O fim da violência, do racismo e do preconceito de classe dentro da Polícia Militar vai exigir um trabalho de longo prazo na área da educação dentro da corporação, e o enfrentamento da desigualdade em toda a sociedade, avalia o secretário Municipal da Defesa Social de Aracaju, Luís Fernando de Almeida, coronel aposentado da PM. “Segurança pública não é uma questão de polícia; é uma questão de gente”, diz.
“Não tenham ilusão, essa mudança de consciência não vai se dar da noite para o dia”, diz. “Só tem um caminho, uma coisa que revoluciona: educação. Tem que começar lá debaixo, na criancinha, colocando o que é certo, o que é errado, não incentivando a violência, mostrando que não há diferença de direitos entre gêneros, das formas mais variadas, que não é vergonha um menino lavar uma louça, um banheiro, ajudar em tarefas domésticas, que homem chora., que homem não deve usar da sua força física nem sobre um homem nem uma mulher; nem da sua inteligência fazer tortura psicológica. É um processo longo, difícil, que precisa ter um ponto de partida, que não vai ser agora, nesta conjuntura que estamos vivendo. Pelo contrário, estão remando em outro sentido.”
A crítica do secretário se refere principalmente à política de afrouxamento dos controles do acesso a armas, defendida pelo governo federal, que Luís Fernando considera “absurda”. “A gente sabe qual é o fundo disso e não tem nada a ver com proteção e direito do cidadão de se defender”, adverte. “A questão do armamento é do princípio da oportunidade. Se eu estiver armado e um bandido colocar uma arma na minha cabeça, eu vou perder a minha arma e a minha vida, não tenha dúvida. E eu sendo policial, bom atirador, sendo preparado para isso. Imagina o cidadão comum? Quantas mortes iriam acontecer?”
O que é uma segurança pública
Segurança pública, explica o coronel aposentado da PM, envolve muito mais do que as ações de repressão. “Não se pode falar de segurança pública sem falar em emprego, segurança alimentar, respeito aos direitos do cidadão, uma gama de direitos que estão postos na teoria, na nossa Constituição, e dos quais fomos privados durante muito tempo. Houve ciclos melhores de avanço e outros de grande retrocesso. A história do país é muito ampla nesse vai e vem, que, infelizmente, mais vai do que vem.” Por exemplo, destaca, “não há segurança com esse quadro de pessoas comendo pé de galinha, com fome.”
Uma das distorções mais graves e evidentes das políticas vigentes é o tratamento desigual, assinala Luís Fernando de Almeida. “É a pior coisa nesse quadro. Se um povo quer uma polícia dura, truculenta, essa polícia tem que ser truculenta e dura na favela e na Zona Sul. Tem que tratar com essa truculência que se pede a todos: o de gravata, e o maltrapilho. O primeiro ponto a se pensar é a profunda discriminação que se faz entre uma pessoa de gravata, bem vestida, com terno importado, que é chamado de senhor, excelência, e pode estar desviando e matando milhões de fome; e outro que não tem roupa decente, na periferia, que é preto e pobre, e é abordado com tapa na cara, com xingamento. Então o primeiro princípio é o da igualdade. Quer polícia que chegue junto? Então se prepara para sair do seu apartamento na rua Vieira Souto, na avenida Atlântica, e tomar um tapa na cara e ser chamado de sei lá o quê. Mas vivemos num país de profunda desigualdade e desigualdade no tratamento.”
A outra questão a ser enfrentada na prática da PM é a falta de consciência de classe do policial, lamenta o secretário municipal de Aracaju. “Muito triste é que o policial que reprime, reprime sua classe: os trabalhadores, as pessoas que são do lugar que ele veio. E muitas pessoas que são abordadas dessa forma sonham um dia vestir uma farda e abordar as outras da mesma forma. Como na visão do Paulo Freire, se a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é um dia virar opressor.”
Luís Fernando de Almeida também observa que o policial representa um estrato da sociedade, refletindo os problemas que essa sociedade tem. “Não podemos esquecer: não vamos conseguir uma polícia muito boa com uma sociedade que tem práticas ruins, que não tem acesso à educação e a direitos básicos.” Nesse aspecto, ele ressalta o peso do racismo na abordagem desigual da repressão.
“O racismo é histórico e carrega a não valorização do trabalho”, explica. “A questão do trabalho é muito complicada e é herança da escravidão, uma escravidão que não acabou. Teve um fim formal mas teve toda a nossa população espalhada e colocada à margem, em favelas, a distância, explorada de todas as formas. E hoje as estatísticas estão aí: um verdadeiro extermínio dos jovens negros. Você teve uma diminuição na morte de mulheres brancas, mas de mulheres negras, não.
É algo latente, que está aí pulsando todos os dias. E volto àquele ponto: um branco bem vestido é abordado de uma forma; um negro mal vestido na perifeira, muitas vezes [o policial] primeiro atira para depois perguntar o nome e o que a pessoa está fazendo.”
Para o secretário, não há “saída de curto nem de médio prazo”. Segundo ele, “será necessário um processo em que o povo resgate suas verdadeiras origens, valorizando sua formação”. Um dos fatores que mais influenciam o caráter discriminatório do país, na sua avaliação, é a questão da classe.
Mediação de conflito sem violência
Na década de 90, Luís Fernando de Almeida, ainda na PM, participou de uma experiência diferente como mediador em conflitos relacionados à posse de terra.
Ele explica que, quando um proprietário tem sua a fazenda ocupada e entra com pedido de reintegração de posse, o juiz pode conceder liminarmente ou fazer uma audiência com as partes. Em geral, expede-se, por liminar, o mandado com prazo para reintegração e, se não houver desocupação, a PM é chamada a intervir.
Porque havia feito um curso de gerenciamento de crises, Luíz Fernando de Almeida foi chamado uma vez pelo comandante para acompanhar uma audiência e ajudar a negociação entre um fazendeiro, que tinha muitas dívidas trabalhistas e bancárias, e os trabalhadores que haviam invadido a fazenda dele.
“Fui com o promotor, que já está aposentado – doutor Elias Pinho –, até a fazenda. Eu estava à paisana, de calça jeans. Levantei a camiseta e disse – sou capitão da polícia, vim conversar para entender o que está acontecendo.”
Assim, desarmado, pôde ouvir dos trabalhadores que as pessoas saíam escorraçadas da fazenda, outras morriam ali, que quando recebiam salário, já estavam devendo na venda. “Essas coisas que a gente vê nos filmes, na ficção, e que são verdade”, lembra. “E duas coisas me chamaram muito a atenção: a primeira foi quando se referiam ao lugar onde eles dormiam. Era 1995 e o local onde os trabalhadores da Fazenda Santa Clara, no município de Capela, interior de Sergipe, o local onde eles dormiam, se chamava senzala. E o capataz da fazenda, que depois veio até a matar um sem terra, ele era conhecido como capitão do mato. Isso para mim foi algo chocante.”
A partir daí, o então policial começou a desenvolver um trabalho em que interagia e ouvia os trabalhadores, buscando compreender, ir ao juiz, buscar o Incra no apoio da negociação. Algumas vezes, a desocupação acontecia, os trabalhadores iam para a beira da estrada, mas sem que houvesse repressão ou brutalidade por parte da polícia.
A prática serviu para a monografia de pós-graduação de Luíz Fernando Almeida, sobre mediação de conflitos agrários. Ele também conseguiu promover um encontro, com apoio do MST, entre cem policiais militares e sem militantes e lideranças sem-terra no auditório de uma universidade federal. Para o secretário, é importante que, embora em lados opostos, os dois lados entendam que são todos vítimas de exploração.
> O Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)
> Assista na íntegra ao Soberania em Debate com o secretário Municipal da Defesa Social de Aracaju, Luís Fernando de Almeida, coronel aposentado da PM, sobre segurança pública, entrevistado pelo cientista político Jorge Folena e pela jornalista Beth Costa, coordenadores do SOS Brasil Soberano
https://www.youtube.com/watch?v=t-WlBMTbnVQ