Nos 120 anos de nascimento de Candido Portinari, seu legado de arte e luta seguem tocando mentes e corações

“Segregado em coleções particulares, em salas de bancos, Candinho se vai tornando invisível. Vai continuar desmembrado nosso maior pintor, como o Tiradentes que pintou?”

A denúncia era de Antonio Callado, jornalista e escritor, no ano de 1977. Era final de ditadura civil-militar e a ânsia de resgatar os símbolos e a arte que definia o que de fato era ser brasileiro permeava a intelectualidade brasileira. Foi nesse contexto que nasceu o Projeto Portinari, com a missão de resgatar a obra e a vida daquele que, considerado o maior pintor brasileiro de sua época, tinha 95% de suas obras inacessíveis ao público.

“Percorremos todo o território brasileiro, mais de 20 países das três Américas, da Europa e do Oriente e, após 25 anos de trabalho, publicamos os cinco volumes com a obra completa de Portinari. Era o primeiro Catálogo Raisonné na América Latina a cobrir a obra completa de um artista”, conta João Candido Portinari, único filho do artista e fundador e diretor geral do Projeto Portinari. 

Em entrevista para o programa “Soberania em Debate” em 16 de novembro, João conta que, após a publicação do catálogo e da crono biografia, ficou evidente que todo esse trabalho precisava ser direcionado a uma causa maior. “Ficou óbvio para nós que deveríamos transmitir para as crianças e jovens os valores que as obras de Portinari passam, de não-violência, fraternidade, justiça social, respeito à vida”, destaca João Candido.

A ideia do projeto Portinari nas Quebradas, proposta por Guilherme de Almeida, coordenador geral do Núcleo de Arte e Educação do Projeto Portinari, tinha como objetivo levar a obra do pintor a crianças e jovens de favelas e periferias. “Fomos ao Complexo do Alemão, à Maré, Cidade de Deus, Madureira, Suruí, Niterói e seguimos trabalhando. Ver crianças que não têm acesso a nada, não participam de nada, de repente diante de uma exposição de Portinari, é muito comovente”. 

Em 2009, o projeto foi ainda mais longe: a bordo de um navio da Marinha, as obras de Portinari navegaram pelo Amazonas e seus afluentes, chegando a 19 populações ribeirinhas do Pantanal matogrossense. As exposições também passaram por presídios.

Arte e luta

Ao longo da conversa com a jornalista Beth Costa e o advogado Jorge Folena, Portinari falou sobre a relação do pai com escritores e poetas de seu tempo. “Drumond dizia que Portinari era muito mais companheiro dos poetas e escritores que dos outros artistas. eles conviviam semanalmente, estavam sempre juntos discutindo política, arte, mundo. Minha mãe preparava uma macarronada que não tinha hora para chegar ou sair. E iam chegando José Lins do Rego, Villa-Lobos, Graciliano Ramos, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e ficavam lá discutindo”, conta.

Nessa convivência com grandes nomes da arte nacional, Portinari mantinha uma forte consciência política. Militante do Partido Comunista, desagradou a elite, mas ganhou grandes amigos, como Dalcídio Jurandir. “Lembro que, no ano em que ele entrou no Partido Comunista, a mesa da sala que ficava cheia de presentes no Natal, sempre enviados por muitos amigos, ficou vazia. foi uma escolha corajosa”, conta João. 

As convicções políticas, segundo João, não eram baseadas em teoria, mas da vida em uma família com poucos recursos. “Portinari dizia que não pretendia entender de política. Suas convicções vieram de uma infância pobre e daquilo que testemunhou das pessoas. Ele não era um intelectual marxista. Estudou apenas até a terceira série primária, mas era um homem profundamente inteligente e intuitivo. Sua posição política era visceral, não mental. Ele tomou inteiramente o partido dos despossuídos, dos humilhados, dos ofendidos e lutou a vida toda por eles”, conta.

Legado e futuro

O legado do pintor e o trabalho do seu filho seguem tocando vidas. Durante o programa, mensagens no chat emocionaram o convidado. Pelo chat, Marinalva Machado da Silva agradeceu a João: “Estou em lágrimas de felicidade. Portinari está transformando a vida da minha filha. Muito obrigada ao senhor João, por acreditar nos jovens do Maranhão, em especial no povoado Bom Lugar”. João agradeceu, emocionado. 

“A gente tem que ampliar essa ação. Por enquanto, ela é muito pontual. O que está dentro das nossas possibilidades é muito pouco. Mas esse pouco já cria esperança”, comemorou. Nesse sentido, os projetos seguem sendo construídos e ampliados. Para 2024, um dos focos será na importância da mulher na obra de Portinari. “Quando você olha o painel da paz, só há mulheres. No painel da guerra, também. Na série retirantes, a mulher é sempre a figura central. Estudando sobre isso, cheguei à figura da minha bisavó, avó materna do meu pai, Maria Sandra. Era uma mulher muito humilde, mas pioneira em tudo. quando você vê o retrato que Portinari fez do rosto dela, não resta dúvida. Era uma força da natureza. Essas mulheres, as tias, as irmãs, a avó tiveram uma influência decisiva na obra do meu pai”, conta. 

A importância do negro na obra de Portinari também estará no centro dos projetos. A ideia é ampliar a exposição Portinari Negro, levada a praça pública em Paracatu e Itabira, Minas Gerais. “São grandes reproduções iluminadas por trás, permitindo a visitação à noite. Paracatu tem 73% de população negra e foi muito emocionante ver esse encontro”, conta. Os povos originários também estão entre as influências do pintor e fazem parte dos planos para o próximo ano. “A última obra dele, que ficou inacabada por causa de sua morte, era uma índia Carajá. Há uma foto dele cumprimentando um indígena jovem e a ternura fica evidente”, conta.

Ao final de um programa emocionante, João Candido Portinari declarou que, se tivesse que definir seu pai, seria com um poema, que recitou:

Vim da terra vermelha e do Cafezal.

As almas penadas, os brejos e as matas virgens 

Acompanham-me como o espantalho,

Que é meu autorretrato.

Todas as coisas frágeis e pobres

Se parecem comigo.

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