Manuel Domingos Neto*
Todos ligados na incompetência do militar na pandemia. E quanto à defesa armada do Brasil?
O país precisa, pode e deve dispor de instituições militares com missões definidas, apropriadamente equipadas e obedientes ao princípio de que todo o poder emana do povo e só em seu nome pode ser exercido.
Nunca dispusemos de corporações assim. A disjunção entre o Estado e a sociedade não permitiu. O Estado nasceu obediente a um príncipe português e não superou sua índole vassala. Foi capturado por oligarquias e estamentos que promoveram o desenvolvimento socialmente excludente.
Descolado dos anseios da maioria, o Estado se expôs aos instrumentos de força que criou para se proteger. O militar empenhou-se em ditar-lhe os rumos. O Exército, deslumbrado com a própria força, imaginou-se até fundador da nação, também chamada de pátria, que deriva de “terra dos pais”.
O militar não entendeu que pátria é elaboração simbólica coletiva. Emerge de confrontações e negociações entre variados atores. Não resulta de deliberações corporativas. Outorgando-se a paternidade da pátria, o militar menospreza a sociedade e avilta o Estado. Da janela do quartel, só vê qualidade no “paisano” que o corteje.
O militar precisa contribuir para a defesa do Brasil. Não pode, usando artificiosos expedientes, pretender papel que não lhe cabe. Sem perder a mania de mandar em tudo e de policiar brasileiros, não faz sua parte.
Para o Brasil se defender, é fundamental distinguir os “assuntos da defesa” e os “assuntos militares”. Os primeiros compreendem vasto e intrincado rol de políticas públicas; os segundos dizem respeito a estruturação, funcionamento e manejo das corporações armadas. O militar deve subordinar-se aos ditames do Estado, não pretender conduzi-lo.
Apenas o Estado, entendido como um pacto entre interesses conflitantes, tem autoridade e capacidade para conceber e conduzir assuntos de defesa. Percepções e vontades corporativas não traduzem os interesses do Estado e da sociedade. Ao poder político cumpre definir as forças armadas necessárias ao Brasil.
Dispomos de ministério específico para tratar dos assuntos da defesa. Ministérios são braços executivos do poder político. Do contrário, prevaricam. Expressando dilemas existenciais e gana de mando, o militar, por ignorância ou má fé, pretende que esse ministério lhe “represente”.
Comandante prepara a tropa para atender ao mando político. Arrebatando o lugar do político, subverte a ordem democrática e deixa o país vulnerável.
Para dispormos de defesa nacional, a primeira condição é promover a coesão entre os brasileiros. Quanto mais fragmentados por iniquidades, mais vulneráveis seremos. Divididos por preconceitos e discriminações, não teremos a defesa de que precisamos.
Potências estrangeiras procuram sabotar nossa coesão estimulando a percepção de “inimigos internos”. Assim fizeram os franceses que modernizaram o Exército na primeira metade do século XX e os estadunidenses ao longo da guerra fria. Assim ocorre hoje quando defensores da inclusão social são tratados como inimigos.
Quem rejeita mudanças sociais de premência indiscutível trai a pátria. Apresenta-se como defensor de “tradições”, sabendo que há tradições e valores que são cadáveres insepultos.
O militar que só tem olhos para a ordem interna parou no tempo colonial. É um anacrônico. Não percebe a pátria como uma sociedade em mudança permanente, unificada pelo sonho de uma vida melhor para todos. A pátria é antes de tudo uma poderosa e imaginária comunhão de destino. Sacrossanta, não aceita registro de nascimento em cartório, mas na alma comunitária. Como disse Ernest Renan há mais de um século, é uma opção cotidiana. Castrense vive apartado, não capta suas pulsações. Quando ávido de butins, atravessa o Rubicão fantasiado de patriota.
Caçador de “inimigos internos”, o militar desrespeita a sociedade e subverte o Estado. O patriotismo castrense é mesquinho, nega solidariedade aos mais sofridos. Alimenta guerra sem fim contra quem lhe garante o soldo.
A segunda condição para a defesa do Brasil é o cultivo da amizade com os vizinhos. Sólida coesão da América do Sul e laços estreitos com a África Ocidental constituem barreiras contra as pretensões de agressores poderosos. Os potenciais inimigos do Brasil sabem disso, daí alimentarem falsas rivalidades entre nações condenadas à irmandade.
Para justificar sua existência e obter recursos públicos, o militar vê nossos vizinhos como inimigos perigosos. Assim, sabota uma das condições essenciais à defesa do Brasil.
Exemplo pouco conhecido de sabotagem da integração sul-americana foi o trabalho do general Maurice Gamelin, um francês que o Brasil contratou a peso de ouro, em 1919, para modernizar o Exército. Habilidoso vendedor de armas (adorava nos empurrar sucatas), esse general preparou o militar brasileiro para guerrear contra nossos vizinhos, em particular contra a Argentina, que recebia armamento alemão.
Essa rivalidade fabricada começou a ser desfeita no final do século passado, quando as ditaduras militares foram derrotadas. Iniciando a construção da vizinhança fraterna, o político cuidou da defesa. Hoje, ocupando o governo, o militar destroça num piscar de olhos o trabalho realizado.
A terceira condição para nossa defesa é o estabelecimento de sólidas parcerias estratégicas que nos ofereçam o máximo de soberania. Estas parcerias são aquelas que não se desfazem ao sabor de circunstâncias fortuitas. Parceiros estratégicos firmam colaboração favorecedora de seus respectivos interesses.
Os Estados Unidos sempre obstaram tais parcerias. A lista de casos é infindável, mas caberia lembrar o boicote ao domínio da tecnologia nuclear, da exploração do petróleo e do programa espacial.
Quando a perspectiva de multipolaridade surgiu no horizonte, o militar se empenhou em favorecer um governo vassalo de Washington. Agiu contra a defesa do Brasil.
Outra condição irrecorrível para a nossa defesa é a mobilização e a articulação eficiente das capacidades nacionais.
Instituições dedicadas à pesquisa científica e à inovação tecnológica são indispensáveis à defesa. A comunidade acadêmica é componente de máxima valia. O sequestro de cérebros alemães no pós-guerra mostra bem isso. Sem cientistas, permaneceremos na eterna dependência dos produtores de armas e equipamentos. Hoje, não podemos agir militarmente sem o aval do fornecedor de armas e equipamentos. Quem elege o mundo acadêmico como inimigo trai o Brasil.
Empresas públicas e privadas competentes para desenvolver projetos de alta complexidade e grande porte constituem elementos fundamentais do aparato de defesa nacional. O estrangeiro cobiçoso alegrou-se com o desmonte injustificável de empresas brasileiras indispensáveis à estratégia de defesa.
A destruição de nossa diplomacia é outro crime inominável. O mesmo se pode dizer das instituições responsáveis por políticas públicas de proteção do meio ambiente e da sociedade. A pandemia que destrói vidas brasileiras revela o quanto estas instituições são indispensáveis para nossa comunidade.
Militar que desmonta instituições públicas desserve a pátria. Não cabe apenas deter Bolsonaro. Para a defesa do Brasil, é preciso um basta no ativismo deletério do político castrense.
* Manuel Domingos Neto é doutor em História pela Universidade de Paris. Ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Foi vice-presidente do CNPq.