O “pinochetismo com voto” é o projeto de Bolsonaro e Paulo Guedes, na definição dada pelo pesquisador João Cezar de Castro Rocha, historiador e professor de Literatura Comparada da UERJ, e um dos principais intelectuais contemporâneos a estudarem a guerra cultural movida pela extrema direita no país. Contra essa perspectiva que articula destruição do Estado, pauperização das classes média e populares, e violência política, ele defende investimentos que promovam uma “festa permanente de educação e cultura”, e a ação rápida para responsabilizar autores de crimes cometidos contra a democracia ou que tentem desmoralizar as instituições.
Autor do livro “Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político” (Ed. Caminhos, 2021), João Cezar tem analisado o funcionamento dessa estratégia que manipula conteúdos, com a dinâmica super acelerada das redes sociais, para inviabilizar o debate democrático. Para isso, a direita aposta na caricatura. Ou seja, na ridicularização, na despolitização da pólis e na promoção de inimigos em série para manter seus adeptos mobilizados em linchamentos digitais, e as pessoas e as instituições sob assédio permanente.
Segundo o pesquisador, tanto o presidente quanto seu ministro da Economia são discípulos do programa adotado na ditadura do general Augusto Pinochet, de 1973 a 1990, na primeira experiência no mundo de imposição por meio da força de um neoliberalismo radical, com extinção completa de direitos trabalhistas e sociais. Aplicado ao presente, o bolsonarismo significa a supressão dos direitos do trabalho, dos acordos coletivos, a abolição dos sindicatos, a venda sucateada dos ativos da Nação, a destruição da seguridade social – por meio da capitalização da previdência social –, o agravamento da concentração de renda e dos privilégios das elites financeiras, e a retirada do Estado de todas as funções sociais: saúde segurança, educação. “É isso o pinochetismo”, alerta João Cezar.
No Chile, onde o próprio Paulo Guedes aceitou uma cadeira de docência em tempo integral da Universidade do Chile, então sob intervenção militar, a capitalização da aposentadoria produziu, após 30 anos, uma onda de suicídios de aposentados. Um quadro dramático que motivou a reforma promovida pela presidente Michelle Bachelet, em 2017.
O pinochetismo no Brasil, diz João Cezar, iria corroer o Salário Mínimo e pauperizar os aposentados, que não conseguirão pagar seus planos de saúde. Também atingiria a classe média, já que uma das propostas de Guedes é retirar do cálculo do Imposto de Renda as deduções das despesas com saúde e educação. “Como gastaram mais de R$ 40 bilhões para conseguir votos para a reeleição, terão que tirar dinheiro de algum lugar. Vai sair de onde? Vão taxar ricos, lucros e dividendos? Não, já sabemos que Bolsonaro não mexe com os ricos. Vão tirar da classe média, da aposentadoria. E nem falei dos precatórios que precisarão ser pagos em 2023.”
Uma granada é a metáfora perfeita para o legado deste governo, avalia o pesquisador. Destrutiva como aquela atirada sobre policiais federais pelo ex-deputado Roberto Jefferson (PTB), aliado e amigo de primeira hora do presidente, ou como a que Guedes, em 2020, durante reunião ministerial, declarou ter colocado no bolso dos “inimigos”, referindo-se aos funcionários públicos.
“Paulo Guedes, na reunião de abril de 2020 , afirmou: ‘eles (os funcionários públicos) nos abraçam e pensam que está tudo bem. Aproveitei a pandemia e coloquei uma granada no bolso do inimigo’”, lembra o pesquisador. “E qual era a granada? Congelamento salarial. Nos quatro anos de governo, só houve reposição. O projeto real é desindexar o salário da inflação e indexá-lo com a meta, que é sempre inferior à inflação real. O objetivo é corroer o salário.”
Assédio e descrédito
A identificação do pinochetismo como fundamento do modelo econômico é mais um desdobramento dos estudos do historiador para caracterizar o fenômeno que levou Bolsonaro ao poder. Nesse sentido, Roberto Jefferson pode ser considerado, na avaliação de João Cezar, “uma metonímia, um retrato involuntário, mas muito poderoso, da essência do bolsonarismo”.
Entre outros aspectos, “o bolsonarismo é um assédio permanente contra todas as instituições democráticas, cuja finalidade é produzir uma visão crítica da realidade”. Razão por que promove tantos ataques e cortes de verbas nas universidades federais e na educação básica. No orçamento para 2023, o professor da UERJ observa que os recursos destinados a creches permitiriam construir o inacreditável número de apenas cinco unidades.
“O bolsonarismo é esse assédio permanente, cuja finalidade é manietar as instituições, desacreditar todos os centros de produção crítica da realidade, para que não haja nenhuma barreira aos seus desejos totalitários, para que seus crimes fiquem impunes”, diz João Cezar. “Nesse quadro, até o padre Kelmon se torna significativo. Um falso padre, que lança mão de uma falsa autoridade, e torna qualquer debate político impossível, porque se torna uma caricatura. O desejo do bolsonarismo é despolitizar a pólis, e a caricatura é o caráter perverso do movimento, com a função de desmobilizar. Se não há mais verdade, só versões, vai vencer a versão do mais forte. E quem comprou armas neste país foram eles.”
Reconstrução e resistência
Essa guerra cultural pressupõe a produção contínua de narrativas polarizadoras, construídas com base em fake news e teorias de conspiração, na invenção de inimigos em série, para manter a militância mobilizada. “o que se traduz em linchamentos digitais e cancelamentos”, afirma o pesquisador. Para ele, será necessário uma década para superar os efeitos cognitivos do bolsonarismo, agora enraizado na sociedade.
Para vencê-lo, o pesquisador defende a responsabilização dos autores dos muitos crimes cometidos ao longo desta campanha, além de investimentos amplos e descentralizados em educação, cultura e conteúdo. “A Frente Ampla vai ganhar e vamos reconstruir o país”, acredita. “Espero que as instituições tenham aprendido a lição. A extrema direita chegou ao poder pela despolitização da política e pela desmoralização das instituições.”
Lances como o do pastor que apresentou uma intimação falsa do TSE, as declarações chocantes da ex-ministra Damares Alves sobre pedofilia, a atuação desastrosa em Manaus (AM) do ex-ministro da saúde general Eduardo Pazzuello, as acusações do ministro das Comunicações Fábio Faria contra as rádios…foram muitos os episódios que merecem investigação e não podem ficar impunes, se configurarem crime ou tentativa de fraude eleitoral. “Será preciso, após a vitória da Frente Ampla, que as instituições responsabilizem os criminosos”, ressalta.
Em outra frente, João Cezar destaca a disputa dos conteúdos.
“Precisamos ocupar as redes sociais, oferecer cursos, criar conteúdo gratuito de qualidade, não deixar que a direita ocupe as redes sozinha e crie conteúdo sem resposta, estabelecer uma cláusula pétrea na Constituição com uma percentagem do PIB que permita criar creches de norte a sul e de leste a oeste, que as crianças estejam em escola em tempo integral, com esporte; que terminem o Ensino Médio e recebam um prêmio de R$ 5 mil para começar um negócio, ótima ideia da senadora Simone Tebet, e que as universidades recebam mais alunos. E a cultura é o sal da terra, o que torna o cotidiano suportável. Precisamos ter teatros e cinemas em todo o país, criar movimentos. É um projeto de governo. A cultura tem que estar com o povo. Criar concursos, festivais, fazer uma festa permanente de cultura e educação. É a única forma de travar o bom combate com o bolsonarismo que se enraizou, pela nação que nunca tivemos, mas podemos criar. O Brasil que queremos é esse, da conversa, do diálogo, da construção comum. No domingo, não significa que vamos deixar de lado as críticas que temos ao PT, nem uma adesão incondicial a um ídolo; significa dizer ‘nada importa mais que a democracia’. É imperfeita, mas somente nela é possível que a felicidade surja, um projeto de nação que possa definir nosso futuro. Vamos votar pela democracia e pela utopia.”
> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)
> Confira o Soberania em Debate com o historiador e professor de Literatura Comparada da UERJ, João Cezar de Castro Rocha, entrevistado pela jornalista Beth Costa e pelo advogado e cientista político Jorge Folena, ambos da coordenação do SOS Brasil Soberano