Mercosul deve priorizar acordo para automóveis

Edifício Mercosul (Montevidéu, Uruguai) – Foto: Rodrigo Pereira da Silva/Wikimeida Commons


Segundo Maria Sílvia Portela, assessora na área de relações internacionais e especialista em América Latina, o protagonismo da presença brasileira e a integração do bloco são fundamentais para o Brasil.

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O Mercosul está vivo e vai avançar. A avaliação é da socióloga Maria Silvia Portela, assessora na área de relações internacionais e mestre pela USP em América Latina. Ela destaca a importância do protagonismo na região para o Brasil, que ocupa a Presidência do bloco deste mês até o final do ano. Ao Soberania em Debate, programa do movimento SOS Brasil Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), a especialista analisou o cenário geral do continente sul-americano e suas principais pautas.

“A integração é fundamental para o nosso país”, diz Maria Sílvia. “O Brasil é muito grande, mas, se ele quiser desempenhar um papel para o resto do mundo, precisa ter a liderança da região. Isso é fundamental. Não é um favor para os outros, é interesse nosso. Vai ampliar a integração econômica, produtiva, cultural, além da questão da defesa.”

Maria Silvia é cética em relação às negociações do Mercosul com a União Europeia, devido à dificuldade de consenso entre os países europeus. Mesmo assim, afirma que o debate em torno das cláusulas ambientais e sociais deve dominar o semestre. Em visita recente ao Uruguai, o presidente Lula já declarou, por exemplo, que o encaminhamento do acordo com a UE antecede a discussão sobre eventuais parcerias com a China.

Nesse sentido, a socióloga concorda com a posição de Lula sobre a proposta europeia – o presidente considerou inaceitáveis a abertura das compras governamentais, e, nos compromissos ambientais, a possibilidade de aplicação de sanções, que, de acordo com Maria Sílvia, prejudicam os países, mas pouco afetam as empresas que efetivamente são as que descumprem os compromissos.

Automóveis e açúcar
Em outra frente, ela espera que evolua o acordo relacionado à indústria automobilística, com a participação dos quatro países do bloco: Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. “Até hoje, os automóveis não fazem parte do livre comércio do Mercosul, então é uma das prioridades do presidente Lula”, diz a especialista.

Atualmente, é possível comprar automóveis entre os países do bloco com tarifa mais baixa, mas apenas numa quantidade limitada por cotas. “Não existe o livre comércio, como há para qualquer outro produto, sem tarifa de importação.”

O mesmo acontece para o açúcar, acrescenta Maria Silvia. Até agora, os argentinos têm resistido à abertura do setor, com medo de que a concorrência brasileira inviabilize a produção local. Mas ela acredita que há saídas conciliatórias para o impasse e que Brasil e Argentina vão “solidificar a relação”. Por exemplo, lembra que uma vez chegou a ser proposta a transferência de tecnologia da produção de álcool para o vizinho.

Para este ano também está prevista a renovação do acordo da segunda maior hidrelétrica do mundo (atrás apenas de Três Gargantas, na China), Itaipu Binacional. Serão discutidos novos preços, uma negociação muito importante para o Paraguai, diz Maria Silvia. Ela avalia que existam, atualmente, 130 empresas brasileiras instaladas no território paraguaio, incentivadas pelo baixo custo da energia e por impostos de apenas 1% para as exportadoras. Muitas trouxeram suas operações que estavam em território chinês, como a Riachuelo.

A socióloga lamenta a fragilidade política do Paraguai e ressalta que contribuir com o país é estratégico, a despeito dos governos de direita. “A direita paraguaia é muito pragmática e a dependência em relação ao Brasil é grande. O novo presidente [Santiago Peña, eleito este ano, mais uma vez do conservador Partido Colorado] já esteve com Lula. Vai ser más de lo mismo. A situação do Paraguai é difícil e o Brasil tem que ajudar muito, porque fortalecer a sociedade civil paraguaia é importante para nós, por exemplo, para combater o narcotráfico, o contrabando…”

Outra questão a ser enfrentada pelo Mercosul é o retorno da Venezuela, afastada do bloco devido às pressões políticas e à ação da direita durante as gestões de Mauricio Macri, na Presidência da Argentina de 2015 a 2019, e de Bolsonaro. “No caso do Brasil, é importante ajudar a Venezuela a sair dessa situação, porque lá também haverá eleição no ano que vem”, afirma Maria Silvia. Para ela, os problemas de desemprego e a crise econômica enfrentados pelo presidente venezuelano Nicolás Maduro derivam do bloqueio feito pelos EUA. “A imigração de tantas pessoas não é por conta do governo”, diz, enfatizando, contudo, que a maior pressão contra a Venezuela é política e da mídia, mas não do setor empresarial.

Já a Bolívia só depende do Brasil para ingressar no Mercosul. “O grande problema é convencer o Congresso a votar. Todo o resto [do bloco] já aprovou, só falta o Brasil”, explica Maria Silvia. Ela lembra que o caso já estava “na geladeira” desde o episódio da fuga do senador boliviano Roger Pinto Molina, no porta-malas do carro oficial do diplomata brasileiro Eduardo Saboia, em 2013, após 15 meses escondido na embaixada do Brasil. Molina era grande opositor do então presidente Evo Morales e ligado ao agronegócio brasileiro. “Não sei se é isso que impede, mas hoje a Bolívia não está como Estado pleno, por conta da votação no Brasil”, diz a especialista.

Com relação ao Uruguai, Maria Silvia explica que, embora o país tenha mais interesses ao Norte do que com a América Latina, não tem recursos suficientes para dispensar o bloco, e está avançando politicamente. “A experiência da Frente Ampla é espetacular. Não existe outra. Não é só uma frente eleitoral, mas uma frente política. Tem 17 partidos dentro do movimento, mas vive harmonicamente, com unidade de princípios e de ação. A Prefeitura de Montevidéu, que está com a Frente Ampla, já está no oitavo mandato. E a cidade está linda, super bem cuidada. Pesquisas recentes deram liderança à Frente, embora pequena, para as próximas eleições presidenciais.”

O atual presidente uruguaio, Luis Alberto Lacalle Pou, diz a socióloga, “é um neoliberal civilizado”, e o Uruguai conta com uma sociedade civil forte, que dificilmente permitiria à direita fazer o que fizeram aqui. Na rejeição à Venezuela, ele está falando para o público dele, de direita.” Ou seja, na opinião de Silvia, a economia é prioritária e o interesse comercial vai falar mais alto do que a propaganda ideológica. “O Uruguai tem condição de ficar fora do Mercosul? Não. Então vai ter que ceder.”

Participação sindical e Unasul
Maria Silvia destaca que o Mercosul, desde sua criação, conta com um espaço significativo para participação dos trabalhadores que, agora, “precisa ser recuperado”. Essa instância sindical-trabalhista foi esvaziada, entre outras razões, pelo afastamento do Brasil durante o governo Bolsonaro.

O bloco, segundo Maria Sílvia, tem um grande patrimônio de decisões aprovadas nas áreas de educação e social, embora a maior parte delas não tenha ainda se efetivado na prática. Uma dificuldade, explica, tem sido internalizar nas burocracias administrativas dos quatro países as medidas. Mesmo assim, do ponto de vista do trabalhador, diz ela, “a grande vantagem foi ter aberto espaço para a participação”.

Há, por exemplo, uma Declaração Sociolaboral do Mercosul (https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-sociolaboral-do-mercosul-de-2015-i-reuniao-negociadora-brasilia-17-de-julho-de-2015 ), negociada de forma tripartite e aprovada em 1998, antes do governo Lula, e reformulada em 2015. “A declaração compromete os países com suas legislações nacionais, mas não há uma legislação comum. Há, no entanto, uma comissão sociolaboral, que é tripartite exatamente para analisar o cumprimento da declaração. É pouco, mas como tudo, sem pressão, não se cumpre”, diz Sílvia.

O grande problema nas relações de trabalho da região, segundo ela, é o nível de descumprimento das normas internas, que, no Paraguai, o caso mais crítico, chega a 80%. No Brasil a precarização também cresceu muito, mas, na articulação do bloco, há a possibilidade de criar cadeias produtivas a nível regional, em especial nos setores de ponta, mais formalizados.

Para isso, Maria Sílvia enfatiza o papel da agroindústria. “O problema é que a agroindústria no Brasil e na Argentina só mira terceiros mercados. No caso do movimento sindical, é super importante pensar como articular a agroindústria com a recuperação da indústria na região, em nível de Mercosul.”

Outros temas que ganhariam com a integração envolveriam transição energética , desenvolvimento sustentável, a questão amazônica, saúde. “É fundamental, porque você começa a distribuir recursos, facilitar troca de informações e pesquisa. Acho importantíssimo esse encontro que o presidente Lula está convocando dos países da Bacia Amazônica para o fim do ano”, diz.

Maria Silvia também ressalta a relevância da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), que deve voltar a funcionar. “Várias pessoas acreditam que não se deve ter a expectativa de retomar toda a estrutura proposta originalmente para a Unasul e que nunca se efetivou. Mas tem áreas fundamentais: energia, infraestrutura, saúde, e uma questão que não é simples – segurança.”

Não será, contudo, uma operação simples. “A Colômbia tem uma situação difícil, na relação com os EUA. No Chile, a elite política, de esquerda ou direita, não tem interesse em mudar seu modelo de país, que faz acordo e negocia com o mundo inteiro, e se aproxima mais dos EUA do que da gente. Temos que nos aproximar muito do Peru, que vive uma crise tremenda, mas que tem a entrada da China na região – e hoje o comércio feito pelos estados [brasileiros] do Centro-Oeste, que pode ligar na via do Pacífico, é o mais importante do Brasil, dos setores mais lucrativos. Para a sociedade, é importante participar para garantir que [o Mercosul] seja uma democracia, e que a integração não roube a soberania de cada país. Porque, se tiver democracia na relação e na decisão, [o bloco] está reconhecendo e defendendo a soberania de cada país nesse bloco.”

> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)

> Confira o Soberania em Debate com a socióloga Maria Sílvia Portela, entrevistada pelo advogado e cientista político Jorge Folena, e pela jornalista Beth Costa, da coordenação do SOS Brasil Soberano:

 

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