Carlos Nobre, da USP, critica Marco Temporal

Vista aérea em Terra Indígena Karipuna (Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

Carlos Nobre, que integrou o IPCC, da ONU, também é contrário à prospecção de petróleo na Amazônia, para onde negocia com o governo federal uma grande iniciativa de bioeconomia da floresta em pé, a Amazônia 4.0.
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O meteorologista Carlos Nobre, pesquisador colaborador do Instituto de Estudos Avançados da USP e que integrou o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, criticou a aprovação pela Câmara dos Deputados do chamado Marco Temporal, projeto de lei que restringe as demarcações indígenas, e da Medida Provisória 1150, que permite ampliar o desmatamento da Mata Atlântica. Ele acredita que o Supremo Tribunal Federal (STF) vá derrubar o Marco Temporal, que o pesquisador considera inconstitucional, e também espera que os parlamentares recuem e não avancem com o PL do desmatamento.

“Por que os deputados federais não representam a vontade da população?”, questiona Nobre. Ele destaca que, nas pesquisas de opinião, 90% da população têm se posicionado pela defesa da Amazônia e da Mata Atlântica. “Uma vez eleitos, os políticos se desconectam da vontade do eleitor. Isso mostra, infelizmente, uma fraqueza da democracia.”

O pesquisador lembra que a proteção aos direitos dos povos indígenas é cláusula pétrea na Constituição, e que o Marco Temporal voltará a ser discutido este mês no STF, onde já tramita há anos. “Um marco temporal – outubro de 1988, data de promulgação da Constituição – para delimitação de territórios indígenas, com milhares de comunidades ainda existentes no país, parece-se claramente inconstitucional. O único marco temporal que faz sentido para os povos indígenas seria abril de 1500, quando os portugueses chegaram.”

A identificação da legitimidade dos territórios das comunidades, de acordo com o texto constitucional, deve ser feita por meio de estudos antropológicos, caso a caso, defende Nobre. “Estou moderadamente otimista de que o STF vá derrotar em breve o Marco Temporal. E o Congresso não poderá passar por cima de uma cláusula pétrea da Constituição.”

Mata Atlântica
Na opinião do pesquisador, a MP da Mata Atlântica é tão grave quanto o ataque aos territórios indígenas. Ele lembra que, da cobertura original de cerca de 1,2 milhão de quilômetros quadrados, 80% já foram desmatados, o que motivou a criação, no primeiro governo Lula, de um marco legal para zerar o desmatamento e criar projetos de restauração florestal. “É um absurdo o Congresso atual ter revogado aquele marco importantíssimo”, lamenta o especialista.

A Mata Atlântica é uma floresta tropical com a maior diversidade de espécies de árvores do mundo, chegando a reunir 450 espécies em um único hectare (equivalente a 10 mil metros quadrados). Carlos Nobre alerta que, se o agronegócio continuar a se expandir pelo pouquíssimo que resta do bioma, “o Brasil estará indo na contramão de qualquer ideia de sustentabilidade ambiental e social que o planeta precisa”.

Bioeconomia x Petrobras
O que o planeta necessita, na avaliação do pesquisador que há 50 anos estuda o clima, é cumprir os compromissos dos acordos climáticos.. Para o Brasil, isso significa reduzir à metade as suas emissões de gases efeito estufa (GEE) até 2030 e zerá-las até 2050. Por isso, por princípio, Nobre é contrário à prospecção de petróleo na foz do rio Amazonas, empreendimento polêmico da Petrobras, cuja licença ambiental foi recentemente negada pelo Ibama.

Nobre defende a chamada bioeconomia com a floresta em pé. Propõe capacitar comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas, combinando saberes tradicionais à ciência avançada, para formar arranjos produtivos limpos e inovadores, que agreguem valor aos produtos da floresta, numa iniciativa panamazônica, articulada em vário países, por meio da criação do Instituto de Tecnologia da Amazônia (AmIT).

“Pensando a curto prazo no próprio beneficio da humanidade, temos que combater a emergência climática, zerar as emissões até a metade do século, para evitar a pior crise da humanidade”, diz. “Quase 70% das emissões são queima de combustíveis fósseis. Nenhum cientista pode defender que se abram novos poços de petróleo, de gás natural, de carvão.” Além da questão climática, ele também cita os riscos, apontados pelo Ibama, à integridade dos ecossistemas aquáticos, dos recifes de corais encontrados no rio.

O Brasil, na avaliação do pesquisador, deveria dar o exemplo, porque conta com um “potencial gigantesco” de energia renovável. Segundo suas estimativas, a geração de eletricidade a partir da fonte solar e eólica custa, no país, um terço da geração com termelétricas e a gás natural. “Há risco [nos combustíveis fósseis] para a mudança climática, risco para as zonas costeiras e os ecossistemas aquáticos. Para que correr esse risco, quando hoje as energias renováveis já são muito mais economicamente viáveis?”, questiona.

Dos US$ 15 bilhões que, de acordo com números da Petrobras, seriam investidos para fazer os seis poços em regiões costeiras do Amapá, uma fração poderia ser aplicada em energia renovável e para desenvolver uma economia de floresta em pé, gerando dezenas de milhares de empregos, argumenta o pesquisador da USP. “Gera bem estar social e econômico, qualidade de vida. Pode transformar em classe média uma imensa parte da população rural e urbana, com a neo industrialização.”

Ônibus elétricos e descarbonização
A transição para uma economia descarbonizada, diz Nobre, vai demandar recursos públicos e privados, linhas de crédito do BNDES, e políticas que estimulem essa migração gradual. Ele salienta que, na Noruega, grande produtora de petróleo, os carros elétricos já foram 80% do total vendido em 2022. E, no Reino Unido, não haverá mais nenhum veículo a combustão a partir de 2030.

No Brasil, uma estratégia para acelerar a transição seria substituir ônibus elétricos em áreas urbanas, alternativa mais rentável do que o diesel e mais saudável. A poluição urbana mata por ano, diz Nobre, 7 milhões de pessoas. E o país já produz ônibus elétricos para exportação. [Uma nova linha da Eletra foi inaugurada nesta sexta-feira (6), em São Bernardo do Campo.]

“Estudos mostram que a poluição de São Paulo reduz em dois anos a expectativa de vida dos paulistanos. E, para aqueles que ficam até três horas por dia no trânsito, essa perda pode chegar a quatro anos. Eletrificar a frota de ônibus vai salvar milhares de vida”, propõe.

Embora a transição possa levar uma década, é importante começar, alerta o pesquisador. “O Brasil está atrasado, indo muito lentamente. O Chile, com uma população de 20 milhões de pessoas, tem mais ônibus elétricos do que o Brasil”, critica o pesquisador.

Amazônia 4.0 e soberania
Para tentar fazer esse processo avançar, Carlos Nobre integra o projeto Amazônia 4.0 (www.amazonia4.org), de bioeconomia da floresta em pé, que, agora, com o governo Lula, começa a ser discutido junto ao poder público. As conversas têm acontecido, em especial, com representantes dos ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima; da Ciência, Tecnologia e Inovação; e do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.

A base do modelo é o potencial econômico da biodiversidade amazônica, incorporando ciência e inovações aos conhecimentos de povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos. As ações estão estruturadas em três componentes: biofábricas; oferta de cursos e formação especializada; e a criação do Instituto de Tecnologia da Amazônia (AmIT), apoiado por vários países da região, entidades públicas e privadas.

As biofábricas operam como pequenos laboratórios para capacitar as populações a tratarem os recursos naturais de forma alinhada à neo-industrialização. Já está pronto o laboratório da cadeia do cupuaçu e do cacau, que será implantado na Amazônia para capacitar quatro comunidades do Pará a industrializar a matéria-prima – três produtoras de cacau, e uma de cupuaçu. Calcula-se que os ganhos obtidos com o chocolate, já produzido ou industrializado, sejam de dez a 20 vezes maiores, em comparação aos resultantes da venda do cacau ou do cupuaçu sem valor agregado.

Estão desenhados outros laboratórios para fabricação de produtos derivados da castanha, para fazer “azeite gourmet” e até para capacitar profissionais locais em sequenciamento genético. “A Amazônia tem a maior biodiversidade do planeta”, explica Nobre. “Globalmente se estima que o conhecimento genético vai ser uma indústria de trilhões de dólares a partir de 2030, e o Brasil tem a maior biodiversidade do planeta. Um dos laboratórios vai capacitar comunidades em sequenciamento genômico de espécies de plantas, animais e microorganismos – que ganharam relevo por causa da pandemia. E criamos um sistema blockchain, para que essas comunidades rurais possam registrar o sequenciamento genômico.” A próxima a ser desenhada é a mini fábrica do açaí, que movimenta atualmente uma economia global de US$ 20 bilhões, dos quais 5% retornam à região, melhorando a vida de muitas pessoas.

O segundo componente é a fundação de uma escola de negócios para a bioeconomia da floresta em pé – que seria batizada de Amazonia Rainforest Business School. Um conjunto de 20 cursos está pronto para ser publicado em uma plataforma online, para formar gestores de startups e a população que vai atuar nesse negócio.

Finalmente, o Instituto de Tecnologia da Amazônia (Am-IT) deverá reunir quadros de excelência, que Nobre compara ao padrão do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos EUA, ou do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), no Brasil. Seu papel será desenvolver a nova bioeconomia, promover parcerias público-privadas, articular os países da região amazônica.

Em todo o projeto, o pesquisador da USP destacou a importância da engenharia no suporte à construção da infraestrutura educacional, mais de 20 laboratórios flutuantes e fixos, polos de inovação, viabilizar investimentos do BNDES, do BID, do Banco Latino-Americano de Desenvolvimento, do Bird.

“A negociação começou agora com o governo federal, mas desde o ano passado estamos conversando com o governo do Pará, que tem várias políticas de restauração da floresta, de bioindustrialização”, conta Nobre. “Soberania é um conceito que precisamos atualizar para o século 21. Não é o conceito da ditadura militar, na década de 70, que usaram para invadir a Amazônia e dizimar povos indígenas. Soberania é buscar sustentabilidade, proteger comunidades rurais e urbanas. Não é posse da terra. A soberania é manter um equilíbrio ambiental, ecológico, social, com enorme humanismo. Vamos tornar o nosso país um dos primeiros realmente soberanos.”

> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)

> Confira o Soberania em Debate com o meteorologista Carlos Nobre, pesquisador colaborador do Instituto de Estudos Avançados da USP e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, entrevistado pelo advogado e cientista político Jorge Folena e pela jornalista Beth Costa, da coordenação do SOS Brasil Soberano:

 

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