Aí, Você, Feliz Dia do Orgulho Gay no País de Bolsonaro!

Participantes da 19ª Parada do Orgulho LGBTQI+ na Avenida Paulista, São Paulo (7/6/2017) – Foto: Leo Pinheiro/Fotos Públicas

Francisco Carlos Teixeira da Silva*

Os homossexuais desempenharam desde cedo um papel central na fala do bolsofascismo e na construção do perfil do líder da extrema-direita brasileira. Foi como um sinal de alerta. Em face da pequena comunidade judaica no Brasil – 0.2% da população brasileira, cerca 108 mil judeus brasileiros em 2010, apontava o IBGE –, os gays foram os judeus no neofascismo brasileiro.

E, ainda uma vez, como nos casos históricos da Alemanha e da Itália, mereceram o opróbrio – ao lado de negros e da oposição formada pelas Esquerdas, foram convertidos em inimigos que deveriam ser exterminados.

[A Alemanha possuía em 1933 uma pequena população de Negros e mestiços decorrentes da Ocupação de soldados coloniais franceses da Primeira Guerra Mundial, os chamados “Rheinlandbastard” e a Itália possuía uma vasta população de negros vinda das suas colônias da África (1) ].

Todo fascismo inventa “seu judeu”, o inimigo necessário, o Outro conveniente (2), a alteridade que promove, mantém a mobilização da população, garante a radicalização acumulativa das massas e quando necessário, e será necessário, explica os fracassos, tornando-se o “bouc emissaire” que deve ser sacrificado em Holocausto (3).

Muito antes de sua eleição presidencial – talvez antes de sequer imaginar a possibilidade de ser presidente – Bolsonaro já se utilizava da “reversão” do conceito clássico dos Direitos Humanos, em especial da proteção de minorias, como os Homossexuais, para garantir sua eleição e seu nicho de extrema-direita. Em 2014, em uma entrevista ao jornal El País, ele afirmava sua plataforma de “Direitos (in)Humanos”:

“…em primeiro lugar a pena de morte […] ..depois a redução da idade penal e uma política de planejamento familiar, de reduzir o número de filhos dos mais pobres. Porque os mais pobres têm bolsas [benefícios] que os estimulam a terem mais filhos. Então, gente sem cultura acaba tendo mais filhos [….]. Uma terceira proposta seria uma luta para revogarmos o estatuto do desarmamento. Porque o governo desarmou as pessoas de bem, mas a bandidagem está cada vez mais armada. E o cidadão não tem como se defender”(4). Em seguida, de forma clara, apontava para a necessidade de “desproteção” das minorias: “Só porque alguém gosta de dar o rabo dele passa a ser um semideus e não pode levar porrada…?”

A novilíngua do fascismo já mostrava-se, então, em sua plenitude. Debochada, vil e ofensiva. Quando o repórter espanhol tentou argumentar e contrapor dados sobre a violência cotidiana no Brasil, a resposta foi direita e ofensiva: “- você é gay?” Esse tipo de argumento se repetiria centenas de vezes, inclusive na Presidência da República – não argumente, ofenda! Esse é o código do próprio “guru” do presidente e de sua família, que ao longo da campanha presidencial, e na própria presidência, ministros e altos funcionários, popularizariam: a fixação no calão e no baixo corporal como parte fundamental da novilingua.

O buraco/furo/rosca/cu tornar-se-iam recursos obsessivos da fala apostrofada, assindéticas, dos altos funcionários e do seu guru, gerador de uma patina espessa, causa do sintoma doloroso que guia a fala constante rancorosa e invejosa contra os homossexuais, negros e pobres do país.

Já em 2020, confrontado pelo escândalo familiar das “rachadinhas”, irá sacar contra o jornalistas: “Você tem uma cara de homossexual terrível. Nem por isso eu te acuso de ser homossexual. Se bem que não é crime ser homossexual. Você fala ‘se’, ‘se’, ‘se’ o tempo todo (5) ”. Ser homossexual é na novilíngua, ao mesmo tempo, motivação para ofensa, para o silêncio, para o recuo ao armário – mas, é ainda uma constante de curiosidade, do querer saber, do querer mostrar e do querer dizer. Há sempre uma
compulsão em face desse Outro que goza um gozo que Eu reprimo e não gozo e devo matar, exterminar e recalcar.

O Brasil é um país que mata homossexuais. E mata de modo cruel e torpe. Tortura, como antes torturava pessoas escravizadas, depois, cedo na República Velha (1889-1930), torturava dissidentes políticos, e nas ditaduras torturava resistentes (1930-1945).

Na Ditadura, os torturadores que Bolsonaro tanto defende tinham técnicas especiais para os buracos/fendas/orifícios dos corpos de homens e mulheres. Trata-se claramente de uma constante, uma forma institucionalizada de criar e de tratar o Outro pela invasão com próteses e animais numa imitatio pervertida do “Homem dos ratos”, narrado por Freud. A mímica da arma, prótese extensiva de pênis que deve ser sempre maior e exibido – aquilo que falta –, é a própria não realização da fase fálica, que deve ser  reposta como repetição como poder sobre o Outro, como invasão indigna, pervertida, não desejada, não gozosa. – tortura. O gozo do gay desafia a falta peniana do fascista. É o pênis amputado – pesadelo publicamente exposto por Bolsonaro – que desafia  a mímica da “arminha” (6). Assim, o fascista se obriga a destruir no homossexual a sua própria falta. O fascismo não é fálico. É anterior, é uma falha: trata-se de uma fixação primária peniana.

No Brasil, a cada 23 horas uma pessoa homossexual é assassinada: por arma branca; por estrangulamento; por espancamento; por arma de fogo. A maioria dentro de casa: da sua própria casa ou de familiares. Não há conforto no lar – por vezes, o medo e a vergonha se instalam nas relações familiares. Não temos estatísticas reais ou confiáveis em razão do próprio preconceito (7). Em 2019, foram 329 mortes por motivos diretamente ligados a condição sexual da vítima que puderam ser registradas. Embora acreditemos num número muito superior. O assédio moral é uma chaga constante, razão para um número avassalador de suicídios; um aumento de mais de 200% registra em 2018 (8).

O número de assassinatos registra uma diminuição de 27% em relação ao ano anterior, em boa parte devida à criminalização da homofobia via o STF. No entanto, o Presidente Bolsonaro trabalhou, militou, intensamente, contra a lei. Declarou que “…no [ STF] se tivesse um ministro [terrivelmente] evangélico no Supremo, ele poderia pedir vista do processo e ‘sentar em cima dele’ (9)”.

Mostra-se claramente manipulador e incapaz de qualquer sentimento de compaixão: na mesma semana em que um adolescente havia se suicidado após ser surrado pelo pai por “apresentar trejeitos afeminados”, o Presidente voltou a declarar: “Ter filho gay é falta de porrada”, repetindo declarações anteriores já conhecidas (10). Sem nenhum cuidado, sem citar nenhum trabalho, nem mesmo o já superado conceito da pretensa psicologia da “cura gay”, apenas reforçando preconceitos e de olho no seu eleitorado de extrema-direita, alimenta o ódio contra uma parcela da população. E o faz de forma consciente, mas acaba por atingir o inconsciente traumatizado de milhões de pessoas tocadas pelo sofrimento quando afirma:

“- Eu comecei a assumir essa pauta conservadora. Essa imagem de homofóbico ficou lá fora”, disse, afirmando como se isso fosse um filão eleitoral. Quando perguntado sobre o impacto de tais políticas sobre a imagem externa do país, foi rápido: “… isso não prejudica investimentos ou o turismo… O Brasil não pode ser um país do mundo gay, de turismo gay. Temos famílias” . Para concluir que o bom turista é aquele que vem “pegar mulher” (11).

O argumento apresentado pelo bolsofascismo é o mesmo que levou milhares de pessoas gays aos campos de trabalhos forçados e de extermínio da Alemanha e da Itália: a tese da “epidemia gay”, do contágio – basta um gay para “contaminar” dezenas de
heteros bons (12 ). Daí a necessidade urgente da segregação e, mesmo, do extermínio. Na mesma entrevista ao El País, Bolsonaro explicita igual “tese” sobre as origens da homossexualidade: “A imensa maioria vem por comportamento. É amizade, é consumo
de drogas. Apenas uma minoria nasce com defeito de fábrica. Aqui no Brasil se tem a ideia de que quem for homossexual vai ter sucesso na vida. As novelas sempre mostram os gays bem sucedidos, que trabalham pouco e ganham muito, têm carrões (13). ”

Por fim, numa confusão proposital entre homossexualidade e pedofilia, abre fogo contra a educação sexual, a teoria de gênero – transformada em “ideologia” de gênero -, e ataca a Escola, em especial a Escola Pública: “Quem pensa dessa maneira de respeitar [os Direitos Humanos] é quem quer levar essa matéria para as escolas para transformar crianças de seis anos em homossexuais.

Ao ponto que daí facilita a pedofilia no Brasil (14)”. De acordo com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, a grande maioria das denúncias de homofobia recebidas pelo Disque 100 (em 2011 foram quase 7 mil) é de violências sofridas por gays dentro de casa, exatos 42% (15) . Esse sem dúvida é o mantra da Ministra da Cidadania e dos Direitos Humanos (!) do bolsofascismo, cuja maior contribuição ao Brasil será a invenção do “kit peniano” – mais uma vez a fixação do bolsofascismo, a famosa mamadeira que assola os sonhos do neofascismo brasileiro, aquilo que falta, que é reposto sob a forma de prótese na mímica da “arminha”.

Para Bolsonaro “os crimes de homofobia têm que ser tratados da mesma forma que qualquer outra morte: “ – quantos heterossexuais morrem por dia? Morrem muitos mais que homossexuais”. Com certeza. Morrem muitos mais pessoas de Covid-19. Que o Presidente também não vê.

O Brasil é, de fato, um país de mortos invisíveis para o fascismo.

NOTAS

(1) POMMERIN, Reiner. Sterilisierung der Rheinlandbastarde. Das Schicksal einer farbigen deutschen Minderheit 1918–1937, D6usseldorf, Droste Editora, 1979.
(2) GAY, Peter. O Cultivo do Ódio. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
(3) KERSHAW, Ian. Hitler. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
(4) El País. “Os gays não são semideuses. A maioria é fruto do consumo de drogas”, 14/02/2014. In: https://brasil.elpais.com/brasil/2014/02/14/politica/1392402426_093148.html, consultado em 12/06/2020.
(5) CATRACA LIVRE. Bolsonaro ataca homossexuais novamente para mascarar caso de Flávio, 20/12/2019.
In: https://catracalivre.com.br/cidadania/bolsonaro-ataca-homossexuais-novamente-para-mascarar-caso-de-flavio/. Consultado em 12/06/2020.
(6) FOLHA DE S. PAULO. Bolsonaro manifesta preocupação sobre amputações de pênis, 25/04/2019. In: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2019/04/bolsonaro-manifesta-preocupacao-sobre-amputacoes-de-penis.shtml, consultado em 12/06/2020.
(7) G1. Brasil registra uma morte por homofobia a cada 23 horas, aponta entidade LGBT, Brasil registra uma morte por homofobia a cada 23 horas, aponta entidade LGBT,17/05/2019, consultado em 12/06/2020.
(8) DIÁRIO DO NORDESTE. Suicídio entre público LGBT aumenta quase quatro vezes em dois anos…04/02/2019. In: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/suicidio-entre-publico-lgbt-aumenta-quase-quatro-vezes-em-dois-anos-1.2058979. Consultado em 06/06/2020.
(9) EXAME. Bolsonaro diz que decisão de homofobia é errada e pode prejudicar gays, 14/06/2019. In:
https://exame.com/brasil/bolsonaro-diz-que-decisao-da-homofobia-e-errada-e-pode-prejudicar-gays/.
Consultado em 12/06/2020.
(10) PORTAL GEELEDÉS. “Ter filho gay é falta de porrada”, diz Bolsonaro, 07/03/2014. In:
https://www.geledes.org.br/ter-filho-gay-e-falta-de-porrada-diz-bolsonaro/. Consultado em 12/06/2010.
(11) El País. Op. Cit.
(12) SIGMUND, Ana Maria. Das Geschlechtsleben bestimmen Wir: Sexualität im Dritten Reich. Munique, Heyne Editora, 2009.

*Francisco Teixeira é professor titular de História Contemporânea (UFRJ/UFJF), coordenador do Movimento SOS Brasil Soberano

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