Livro de Lincoln Penna propõe retomar a ideia de revolução

Manto Tupinambá – Museu Nacional da Dinamarca


Em  “Qual República queremos”, o historiador analisa a trajetória de militares e  comunistas,  e defende a tese de que o conceito de “res publica” se firmou, de fato, nos mocambos e nas aldeias indígenas. 

————————————————————————————————————————————————————————————————–

“Qual República queremos” é o título do novo livro do historiador Lincoln Penna, que analisa a trajetória de dois grupos protagonistas na formação do país  – os militares e os comunistas –, e propõe a retomada de um projeto de revolução para o Brasil. O texto também defende a tese de que a verdadeira república – entendida como sistema de valorização da coisa pública ou do bem comum – instalou-se efetivamente não nas instituições oficiais, mas entre os povos submetidos à perseguição do poder, no terreno dos mocambos, dos quilombos e das aldeias indígenas.

A ênfase na abordagem dos militares e dos comunistas se explica porque, na opinião de Penna, são “os únicos atores que, bem ou mal, tiveram um projeto nacional”. No caso dos militares, defenderam um projeto forte, que impedisse qualquer desvio da rota “republicana” original, porque “sempre entenderam que a República era uma coisa deles, já que foram eles os responsáveis pela sua implantação”.

Já os comunistas, segundo o historiador, alinharam-se a um projeto de revolução nacional e democrático-burguesa, entendendo a necessidade de romper com a influência imperialista no país.

Os militares foram de fato fundamentais no golpe que proclamou a República e estiveram “à testa” do regime até hoje, destaca Penna. Ele observa, nesse sentido, que não é inocente o uso do verbo “proclamar” para se referir ao fim do império. “Proclamação é uma forma de evitar a definição do que houve com a queda da monarquia, se foi um golpe ou uma revolução.”

Ou seja, é um termo surrupiado da própria legislação monárquica, que era usado para designar uma comunicação do imperador. Manteve-se, assim como sobreviveram os títulos nobiliários dos duques, barões, entre outros “nobres” que estenderam ao novo regime seus privilégios, dando origem aos grandes latifúndios que chegam à atualidade.

Ao longo da história, afirma o historiador, houve momentos em que a participação dos militares buscou a defesa de um Estado nacional, capaz de manter uma autonomia relativa. “Relativa – termo que pode ser aplicado  também à nossa Independência, quando conseguimos uma relativa autonomia da metrópole institucional, e da metrópole de fato, que era a Inglaterra e que continuou dando as cartas, antes, durante e depois da Independência.”

Não mudou muita coisa na posição dos militares, até a Segunda Guerra Mundial. Após o conflito, sobretudo a partir do acordo com os EUA, que criou a Escola Superior de Guerra (ESG), em 1948, há um deslocamento, afirma Penna. “O Brasil passa a sofrer uma interferência forte da orientação norte-americana  e, portanto, do imperialismo. Boa parte da geração formada posteriormente acabou atrelada, como se encontra até hoje, às estratégias dos EUA para o mundo e para a América Latina. O Brasil abriu mão de ser co-irmão dos latino-americanos. Os  brasileiros alegam que são vizinhos da América Latina e têm dificuldade de se sentirem latino-americanos. Mas enquanto não assumirmos nossa latino-americanidade, vamos ficar reféns dos EUA.”

A perspectiva de libertação dessa dependência externa anima o apêndice do livro do historiador, que propõe a retomada da ideia de uma revolução brasileira. “Até a década de 1960, até às vésperas do golpe de 1964 e mesmo logo após sua efetivação”, lembra o historiador, “discutia-se aberta e livremente, de forma bastante recorrente, a questão de como sair desse passado que não passa, como superar esses entraves que nos impedem um desenvolvimento autônomo, libertador e emancipador para todo o povo brasileiro. Só através de uma revolução.”

Uma ideia de revolução
A revolução proposta por Penna, contudo, é bastante diferente dos modelos  russo ou cubano, de matriz leninista, que empolgaram gerações na esquerda até os anos 70.  “Quando discuto a revolução –  é uma proposta em discussão – trato do contexto atual, em que, por exemplo, a classe operária já não detém um protagonismo absoluto”, reconhece o escritor. “Hoje quem comanda a economia capitalista são os grandes investidores. Temos a financeirização do modo de produção capitalista, que antes estava concentrado nas indústrias, com grande contingente de trabalhadores assalariados.” Agora, diz ele, é a classe média que ganha salários para atender os mecanismos especulativos do sistema financeiro.

Também há um novo contexto global, com o fim da polarização da Guerra Fria e a reorganização das relações internacionais. Ele aponta, por exemplo, a China contemporânea, onde, na sua opinião, o Partido Comunista passou “a fazer as vezes de uma burguesia nacional: defende seus interesses, projeta-se internacionalmente, abre os mercados e se transforma no principal competidor dos EUA”. Como mostra, observa Penna, a estratégia vitoriosa da Rota da Seda.

“Por isso, a tomada de poder pela força está fora de cogitação”, diz. “A revolução, hoje, é massiva e deve contemplar todas as forças sociais desejosas de mudanças e de ingressar em uma nova sociedade, num novo mundo. Isso requer muita conscientização, organização, mobilização e o que eu chamo de paixão pelo querer, ou que outros chamam de vontade política. É um projeto a ser construído ao longo do tempo, mas mantendo essa perspectiva, porque, como está, não teremos um futuro radioso.”

O historiador Lincoln Penna,  graduado pela Uerj, com mestrado  pela Universidade de Toulouse Le Mirail e doutorado pela USP, escreveu o livro “Qual República Queremos? Diálogos passado-presente no Brasil de hoje”  (ed.  Autografia), de modo a  contribuir para um “revisionismo histórico”. Isso significa se contrapor à visão dominante e mostrar que  povos indígenas e populações trazidas das diversas nações da África “implantaram a República verdadeira”.

“Porque a coisa pública propriamente nunca existiu do ponto de vista oficial; ela sempre foi uma forma mascarada que tem se apresentado desde a proclamação da República”, explica o autor. “A verdadeira coisa pública, que atende aos interesses e necessidades de uma comunidade fraterna e integrada, só existiu nos mocambos, nos quilombos e nas comunidades desses povos originários, nas comunidades tribais, que foram dizimados pela presença da ocupação europeia, ou seja, na  resistência que opuseram a essas elites brancas dominadoras e escravocratas. Tratar da oposição entre a verdadeira res publica, que predominou sob fogo e a pressão dos colonizadores, agressores, de um lado, e a República que, institucionalmente, tem sido mais a res privada – não tem nada de pública e só atende aos que estão nos circuitos das grandes propriedades, no circuito financeiro, da grande acumulação que transformou o país num dos mais desiguais do mundo –, esse foi o objetivo do livro”.

> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)

> Confira o Soberania em Debate com o historiador Lincoln Penna, entrevistado pelo advogado e cientista político Jorge Folena, e pela jornalista Beth Costa, da coordenação do SOS Brasil Soberano:

 

Você pode gostar...