A jurista Carol Proner, professora de Direito Internacional na UFRJ, uma das fundadoras da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), explica neste artigo o sentido civilizatório da garantia da presunção de inocência. E também o que significa para o Supremo Tribunal Federal (STF) pôr em risco este pilar da cidadania, com o julgamento que se inicia nesta quinta-feira (17) da execução antecipada de pena, ou seja, da prisão de réus mesmo antes de esgotados todos os recursos da sua defesa.
Carol é doutora em Direito Internacional pela Universidade Pablo de Olavide de Sevilha (2005), com pós-doutorado em 2008 na Escola de Estudos Avançados de Ciências Sociais (EHESS) em Paris. Desde 2009, atua como codiretora do programa oficial Master en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo na Universidade de Pablo de Olavide/Universidade Internacional da Andaluzia, em Sevilha, na Espanha. Também é diretora-executiva do Instituto Joaquín Herrera Flores-AL. O currículo de extensa militância em defesa dos Direitos Humanos inclui, ainda, sua participação como conselheira da Comissão Nacional de Anistia no Brasil entre 2012 e 2016). É membro do Tribunal Internacional de Justiça Restaurativa de El Salvador, desde 2011, e, desde 2017, da Secretaria Internacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). É autora de artigos e livros sobre Direitos Humanos, direitos fundamentais e democracia, direito internacional público e direito internacional dos Direitos
Humanos.
Carol Proner*
A garantia da presunção de inocência é coisa séria e vem de longe. De Justiniano aos nossos dias, prevista no direito islâmico, na tradição romano-germânica, atravessou o medievo e ganhou os códigos da ilustração, as declarações e pactos sobre direitos civis e políticos do século XX, atingindo o ápice na forma de consenso universal, expresso no artigo 11 da Declaração de 1948: “1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.
A tradução do sentido civilizatório da norma para o direito pátrio, consta no inciso LVII, do rol de Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição de 1988: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, dispositivo simétrico ao que garante o artigo 283 do Código de Processo Penal: “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.
Fruto dos tempos de arbítrio, eis que o artigo 283 do CPP, mesmo de evidente constitucionalidade, passa a ser avaliado pela Suprema Corte em três Ações Diretas de Constitucionalidade movidas por entidades e partidos, julgamento que há dois anos aguarda definição de mérito. A decisão de julgar, protelada muitas vezes, ganha a pauta da Corte e torna-se prioridade na agenda político-jurídica do país, isto porque encerra o grande embate entre Estado Democrático de Direito e Estado de Exceção.
Mas, afinal, o que está em julgamento a partir de hoje?
Uma forma de responder a esta pergunta é dizer que o que se julga é a constitucionalidade da prisão antecipada da pena, assegurada por decisão precária do STF desde 2016. O Supremo pode, com indisfarçável agressão à Constituição, manter o entendimento pela execução provisória da pena após segunda instância ou rever posição, entendendo que a prisão antecipada contraria a presunção de inocência, fere a Constituição e as normas civilizatórias, abrindo a possibilidade para a soltura de réus até o transito em julgado de sentença penal condenatória. Optando pela Constituição, abrem-se outras possibilidades que agora não vêm ao caso explorar.
Mas há uma outra forma de entender esse julgamento. O que verdadeiramente está em debate é o próprio Supremo Tribunal Federal, a integridade da Corte para exercer o controle de constitucionalidade e de legalidade do sistema de justiça criminal. O que se julga, aos olhos da opinião pública e da sociedade brasileira, é a autoridade do STF para exercer limites às excentricidades interpretativas que insistem em flexibilizar ou suprimir as garantias constitucionais do devido processo e da ampla defesa. O Supremo deverá, numa espécie de autojulgamento, decidir se resiste ao arbítrio ou se dá as mãos ao Estado de Exceção que prospera no país, com exímio protagonismo do poder judicial. E estará sendo observado e julgado por uma sociedade que já compreendeu perfeitamente o papel da Corte, passivo ou ativo, nos episódios de inconstitucionalidade que se seguiram ao golpe de 2016.
O anúncio do julgamento das ADCs alvoroçou generais e representantes da extrema direita que, escorados na gazopa do combate à corrupção, alertam para os riscos de convulsão social caso o STF não resista à tentação de cumprir a Constituição. Sabe-se que, de hoje até o dia 23 de outubro – dia estimado para o julgamento – o tom dos tweets deverá subir. Mas o bom-mocismo de setores minoritários da caserna experimenta uma fase de descrédito com o apoio dos militares a um governo corrupto, golpista e traidor dos interesses nacionais, sem falar na decadente figura do Ministro da Justiça e nos esquemas lavajatistas desmascarados pelas revelações do The Intercept.
O momento, portanto, não é bom para a desculpa da tutela militar e está claro que os Ministros do STF, individualmente considerados, não serão esquecidos caso queiram atribuir a falta de coragem aos esgarçados coturnos de soldados que servem aos interesses de outras legiões. As Forças Armadas, tanto quanto a Suprema Corte, têm o dever de cumprir a Constituição. E o povo brasileiro, tanto quanto as Forças Armadas, também tem o dever de defende-la e o direito de julgar aqueles que não o fazem. Hoje, o STF começa a ser julgado.
* Carol Proner é doutora em Direito, professora da UFRJ, membro fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)