Para o advogado Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça no governo Dilma Rousseff, o presidente Lula deve mesmo escolher o novo procurador-geral da República, sem ficar restrito à lista tríplice tradicionalmente apresentada pela associação de procuradores. Essa seria uma das medidas para estourar a bolha de privilégios que, na sua opinião, afastam da realidade concreta do país uma grande parte do Ministério Público e de demais segmentos do Judiciário.
“Eles [os procuradores] têm que saber que são parte de um país e de um sistema”, afirma. “Se eles ajudam a derrubar um governo democrático, têm que sofrer as consequências. E para que isso aconteça, têm que saber que, com um governo bom, haverá um procurador da República decente; já com governo ruim, o que eles têm experimentado nos últimos anos. Isso é muito importante e os chama às suas responsabilidades.”
Como parte da tradição colonial brasileira, Aragão destaca que muitos dos que ocupam cargos públicos se acham no direito de se considerarem, de certa forma, “proprietários de um naco do Estado”. Um voluntarismo que pode ser observado, diz, na frequente disparidade das decisões judiciais, conforme região ou instância. “Vemos isso na estrutura judicial brasileira, que não tem, como nas democracias consolidadas, um sistema de jurisprudência que possa garantir que um juiz de Belém vá decidir igual ao de Porto Alegre; um sistema que se legitima pela sua uniformidade. Aqui, cada juiz acha que tem o direito de pensar de forma completamente autárquica. Cada magistrado e instância decide de uma forma.”
Essa pulverização do poder estatal é parte da cultura patrimonialista brasileira, explica Aragão, e também se reflete em abusos do Ministério Público, como os que foram vistos durante a Operação Lava Jato. “Também faz com que procuradores e advogados da República se achem no direito de usar seus poderes para criar riscos e pressionar o governo da vez, para dele extrair vantagens, como ganhos melhores, reconhecimento de prerrogativas, e, com isso, colocarem-se dentro de uma bolha que não se comunica com o resto deste país violento e com a política.”
Para mudar esse cenário, seria preciso grande investimento cultural e educacional, “um trabalho de formiguinha”, nas palavras de Aragão. Mas, enquanto a revolução cultural não vem, uma das coisas a ser feita, insiste, “é um esforço para estourar essas bolhas de bem estar artificial, e realmente começar a pensar num sistema remuneratório do serviço público que seja lógico, sistemático, em que um procurador da República recém concursado não ganhe mais do que um professor titular na universidade”.
É com esse sentido que ele defende o fim da obrigação da lista tríplice do MPF. “Não faz sentido homenagear a bolha de bem estar social deles, permitindo que nos imponham uma lista tríplice para a Procuradoria Geral da República. O presidente da República tem que fazer uso da sua prerrogativa constitucional, porque, só assim, ele comunica essa bolha com o resto da política.”
Relações internacionais
O jurista também ressalta a importância de se restabelecer a autoridade do Executivo no que se refere às articulações internacionais feitas no âmbito do Ministério Público. Ele lembra, por exemplo, que a Operação Lava Jato, “produto do corporativismo do MP”, teria sido nutrida pela cooperação internacional com os EUA, contra os interesses brasileiros.
A cooperação direta com autoridades estrangeiras é atribuição da União, ressalta Aragão. “O Brasil é um Estado federal, e quem cuida das relações internacionais é a União; e especificamente com Estados estrangeiros, para celebrar tratados internacionais – sujeitos à aprovação do Congresso nacional –, é o Poder Executivo. Está muito claro na Constituição. Não há por que haver embaixadas do MP para tratar desse ou daquele assunto junto a governos estrangeiros. O MP tem que submeter isso ao Ministério da Justiça, e o ministério não pode ser um mero repassador de informação, apenas um pombo correio. Quem avalia o interesse nacional nesses casos é o Executivo.”
O jurista acredita que a “internacionalização” do MP começou nos idos de 2005, durante a investigação do caso Banestado. E se expandiu, por várias razões, entre as quais a vaidade de funcionários brasileiros, seduzidos pelo acesso a autoridades norte-americanas, viagens e jantares no exterior. “Mas o fato é que ali também havia um projeto político de dar ao MP uma autarquia muito maior do que reconhecido na Constituição. O MP não quer se submeter a nada.”
Os pedidos de cooperação deveriam, pelo menos, argumenta Aragão, passarem pela análise de um juiz brasileiro. “O juiz é que vai analisar, com base no Direito brasileiro, se é o caso ou não de quebrar o sigilo de um cidadão que tem conta nos EUA”, destaca. “Independente do que diz a lei norte-americana, temos as nossas garantias constitucionais, e o guardião das garantias ainda é o Judiciário.”
A falta de coerência interna e externa no sistema permite aos EUA fazer o chamado “voice shopping”, ou seja, explica Aragão, escolher com que entes públicos vai se relacionar, de acordo com seu interesse. “Se você tem só o Itamaraty, ou quem estiver autorizado pelo presidente, vai perceber que há uma coerência política brasileira e vai precisar se submeter.”
Militares e 8 de janeiro
O ex-ministro da Justiça saudou a recente decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de investigar e julgar na Justiça civil os militares envolvidos nos ataques de 8 de janeiro. “A Constituição é muito clara: a competência da Justiça militar é para os crimes militares, que estão no Código Penal Militar. Não é o fato de uma pessoa ser militar que dá a ela direito ao foro da justiça militar. Quando pratica um crime fora desse contexto, por exemplo, no campo da Lei Maria da Penha, se um militar for violento com a mulher, vai responder na Justiça civil como qualquer outro. Isso vale também para os crimes contra o Estado democrático de Direito.” O que não exclui, afirma, que, mesmo processados na Justiça civil, militares respondam também pelos atos previstos no código militar, como sublevação ou indisciplina.
No entendimento do jurista, o arcabouço institucional e legal brasileiro tem todos os recursos para punir golpistas, mas isso não basta para estancar os movimentos da extrema-direita. É mais do que punir. “A questão não é de legislação. Temos legislação e vontade política, pelo menos da cúpula do Judiciário, de enquadrar [os golpistas]. Acho que o trabalho do ministro Alexandre de Moraes, do STF, é excepcional e heroico, ao se colocar na frente dessa turba fascista que quis desacreditar nossa democracia. Existem instrumentos legais; o problema é mais societal, como a sociedade convive com isso. Não é propriamente jurídico, porque, se as leis pudessem mudar os fenômenos, elas não seriam parte do Direito e sim da ciência. As nossas leis são apenas expressão de uma vontade política, mas não necessariamente o que está na lei é seguido.”
Aragão reconhece que grande parte da sociedade ainda está “tomada pela instilação desse veneno fascista”, problema que, na sua opinião, não se resolve “simplesmente através da criminalização”. “Temos que fazer um trabalho educativo, para que as pessoas voltem a acreditar no Estado, que foi desacreditado por quatro anos. Precisamos de políticas públicas consistentes, para as pessoas readquirirem seu poder aquisitivo e voltarem a ter orgulho do país. E acredito que, nesse trabalho, o presidente Lula está em melhor posição do que qualquer outro ator político.”
> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)
> Confira o Soberania em Debate com o advogado Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, entrevistado no dia 2 de março, pelo advogado e cientista político Jorge Folena, da coordenação do SOS Brasil Soberano