Diogo Calazans*
O Brasil vive uma situação caótica. Esse é um dos poucos consensos a que chega hoje a nossa sociedade. Os “tentáculos” da corrupção, cada vez mais aparente, permeiam diversas esferas da sociedade, desde as castas (sistema tradicional, hereditário ou social de estratificação) políticas, passando pelo Poder Judiciário e pelo setor privado, chegando até ao próprio presidente da República (por sinal, o primeiro da história brasileira a responder por crime durante o seu mandato). A economia atravessa a maior recessão desde 1930, com uma queda de investimentos externos de mais de R$ 15 bilhões entre 2015 e 2016, e desemprego que ultrapassa a taxa de 14% da população.
Em tais condições, é difícil esboçar uma expectativa positiva face ao futuro próximo. Acostumado à última década e meia de pleno emprego, mercado interno aquecido, desenvolvimento social e políticas públicas inclusivas, o brasileiro não estava preparado para o que viria após 2014. Por isso mesmo, e não sem razão, as discussões e debates voltaram-se, entre outras temáticas, para o momento em que se deu o ponto de inflexão: quando e por que a “maré virou”?
Para isso podemos nos valer de Tucídides, um militar ateniense, que viveu em 400 a.C, e escreveu uma das maiores obras sobre o pensamento político grego: a História da Guerra do Peloponeso. A obra, composta por discursos e narrativas, descreve o conflito entre as duas maiores cidades gregas do século V a.C., Atenas e Esparta. O conflito se estendeu longamente, durando 27 anos, de 431 a 404 a.C., e foi destrutivo para ambos os envolvidos. O seu caráter de “história militar fundante”, ao categorizá-la unicamente como “histórica”, pode restringir, até mesmo ocultar, o verdadeiro objetivo do autor ao elaborar seus escritos. O próprio título do livro, História da Guerra do Peloponeso, não foi idealizado por Tucídides, ao contrário do que a maioria acredita. O general ateniense manifesta na própria obra seu desejo de que a mesma permanecesse “para todos os tempos”, “para a eternidade”. Em outras palavras, almejava que a obra transcendesse o limite histórico daquele período, que não se tornasse anacrônica.
A história não se repete, isso porque as suas características intrínsecas guardam uma enorme complexidade inerente às cadeias de eventos, que tornam singulares cada um dos momentos que a humanidade experimenta no decorrer do tempo. Contudo, não raramente, são observados padrões que refletem certa semelhança entre fenômenos sociais de tempos e realidades distintas. Um dos fios condutores que, de acordo com Tucídides, atravessa as diferenças e peculiaridades de cada sociedade, em cada momento histórico, é a natureza humana.
Colin Gray, um dos mais brilhantes estrategistas da atualidade, estudioso dos “estudos estratégicos” (expressão disciplinar do estudo científico do emprego da força, ou seja, do uso da violência física no intuito de atingir determinados objetivos políticos), sempre exaltou a importância e contemporaneidade de Tucídides. Entre as contribuições mais valiosas do ateniense, Gray dá particular atenção à identificação da tríade impulsional das guerras, ou seja, os três elementos singulares que motivam o fenômeno bélico: 1) medo; 2) honra; e 3) interesses. Todos os três dizem respeito à natureza humana, mencionada anteriormente.
Goste-se ou não, ao longo dos oito anos de governo Lula, o Brasil avançou muito em relação ao que era, tanto internamente quanto externamente. Diferentemente de seu antecessor, que adotara uma política com ênfase no capital estrangeiro e no mercado externo, Lula priorizou o capital nacional e o mercado interno. As estratégias domésticas se refletiram na política externa, que abandonou a postura passiva, de alinhamento com as grandes potências, e optou por agir ativamente, como um verdadeiro “global player” no Sistema Internacional. Não por coincidência, o Brasil se tornou a sexta maior economia do mundo. No Concerto das Nações, anárquico por natureza (uma vez que não existem entidades supranacionais que o controlem, isto é, que tenham poder superior ou sobre os Estados nacionais), o crescimento de um país pode alterar a balança de poder e influir nos interesses/comportamentos de outros Estados, causando grave alteração na chamada ordem mundial.
Retomando Tucídides, em História da Guerra do Peloponeso, o autor explica o contexto grego a partir da relação entre Atenas e Esparta e como as alterações de poder nesse sistema resultaram na referida guerra. A “Armadilha de Tucídides”, termo que se tornou popular e foi cunhado para exprimir a reincidência nas relações internacionais de um resultado proveniente desta particularidade de relação entre Estados numa ordem mundial. De acordo com Tucídides, com a expansão de Atenas, Esparta foi acometida por um grande receio, o medo de perder seu protagonismo no conjunto do sistema de poder das cidades gregas, o que levou inevitavelmente ao conflito entre as cidades-Estados. Assim sendo, o conceito de “Armadilha de Tucídides” postula que numa determinada “ordem mundial” a ascensão de uma potência emergente pode gerar uma situação de “medo”, real ou imaginário, que ameaçaria a posição da primeira. A competição gerada entre elas levaria a um ciclo de ameaças e contra-ameaças que confluem, então, para a guerra.
Esta concepção é, reconheçamos, polêmica entre os cientistas políticos, historiadores e internacionalistas. Deixando-se a polêmica, o fato é que, nas relações internacionais, as motivações dos Estados no xadrez geopolítico global se enquadram perfeitamente na “trindade tucididiana”. As sociedades são formadas por pessoas, logo, movem-se de acordo com um coletivo ou conjunto de sentimentos e interesses resultante da soma dos vetores da natureza humana correspondente a cada indivíduo que nela se insere, dentro das respectivas especificidades biológicas, geográficas e históricas. Em suma, as ações dos Estados são movidas pelas noções de medo, ou por honra, ou por interesses, ou ainda, por uma combinação destes, reais ou imaginários, o que é mais comum.
A ascensão brasileira “reconfigurou” as estruturas de poder, ao menos no espaço regional sul-americano e possivelmente nas relações Sul-Sul e no âmbito dos chamados Brics, o que com certeza gerou apreensão junto a outras grandes potências e foi de encontro aos interesses de uma ordem mundial já questionada e em crise. O Brasil despontava como líder regional da América do Sul, ganhando relevância através da participação influente em fóruns internacionais e encabeçava novas iniciativas como a dos Brics, Mercosul, Conselho de Defesa Sul-Americano – de onde os Estados Unidos foram excluídos – e a Unasul, além de um forte protagonismo na África e ao mesmo tempo no Oriente Médio. Portanto, era natural que surgissem movimentos que objetivassem frear tal “protagonismo” brasileiro.
A arquitetura multilateral do sistema internacional, uma tese cara aos interesses brasileiros, favorece a interdependência dos países, em vários aspectos. Isso diminui as hostilidades e conflitos bélicos, mas não impede que outras formas de enfrentamento tenham lugar nas disputas. Isso ficou explícito na história recente da Síria. Empregando táticas e estratégias do que ficou conhecido posteriormente como “Guerra Híbrida”, um tipo de guerra que tem maior enfoque em meios “não militares” (influência sobre a opinião pública, manipulação de informação, operações cibernéticas, entre outros métodos), o país vem sendo minado de forma gradativa por meio de estímulos aos movimentos de oposição ao governo, desestabilizando num primeiro momento o panorama interno sírio, principalmente a partir de 2011. Posteriormente, com a expansão da crise para o cenário internacional, através do crescimento do Daesh (organização terrorista popularmente conhecida como “Estado Islâmico”), o reforço do discurso pós “11 de Setembro”, situando os muçulmanos e os países de origem islâmica como o “mal global a ser combatido”, legitimaram pressupostos que justificassem o uso de meios cada vez mais violentos por parte de agentes externos, na medida que o conflito escalava.
O caos fora instaurado. Curiosamente, Tucídides atribuiu a derrota de Atenas mais à divisão da sociedade civil do que às ações militares empreendidas por Esparta. A polarização interna afetou drasticamente a política externa ateniense, levando ao colapso da Cidade-Estado. Deja Vu. O start da crise brasileira não foi econômico, mas político. Isso não significa que a economia ia bem, mas estava longe ruir, havendo tempo suficiente de adotar políticas que pudessem contornar a crise e mesmo a decadência do modelo econômico em voga. Através de influência direta e indireta, por meio do financiamento de movimentos políticos de oposição ao governo, com auxilio da grande mídia, atores externos conseguiram afundar todo um país, pondo em xeque a soberania nacional brasileira. A vulnerabilidade de um é a oportunidade do outro, e no jogo internacional não há espaço para a fraqueza, muito menos para a ingenuidade.
* Diogo Calazans é analista de Defesa, formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atualmente trabalhando no Comitê Interamericano Contra o Terrorismo (CICTE) da Organização dos Estados Americanos (OEA)
(As opiniões, conclusões e recomendações aqui expressas são de inteira responsabilidade do autor e não refletem oentendimento de nenhuma agência, organização ou governo.)