CPMI do 8 de janeiro: com coragem e firmeza, democracia brasileira enfrenta seus inimigos

Depois de cinco meses de trabalho, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do 8 de janeiro desnudou toda a cadeia de eventos e atores envolvidos na tentativa frustrada de golpe de Estado liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e seu Governo. Com a relatoria da senadora Eliziane Gama (PSD-MA), o documento final – um dos mais importantes da história republicana do Brasil – foi entregue, na última semana, ao Supremo Tribunal Federal, Procuradoria Geral da República, Controladoria Geral da União, Tribunal de Contas da União e Polícia Federal.

O vasto conteúdo probatório reunido nos 20 depoimentos tomados, sigilos quebrados e informações requisitadas se somarão às diversas investigações em curso e pode deixar uma marca ainda maior para a construção democrática do país: caso os militares indiciados sejam responsabilizados pela justiça, será a primeira vez que oficiais das Forças Armadas não saem ilesos após crimes contra a pátria. Será, em alguma medida, um acerto de contas com o nosso próprio passado, um marco democrático que evidencia que a anistia que deixou soltos e sem punição os monstros da ditadura civil militar das décadas de 1960 e 1970 não voltará a ocorrer.

Membro da CPMI e alvo dos muitos ataques da extrema-direita durante o processo, o pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) tem esperança de que os envolvidos sejam responsabilizados e aponta que não faltam bases jurídicas para isso. “Eu sei que a CPMI tem um limite. Estamos no Brasil. Há muitos mecanismos políticos de proteção para esses golpistas. Mas o indiciamento está feito e é parte importante: a CPMI cumpriu o seu papel. Mas não basta indiciar. Se parar aí, essa justiça de transição não estará completa e vamos reproduzir essa acomodação por cima, típica da história do Brasil, que acaba abrindo espaço para o ressurgimento do autoritarismo”, aponta o parlamentar, convidado do programa Soberania em Debate do dia 26/10.

“Não tenho nem o otimismo ingênuo, nem o pessimismo exagerado. Estamos em uma disputa para fazer justiça e existem possibilidades de isso acontecer. Não dá para cravar um resultado final, mas temos condições políticas e bases jurídicas para isso. Por isso, espero que, em algum tempo, Bolsonaro seja preso. Não por ressentimento ou vingança, mas por memória, verdade, justiça, freio institucional contra o autoritarismo e defesa da democracia”, afirmou.

Função político-pedagógica

Enquanto o campo democrático acompanha a atuação do judiciário e torce pela responsabilização de financiadores e estrategistas do golpe fracassado, o sentimento em sua parcela do parlamento é de dever cumprido.

Henrique destaca que o papel da CPMI era evidenciar que apenas a denúncia política não seria suficiente para fazer justiça em um caso de atentado contra a democracia. “É preciso dar consequência jurídica e penal para os agentes da trama golpista. Eu nem sou uma pessoa punitivista. Não é minha formação política, filosófica, teológica, existencial. Não é por vingança, por ressentimento ou por prazer em punir. É por justiça. É por memória. É por reparação. É para criar parâmetros de defesa da democracia, para que não volte a acontecer. Se esses indivíduos forem responsabilizados penalmente, teremos um fato importante na história do Brasil”, defendeu.

Em um enfrentamento inédito, a comissão conseguiu manter a relevância do assunto na mídia e levar a escrutínio público autoridades que, historicamente, seriam intocáveis e que, até por isso, se sentiram à vontade para tramar abertamente contra a democracia. “O general Heleno, Silvinei Vasques, Mauro Cid e a cúpula da Polícia Militar foram confrontados publicamente. Isso vai convencer uma base bolsonarista enraizada e ideológica? Não. Aparentemente nada vai convencer essa base. Mas dialoga para o conjunto da sociedade. São pessoas conservadoras, que até votaram no Bolsonaro, mas que se assustaram com a ideia de um carro bomba quase explodindo no aeroporto de Brasília, com a violência de 8 de janeiro. A CPMI não vai convencer o indivíduo tomado pela irracionalidade bolsonarista, mas sinalizou para a sociedade brasileira e diferentes aspectos políticos que não vamos topar o bolsonarismo raiz e sua violência”, defendeu Henrique.

Para além de reposicionar o país no que diz respeito ao golpismo característico das Forças Armadas, a CPMI também colocou em evidência a concepção de mundo fascista da direita bolsonarista. “ A CPMI evidenciou que existe de fato um grupo que está fora do campo da democracia. É uma extrema direita que tem dispositivos fascistas de concepção de mundo e de comportamento. Intimidação, violência política, um ambiente extremamente tóxico e ameaçador, compõem uma lógica política baseada no ódio. Isso é a extrema direita: o ressurgimento de dispositivos fascistas no século XXI, no nosso tempo histórico”, destaca Vieira.

O parlamentar aponta que a CPMI evidenciou essa concepção de sociedade autoritária, golpista, negacionista, que aposta na confusão mental, na desinformação. Para ele, os cinco meses de atuação de parlamentares bolsonaristas, acompanhada por todo o Brasil, deixou claro como pensam aqueles que planejaram e apoiaram o golpe. “Ficou clara essa concepção de mundo estruturalmente violenta e antidemocrática, o comportamento bélico, o debate pelo sarcasmo, aquela ironia que desmerece o sofrimento do outro, que desumaniza o outro. Incontáveis vezes eu fui interrompido e xingado e não fui o principal alvo. Porque outro forte elemento desse fascimo é a misoginia: o ódio direcionado e seletivo contra as mulheres. Os alvos principais eram a senadora Eliziane, a deputada Jandira Feghali (PCdoB – RJ), Duda Salabert (PDT – MG) e Erika Hilton (PSOL – SP). As mulheres são permanentemente alvo de violência no tom, na forma, na performance e no conteúdo e a CPMI foi pedagógica para demonstrar que existe a democracia, onde cabe a diversidade, e uma outra coisa, a extrema direita, o bolsonarismo, que é o ódio escalonado, potencializado e transformado em prática política permanente”, aponta.

 

Brasília (DF), 24/10/2023 – A relatora, Elizane Gama, e membros da CPI Mista do 8 de Janeiro entregam o relatório oficial ao ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil


A autópsia do golpe

Juntamente com a responsabilização dos envolvidos, entender os muitos níveis, instâncias e estratégias empregadas no esforço golpista é importante para o futuro do país. E, mais uma vez, a CPMI cumpriu o seu papel.

As consecutivas tentativas de desacreditar as urnas eletrônicas e o processo eleitoral e invalidar o pleito estão entre os primeiros movimentos na construção do golpe. Com o apoio de milícias digitais que respondiam e ecoavam o Gabinete do Ódio, instalado dentro do Palácio Alvorada, o bolsonarismo era alimentado de forma nada orgânica por assessores parlamentares vinculados à secretaria da presidência da República. “Havia um centro nervoso vinculado diretamente ao ex-presidente, seus filhos e parlamentares. Dali partiam as mensagens que eram distribuídas pelas redes. Uma estrutura de robôs massificava e ampliava o alcance das mensagens para milhões de pessoas e iam moldando a subjetividade das pessoas e criando a atmosfera social para legitimar o governo autocrático, autoritário, que suspende as instituições democráticas”, aponta Henrique.

Enquanto o golpe era gestado, a Polícia Rodoviária Federal era aparelhada, ideologizada para a sua importante participação no dia 30 de outubro, quando criou obstáculos para que eleitores da região nordeste, onde Lula tinha larga vantagem, chegassem a tempo em seus locais de votação. “Silvinei Vasques, diretor-geral da PRF, com a concordância de Anderson Torres e Bolsonaro, organizou as fiscalizações, sem nenhuma justificativa técnica para isso. Esse é um dado importante da CPMI”, destaca Henrique.

Brasilia (DF) 08/01/2023 – Golpistas invadem prédios públicos na praça dos Três Poderes. Na foto, carros da Polícia Legislativa são depredados por vândalos em frente ao Congresso Nacional. Foto: Joedson Alves / Agência Senado.

Foi também a CPMI do 8 de janeiro que mostrou a atuação do chamado “QG do Golpe”, em uma casa no Lago Sul, em Brasília. Dali, Braga Netto articula com lideranças que iam e voltavam dos acampamentos “patriotas” na frente de batalhões militares. Com o presidente Lula eleito, o golpe era o único caminho viável. “A conexão entre Braga Netto e a lógica de insuflar o povo para desacreditar o resultado das urnas e pedir intervenção foi bem delineada. Em 12 de dezembro, dia da diplomação do presidente, há a tentativa de invadir o hotel de Lula e a sede da Polícia Federal. Enquanto isso, minutas golpistas circulavam na cúpula do Governo, buscando uma saída jurídica – que não existia -, para impedir a diplomação e posse do Lula. A CPMI conseguiu criar essa cronologia, mostrando o desenvolvimento deste processo, até chegar em 24 de dezembro, quando poderia ter explodido o carro bomba no aeroporto de Brasília.

Com Bolsonaro fora do país, Anderson Torres volta a cena, dessa vez como secretário de Segurança Pública do Governo do Distrito Federal, responsável pela segurança da Praça dos Três Poderes. No cargo, ele pôde organizar a omissão dolosa da cúpula da PM do DF, profundamente ideologizada. “Não conseguiram desacreditar o processo eleitoral ou impedir os votos do Nordeste. Não conseguiram uma minuta que invalidasse o resultado. O que sobrou foi a tentativa de criar o caos social, mobilizar bases e tropas no Brasil inteiro para uma intervenção militar que impediria a continuidade do Governo Lula”, conta Henrique.

Indiciados os envolvidos no golpe, agora o relatório da CPMI deverá rodar o país em eventos organizados pelos parlamentares. Os resultados no judiciário virão. Até lá, o trabalho pedagógico continua para que a democracia jamais volte a ser posta em xeque pela sanha autoritária do bolsonarismo, de parte das Forças Armadas e da população ideologizada pelo fascismo do século XXI.

 

Texto: Rodrigo Mariano / Senge RJ
Foto: Marcos Oliveira / Agência Senado

 

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