo a morte.

A(o) “Paraíso” não prometeu violência, mas riu do poder. Não prometeu guerras e mortes. Não, a(o) “Paraíso” se fez o local do gozo, denunciou a História como farsa dos donos do poder, fez os poderosos donos da fala gaguejar ao vivo e nos ensinou uma nova lição, uma alternativa de vida a viver, uma História de todos, viva, plural e gozosa.

“Meu Deus! Meu Deus!
Seu eu chorar não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social!”

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