Uma política setorial para a nova matriz deve alinhar os investimentos que serão feitos nas fontes renováveis, até aqui majoritariamente privados, aos objetivos de desenvolvimento do país.
O Brasil precisa de uma política de transição energética que permita alinhar os investimentos e a atuação das empresas aos objetivos de desenvolvimento do país, defende a economista Renata Vieira. Ela alerta que, até o momento, o capital privado tem dominado o avanço das fontes renováveis, sem uma estratégia estatal de coordenação, num cenário que se agravou com a privatização da Eletrobras. “[A transição] é nossa chance de o Estado pensar a regulação e legislação de programas, para que a entrada dessas empresas seja feita de uma forma convergente ao plano de desenvolvimento nacional que está em curso, e não de forma alheia a ele”, afirma.
“Além da privatização da Eletrobras, a transição energética, que passa pela maior participação da energia eólica e solar, está sendo feita de forma bastante privatista”, adverte a consultora em licenciamento ambiental. “A expansão desses empreendimentos não se deu dentro do sistema público, mas por meio de empresas privadas. Mesmo que não houvesse a privatização da Eletrobras, com a transição energética e o aumento da participação dessas novas fontes no sistema elétrico brasileiro, o papel da Eletrobras enquanto geradora estaria se reduzindo e o do sistema privado, aumentando. A privatização da Eletrobras é um ‘plus’ para esse modelo. Quais as consequências disso para a capacidade e a gestão operacional dessa energia?”
Uma das consequências, segundo Renata, é o aumento de custos e, consequentemente, de tarifas, e a maior dificuldade de administração, especialmente em situações de crise. “Se o sistema de geração estivesse concentrado numa empresa pública, faríamos a gestão da oferta energética dentro de um mesmo fornecedor”, explica Renata. “Mas, com a pulverização, a gestão da oferta torna-se mais difícil. Em vez de fazer uma gestão da energia que foi gerada em diversas fontes – por exemplo, em uma crise hídrica, quando se tem que lançar mão de outras fontes que não a hidrelétrica –, seria necessária uma gestão com múltiplos atores, com diversos contratos, inclusive de controle tarifário. Isso traz uma série de consequências para o modelo de gestão que devemos considerar.”
A gestão do sistema é complexa e foi alterada de forma abrupta, destaca o economista Weslley Cantelmo, cofundador e atual presidente do Instituto de Economias e Planejamento (IEP) e cofundador da consultoria Apó-territorial. Para ele, “um dos maiores absurdos técnicos e jurídicos da história do capitalismo” foi a privatização da Eletrobras.
“Até então, vigorava um sistema centralizado, estatal, da regulação e da operaçã – majoritariamente via Eletrobras –, inclusive verticalizado, cuidando de vários aspectos: da geração, passando por outros mecanismos de transporte, entrando com algumas participações na distribuição, etc. E esse sistema foi abruptamente alterado, com a privatização da Eletrobras, que deixou um controle estatal e estratégico, baseado na premissa fundamental da garantia do direito de acesso à energia elétrica, para ser controlada por grupos econômicos privados, com uma nova lógica gestão, que tende a elevar os custos de operação e os preços que vão chegar ao consumidor final”, critica Cantelmo. “Para resumir, estamos justamente vivendo a transição da matriz de geração misturada a um momento de alteração do modelo de gestão do sistema elétrico brasileiro, e cheio de dúvidas pela frente.”
A questão tecnológica
Na avaliação de Renata, é importante o governo levar em conta a forma de atuação das empresas que estão entrando no Brasil com grande aporte de capital para energia solar e eólica, dentro do contexto do desenvolvimento socioeconômico nacional, e não restrito ao setor elétrico. Especialmente do ponto de vista do legado tecnológico, criando condicionantes.
“O papel do setor privado na transição vai depender muito das condições estabelecidas pelo governo para o investimento desse capital”, diz ela. “Numa primeira dimensão, temos que observar o que essas empresas vão deixar de legado para o nosso plano de desenvolvimento nacional. O Estado precisa garantir que as empresas não cheguem no território para reforçar a tradição de desenvolver setores dependentes tecnologicamente.”
A economista lembra que, historicamente, essas companhias não têm interesse em correr os riscos da pesquisa, mas, por outro lado, é importante colocar o Brasil na frente do desenvolvimento tecnológico de energia solar e eólica, dado o grande potencial do país para ambas as fontes renováveis. “Só que, para isso acontecer, o Estado tem que colocar regras e condições muito claras sobre que tipo de tecnologia nós vamos aceitar que invistam no nosso território, para termos certeza de que não vamos bancar um sucateamento, como muitas vezes aconteceu em outros setores.”
Isso significa o Estado direcionar os investimentos, enfatizando a questão tecnológica, e a contribuição que as empresas poderão dar, junto com as universidades e as empresas públicas de pesquisa em energia. De modo que o país não aceite mais tecnologias defasadas que, no futuro, vão representar custos mais altos e menor competitividade. Renata defende um “plano de longo prazo para que o Brasil não seja só o maior produtor ou um dos maiores produtores, ou tenha a matriz energética mais limpa do mundo, mas que seja um grande exportador de tecnologia nessa área”. Segundo ela, essa questão é chave, “porque está na raiz dos nossos problemas de subdesenvolvimento, que ainda existem”.
Tarifa e soberania
Para Renata, a questão tarifária configura um aspecto da soberania nacional. Além de proporcionar condições para a indústria produzir e preços mais baixos aos bens fabricados, a energia deve estar acessível de forma democrática para a população. “A gente precisa ter a ousadia de pensar que, se o Luz para Todos levou esse serviço para a grande maioria dos domicílios no Brasil, o que ainda não conseguimos fazer com o saneamento e com a água, é necessário que as pessoas tenham condição de usar o serviço que está à disposição”, pondera a consultora. “Se um pequeno agricultor tem um poço artesiano, que já é um custo alto, e não pode ligar a bomba para puxar a água porque não aguenta um incremento na conta de luz, não pode irrigar a terra e produzir. Se queremos soberania e sustentabilidade, precisamos criar um sistema tarifário que seja distributivo, porque a conta de luz incide diretamente sobre a renda. Se a pessoa gasta mais com a conta de luz, principalmente no contexto de insegurança alimentar que ainda estamos vivendo, sobra menos para comprar comida.”
Cantelmo ressalta que a participação do Estado na regulação do setor elétrico sempre foi fundamental, e que o capital privado tende a provocar maior instabilidade no sistema. O economista realizou um estudo recente sobre o modelo chinês, que ampliou a participação privada, mas com um desenho específico que previu forte regulação, separada regionalmente. “O Estado entra, inclusive, na formação de preços”, conta o economista.
Na regulação chinesa, explica Cantelmo, a produção de energia está associada à garantia de direitos e metas programadas pelo governo, ao incremento do setor produtivo, entre outros objetivos gerais da economia. “Nosso desafio, diante do cenário que temos, é, primeiro, desenhar nosso setor elétrico em função do nosso plano estratégico de desenvolvimento. A gente precisa discutir. Esse plano é reindustrialização? Ótimo, é isso mesmo. Mas com qual horizonte, qual será a nossa demanda energética?”
Ele defende uma reforma das instituições para que deem conta de assegurar o atendimento desses compromissos. “É uma tarefa hercúlea, super difícil e detalhada. Com o modelo regulatório atual, é muito difícil. E, pelo que se avizinha, pela experiência histórica, não vão tardar crises sucessivas de abastecimento energético, porque é da natureza do modelo. A gente teria que se antecipar para que não acontecesse, mas, se não tiver força política para isso, certamente a sociedade vai demandar, porque energia é um bem essencial.”
A tentativa, a partir da privatização da Eletrobras, de desregular os preços vai na contramão do que ocorre na maioria dos sistemas do mundo, diz o especialista. “Há um projeto de lei no Congresso para liberar o mercado e para passar os preços para o consumidor final por mecanismos de mercado, não por mecanismos regulados. O resultado acaba culminando em sobrecarga, em falta de oferta e numa série de conflitos, inclusive na utilização excessiva de poder econômico por parte dos agentes privados. É muito preocupante.”
Para reverter esse movimento, Cantelmo acredita que o governo já deu um primeiro passo relevante, que é rediscutir a questão da participação do Estado nas instâncias decisórias da Eletrobras. “É fundamental que o governo consiga reverter essa situação, porque a Eletrobras detém mais de 80% dos equipamentos de geração no Brasil. A União está tentando no campo jurídico retomar o controle, mas precisa mais do que isso. Precisa entrar com novos formatos, maior inovação na gestão, que há anos se discute no Congresso. Isso é fundamental, porque a instabilidade é enorme. E a História já está comprovando, com muitos países revertendo situações de privatização do sistema elétrico.”
Tributação e licenciamento
Renata também propõe um modelo de tributação compatível com os lucros esperados para o setor, e que traduza o ingresso desses capitais em aumento de receita pública. Na sua avaliação, o sistema deve promover a aplicação dos recursos arrecadados nos territórios onde estão sendo feitos os investimentos. “Para que não tenhamos novamente os problemas que temos com a instalação desses grandes empreendimentos, não de energia, mas em geral, que são os impactos socioeconômicos e ambientais”, argumenta.
A economista também recomenda a revisão do processo de licenciamento, para garantir, além dos cuidados na implantação dos projetos, medidas reparadoras para as comunidades, povos tradicionais e demais moradores diretamente afetados. “Especialmente, se pensarmos que esses empreendimentos se instalam em locais onde ainda existe uma vulnerabilidade social muito grande. Qual a possibilidade ou a capacidade de essas empresas deixarem algo bom para o Brasil? Depende completamente de quais condições vamos colocar para que esse capital venha tirar os seus lucros dessa atividade. Como o governo vai pensar essa transição? Se ela vai ser centrada no setor privado, que a gente pense um arcabouço inovador, ousado, para que a gente faça a História de uma forma diferente desta vez.”
O modelo de licenciamento deveria prever, diz ela, órgãos de fiscalização fortalecidos, coordenação governamental das ações mitigadoras realizadas por diferentes empresas num mesmo território, aperfeiçoar o acompanhamento e o monitoramento dos programas, por meio da criação de um fundo para financiar iniciativas de educação ambiental pelos governos estaduais.
> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)
> Confira o Soberania em Debate com os economistas Renata Vieira e Weslley Cantelmo, entrevistados pelo advogado e cientista político Jorge Folena e pela jornalista Beth Costa, da coordenação do SOS Brasil Soberano: