Governo prepara comitê para atuar nos ambientes digitais

Enquanto o Congresso debate o PL 2630, que quer disciplinar e dar transparência aos ambientes digitais, o governo prepara uma série de ações para  coibir mentiras, violência e desrespeito aos direitos humanos nas redes. Um comitê permanente será criado por decreto para avançar em políticas públicas para ambientes digitais, desdobramento da articulação coordenada pela Casa Civil, atualmente com oito ministérios, que passará a ter representantes de quase 20 pastas. Estão previstas ainda campanhas de educação midiática, pesquisas sobre a experiência de “uso de telas” nas diferentes faixas etárias e um trabalho conjunto com o Ministério da Saúde para desenvolver um piloto de enfrentamento da desinformação, as chamadas fake news.

As informações são do secretário de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação da Presidência, o cientista político João Brant, um dos fundadores da ONG Intervozes. Com o Ministério da Saúde, ele explica que a ideia é partir de um caso concreto, para “entender como combater a desinformação na prática”.

Isso significa mapear os discursos que estão sendo promovidos, quais grupos por trás deles, as dificuldades de investigação e de abordagem jurídica. Obter subsídios para melhorar as regulações e as políticas. “Não tenho como discutir campanha de vacinação, sem discutir desinformação, hoje a minha maior barreira”, argumenta o cientista político. “As pessoas não estão indo se vacinar; e o Censo 2022 foi problemático também muito por desinformação.”

Arena dos afetos
O fluxo vertiginoso de informações nas redes em nada se parece ao da comunicação tradicional, adverte Brant. Se o jornalismo se baseava em procedimentos que, pelo menos em tese, de forma precária e enviesada, estavam referenciados em dados objetivos e no interesse público, as plataformas digitais priorizam engajamento e acesso. Ou seja, fomenta ações movidas por afetos, e, por isso mesmo, mais facilmente capturáveis pela radicalização e a violência.

“Quando os boatos são feitos de forma sistemática, às dúzias por dia, isso traz desafios de outra ordem”, destaca o secretário. “Do pós-Guerra até 2010, o jornalismo era o principal organizador da esfera pública. Com todos os problemas de pluralismo e diversidade, a que vários de nós sempre nos dedicamos, o jornalismo está baseado em regras, em preceitos. Tem uma ontologia firme baseada em valores modernos, na busca dos temas mais importantes para a sociedade, das visões mais importantes para a sociedade com relação a esses temas, e, de alguma forma, da verdade dos fatos. E uso o termo ‘verdade’, porque, até para se falar em manipulação, é necessário que exista uma objetividade, um valor normativo que é fundamental no jornalismo. Podíamos cobrar as emissoras, porque esse valor pairava sobre a organização da informação.”

Nas redes sociais, contudo, compara o cientista político, a coisa é completamente diferente. “O que se dá é a busca incessante do engajamento como métrica, como indicador. O que eu quero saber é se meu usuário está dando clique, entrando no conteúdo, se engajando. Isso desorganiza completamente a esfera pública. Aqueles valores do jornalismo vão por água abaixo; será estimulado aquilo que gera mais mobilização do usuário — em geral, nossos afetos: raiva, ressentimento, medo. Às vezes afetos positivos – humor, orgulho –, mas ainda no plano do subjetivo; e o plano do que é objetivo se esvai.”

Critérios de edição
Outro aspecto fundamental da mudança no centro da comunicação, que foi deslocado da TV e do rádio para o ambiente digital, é a forma de seleção dos conteúdos e seu direcionamento para o público, aponta a diretora de Promoção de Liberdade de Expressão da Secretária de Políticas Digitais, a advogada Samara Castro.

“Antes, na comunicação, alguém escolhia a informação que era enviada para todo mundo. Agora, você tem algoritmos e sistemas de recomendação que escolhem conteúdos baseados nas nossas preferências, sem a nossa autorização e, na maioria das vezes, nos induzindo a um comportamento que pode ser modificado por algo de que nem estamos cientes. Isso é uma afronta à nossa liberdade de expressão, porque não sabemos o que está nos conduzindo naquele ambiente. Nosso papel é fazer a defesa de uma liberdade de expressão que também tenha a dimensão do direito coletivo.”

Disputa e regulação
Nesse ambiente em que as narrativas são radicalizadas, que movem afetos negativos, induzidas por critérios não transparentes, Samara ressalta a necessidade de uma regulação que garanta “conteúdos dentro da legalidade, de acordo com valores do respeito aos direitos humanos”.

Para combater a toxicidade das redes, ela acredita que existam duas estratégias principais. “Um caminho é a disputa da narrativa, com os nossos valores, com a defesa da democracia, dos direitos humanos, em que a gente consiga utilizar o máximo possível da criatividade e das tecnologias para essa ocupação de espaço de sociabilidade com o que é importante, para fazer com que o ambiente seja menos tóxico”.

O outro caminho, é a regulação do ambiente digital. De acordo com Samanta, o que se pretende é construir uma forma de responsabilizar as plataformas, já que elas participam ativamente da condução do debate público, por meio dos sistemas de recomendação, indexação, monetização e impulsionamento. “Se há todas essas funções pró-ativas das plataformas, é preciso criar um sistema que tenha também os deveres que elas precisam respeitar.”

A primeira dessas obrigações, autoimposta, estaria nos termos de uso impostos aos usuários pelas próprias plataformas. “Na maioria, os termos de uso não permitem esses conteúdos hiper tóxicos que permanecem ali”, critica Samara. Em uma segunda camada, as empresas dos ambientes digitais precisam se submeter à legislação brasileira; e, numa terceira camada, a uma legislação nacional especializada, o que se busca com o PL 2630.

Atualmente, o Brasil conta com o Marco Civil da Internet, que, de acordo com Samara, oferece a possibilidade de responsabilização pelo conteúdo em duas situações, em que a plataforma não remove um conteúdo: ao desobedecer uma decisão judicial; e no caso de desrespeito aos direitos autorais, ‘pornografia de vingança’ e pedofilia.

“Com o PL 2630″, diz Samara, “o objetivo é elaborar com mais detalhes em quais situações existe uma responsabilidade e quais as obrigações que as plataformas precisam cumprir. A moderação não é uma censura. Só podemos falar em censura, quando se tira do ar um conteúdo lícito; o que não acontece. Existe também a necessidade de que essas plataformas tenham transparência.” Ou seja, por exemplo, ofereçam um espaço de moderação em que os usuários saibam por que seus conteúdos são excluídos, possam defendê-los e entender os critérios adotados pelas redes.

Experiências internacionais
Algumas inspirações para a elaboração do PL 2630 vieram de experiências de outros países, como o Digital Service Act (DSA), da União Europeia, que também aprovou uma legislação para o mercado digital, o Digital Market Act (DMA). “Temos acompanhado muitas discussões sobre as políticas públicas nos outros países, para trazer esses aspectos de enfrentamento da desinformação, da desradicalização e de cuidado com a saúde mental dos usuários das telas dos ambientes digitais, que estamos avaliando para começar a realizar no Brasil.”

De acordo com João Brant, o objetivo é “perseguir aquilo que é chave para o interesse público, que é uma informação plural, diversa e confiável”. Ele reconhece a dificuldade da tarefa, principalmente devido à força das empresas que controlam as plataformas, seu poder econômico e condição de domínio de mercado. “Estamos diante de um desafio muito significativo em relação à soberania brasileira, à soberania política, econômica e cultural. E as soluções não são aquelas que a gente sempre conheceu, quando discutia soberania. O desafio é como dialogar com o mundo, mantendo sua soberania nos aspectos essenciais, com capacidade de incidir, tomar decisões que moldem as ações dessas empresas que atuam aqui. É nessa direção também que estamos indo no PL 2630.”

> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)

> Confira o Soberania em Debate com o secretário de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação da Presidência, João Brant, e com a diretora de Promoção de Liberdade de Expressão da Secretária de Políticas Digitais, Samara Castro,  entrevistados pelo advogado e cientista político Jorge Folena e pela jornalista Beth Costa, ambos da coordenação do SOS Brasil Soberano:

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