Lincoln Penna*
Começo com uma autocrítica. Em um dos meus artigos, fiz referência ao desgoverno para qualificar a Presidência de Bolsonaro. Errei. Refleti sobre esse costume de achar que há governos virtuosos em oposição aos que não o são e, portanto, estes merecem o epíteto de desgovernos. O atual governo tem levado o país ao caos, a caminhos erráticos e de consequências imprevisíveis. E é um governo exatamente porque tem exercido a ação governamental e com base numa ideia fixa, qual seja a de instaurar o dissenso, o confronto permanente com quem a ele se opõe. Agride o bom senso porque deseja instaurar uma ordem que sirva para destruir os valores republicanos.
Esse governo tem um objetivo muito claro, que consiste na desconstrução do Estado nacional. Se opõe à Constituição e reage ao pleno exercício do contraditório — haja vista o ataque sistemático à imprensa –, de modo a se voltar constantemente contra alguns pilares das práticas democráticas, como a liberdade de expressão, e às decisões que contrariam seus propósitos. E, ao assim proceder, não o faz em nome da nação, mas em defesa de interesses privados inconfessáveis, haja vista a questão da isenção de impostos para a aquisição de armas. Governa, pois, mas para os seus apaniguados aos quais protege e que pautam suas demandas.
As parcerias desse governo se dão ao largo das instituições clássicas de um Estado democrático de direito. Opera na contramão de valores e bens característicos de uma ordem civilizada, porque sustenta as atividades que proliferam numa zona cinzenta, da a-legalidade, isto é, à margem dos princípios da legalidade. É um governo que tem ou incentiva a desordem de corporações cujos integrantes são cooptados para servirem não à pátria, mas para reforçar as sempre suspeitas vontades de um presidente que sente prazer em constranger as autoridades do país, com o único propósito de demonstrar que exerce o seu poder pessoal.
Considerar o governo que tem se esmerado em desmontar a máquina pública como um simples desgoverno, como se fosse possível atribuir esse nome à presença de incompetentes, é não entender que o objetivo de quem o conduz é precisamente o de promover a desordem para facilitar a corrosão dos aparelhos de Estado. Estes têm sido penetrados para atender a dois tipos de interesses: o de grupos econômicos e financeiros internacionais e o das milícias, beneficiárias das medidas que as ajudam a se apoderarem de espaços nas casas legislativas e de bens públicos, e, ao mesmo tempo, servirem de braço alternativo num eventual enfrentamento futuro, no caso de esse governo não conseguir se manter pelas vias legais e eleitorais. Isto não é teoria da conspiração, gente.
Logo, não se trata de um despreparo removível no instante em que se chegar às próximas eleições para que todos esses desqualificados agentes da destruição sejam removidos. O que temos pela frente é um poder paralelo que por vias legais, embora imprevistas, chegou à Presidência da República, baseado no apoio das Forças Armadas, que, em razão de se sentirem responsáveis pela República desde o seu nascedouro, acabaram embarcando numa aventura só para desbancar o perigo que viam nas cartilhas das casernas quanto à iminência de uma infiltração comunista.
Mal sabem os oficiais dessas Forças Armadas, em sua maioria, que o perigo que ronda a sociedade brasileira não é a dos militantes comunistas, mas a dos milicianos cada vez mais armados e protegidos, tanto dentro como fora das corporações policiais militares convencionais. Estes têm conseguido o apoio do governo às demandas. O exemplo é o decreto da Exclusão de Ilicitude, que em sua prática libera os atos de policiais militares que resultarem em mortes, em razão de proteger as ações desses militares contra a suposta criminalidade. Trata-se, pois, de algo bem concreto na busca de defender o aparelho repressivo de Estado em detrimento do cidadão. Mais do que isso, estimula a agressividade dos agentes da chamada ordem pública, que assim se sentem amparados pelas autoridades a praticarem os desmandos tão comuns a essas guarnições.
Tudo isso não pode ser classificado como simples desgoverno e sim atos de responsabilidades de um mandatário que não consulta o bem estar da população, mais recentemente entregue à própria sorte no caso da crise sanitária derivada da pandemia. O caráter negacionista e debochado de seus representantes, a começar pelo presidente da República, no caso específico da vacinação, é mais um exemplo não somente da irresponsabilidade, mas de um crime a ser perpetrado contra o povo indefeso e atônito, diante de governantes que têm o propósito de investirem contra a ciência e a vida dos brasileiros. Cabem ações para responsabilizar não os despreparados, mas sim os governantes que devem responder por crime de lesa-humanidade.
* Lincoln de Abreu Penna é graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com mestrado em História pela Université de Toulouse Le Mirail, e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Autor de vários livros, ocupa-se de consultoria política e estudos estratégicos para instituições.