A resistência, na luta por uma educação democrática


“Importante dizer que podem tentar acabar com o pensamento crítico, mas nunca vão conseguir. Por mais que se criem mecanismos de controle da autonomia docente, da escola, ninguém controla a minúcia do trabalho do professor, ninguém controla o que pensa o estudante e como ele se manifesta no mundo. Podem tentar aumentar esse controle, mas ele nunca vai ser total.” Quem diz é o historiador Fernando Penna, doutor e mestre em Educação, diretor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do Movimento Educação Democrática, uma das principais lideranças da resistência aos ataques reacionários desferidos na área educacional desde o afastamento da presidenta Dilma Rousseff, em 2016.

Apesar do esforço de professores, do movimento estudantil e da sociedade, no entanto, Penna reconhece que está cada vez mais difícil o trabalho na escola. “Ao invés de incentivar a formação do professor, garantir o tempo de preparação das aulas, investir na sua formação continuada, temos o contrário: a precarização cada vez mais intensa do trabalho docente, salários minúsculos, falta de estrutura, de tudo”, diz. Além disso, o historiador ressalta que o professor é desvalorizado não só em termos de infraestrutura e salário, mas também na sua representação social, alvo de campanhas de ódio e suspeição, fomentadas pelo bolsonarismo.

Nessa disputa, o campo reacionário sofreu algumas derrotas, especialmente ao não conseguir implantar projetos de controle da atividade docente pela via legislativa, mas está avançando no desmonte do arcabouço institucional do sistema. Segundo Penna, os projetos “Escola sem Partido”, que pretendia censurar a atuação dos professores em sala, e “Antigênero”, destinado a proibir o conteúdo relacionado a questões de gênero, foram apresentados em mais de 200 estados e municípios pelo país. Em Alagoas, com o nome Escola Livre, o Escola sem Partido chegou mais longe – mas foi julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o que o historiador acredita que vá dificultar a continuidade de sua tramitação em outros estados.

As ameaças, contudo, não acabaram, diz Penna. Entre outras, uma consequência muito negativa dos ataques do reacionarismo à representação social dos professores é a autocensura da categoria. “Estimulavam a perseguição dos professores e que eles fossem processados, perseguidos, intimidados. E muitos professores, quando se viam sozinhos e ameaçados, em um contexto sem apoio de ninguém, se autocensuravam por medo. O professor está sendo afetado, mas o estudante é o principal prejudicado, porque é o seu direito à educação que está sendo atingido. Ele está deixando de discutir temáticas importantes para sua formação por conta dessa pressão.”

Um exemplo nesse sentido, lembra o historiador, é a importância da escola na abordagem de temáticas relacionadas a gênero e orientação sexual, para que alguns alunos possam entender o que vivem e para não considerarem como naturais os eventuais abusos que estejam sofrendo no espaço privado e que devem ser problematizados e denunciados. “Muitas denúncias acontecem depois da aula sobre orientação sexual, quando a criança denuncia o padrasto, o tio… Se você não tem isso nas escolas, o prejudicado é o aluno. A gente sabe o quanto a discussão sobre orientação sexual, por exemplo, diminui a gravidez na adolescência e o índice de doenças sexualmente transmissíveis. Em última instância, é a sociedade como um todo que é mais prejudicada.”

Se há autocensura, por outro lado Penna conta que, ao longo dessa última década, também surgiu uma resistência forte dos professores. “Aqueles que criam redes de solidariedade docente no movimento social, no sindicato, em associações científicas resistem, fazendo o seu trabalho e, algumas vezes, de maneira ainda mais forte, consciente e articulada do que antes.” Segundo ele, “quando as tentativas de atacar a escola são contra-argumentadas, enfrentadas, isso fortalece o nosso projeto da Escola Democrática que queremos”.

O Movimento Educação Democrática
A escola democrática defendida pelo movimento coordenado por Penna não “se define em abstrato”, mas envolve aspectos objetivos relacionados ao contexto atual. É necessário, explica o historiador, garantir infraestrutura, valorização dos professores, políticas para manter os alunos na escola, gestão democrática, laicidade, conteúdos voltados à educação ambiental e de direitos humanos.

“Não existe educação democrática se não houver infraestrutura para as escolas”, diz, lembrando que muitas escolas brasileiras ainda não têm saneamento básico, banheiro, água encanada. “Precisamos falar também em valorização docente – salarial, mas não só. Pensar numa formação continuada, valorizar esses professores para que possam fazer seu trabalho. E políticas de permanência estudantil, porque, se os estudantes não tiverem como permanecer na escola, toda a discussão subsequente não interessa muito.”

Finalmente, a gestão democrática, ressalta Penna, não significa apenas garantir eleições diretas para a direção, envolve a participação da comunidade escolar na elaboração de projetos político-pedagógicos, grêmios, conselhos escolares. Com esse ideário, o coletivo tem se posicionado contra várias políticas públicas reacionárias: contra a reforma do Ensino Médio, ainda em curso, a BNCC da educação básica, o Escola sem Partido e a perseguição do tema de gênero.

“Falando de Paulo Freire, um elemento para pensar a sala de aula é justamente uma pedagogia do oprimido, uma pedagogia que vai combater as formas de opressão que atravessam a nossa sociedade e que, em sala de aula, se convertem em formas de exclusão escolar”, argumenta Penna.

Exclusão que tem sido a marca das políticas atuais. “Todos esses ataques de cunho tipicamente reacionários – Escola sem Partido, escolas cívico-militares, a tentativa de proibir a discussão de gênero – vão nesse caminho de retroceder espaços de avanço”, afirma o historiador. “Muito diferente do que nós vivemos na época da expansão das universidades, na qual filhos de pedreiros chegaram à universidade, a pós-graduação se expandiu muito. Mas isso incomodou muita gente, e não é à toa que tivemos esse movimento reacionário, culminando no golpe de 2016 e se fortalecendo com o governo Bolsonaro.”

O pesquisador cita, por exemplo, as escolas cívico-militares. “Muita gente pensa que vão trazer de volta a disciplina. Não. Qual o principal valor cultivado na escola que nós almejamos, que é inclusive título do último livro do Paulo Freire que ele editou em vida, que é a Pedagogia da Autonomia? O valor maior numa educação democrática é autonomia – que as pessoas aprendam, sejam capazes de se orientar com base nos seus próprios pensamentos. E o valor maior da escola cívico-militar é hierarquia, obedecer à ordem que vem de cima. Hierarquia e autonomia são valores que não dialogam, contraditórios. Fica claro aqui qual é a que nós defendemos. Qual é a escola vinculada a uma defesa de uma educação democrática e qual é a escola desse movimento reacionário, uma escola que não ensina a pensar, a ver o mundo, mas ensina a obedecer, ensina a fazer o que tem de mais básico pra conseguir um subemprego.”

Para reverter esse quadro e impedir o sucesso de tentativas de fechamento do regime por parte do governo, Penna espera o crescimento das manifestações nas ruas. “Vai chegar o momento no qual os movimentos sociais, os movimentos sindicais sejam ouvidos novamente e possam participar mais ativamente da vida política. E vamos continuar avançando nesse imaginário igualitário, para combater desigualdade de gênero, raça, classe e a maneira como elas se cruzam. Eu acho que esse é o ponto. Mas, se ficar sentado esperando, não adianta; temos que ‘esperançar’ juntos a nossa mobilização, que impede o retrocesso e garante que a gente chegue a um contexto no qual podemos avançar novamente.”

> O Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)

> Assista na íntegra ao Soberania em Debate com o historiador Fernando Penna, coordenador do Movimento Escola Democrática, entrevistada pelo advogado e cientista político Jorge Folena e pela jornalista Beth Costa, coordenadores do SOS Brasil Soberano

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