Francisco Teixeira*
Dificilmente uma época terá conseguido reunir condições tão dramáticas como as atuais no Brasil. Desemprego recorde. Violência brutal. Ilegitimidade política. Ausência de expectativas. Crise institucional. Radicalismo politico. Podemos lembrar a Alemanha em 1933; talvez a Itália logo depois de 1919 até 1922, ou a Espanha em 1936. Nós, entretanto, nem mesmo temos a consciência, enquanto conjunto, como Nação, do risco profundo que nos ameaça. E nem sequer perdemos uma guerra…
Após anos de crescimento, iniciados depois da Revolução de 1930, com altos e baixos e crises institucionais gravíssimas, tivemos ameaças e rompimentos da ordem em 1954 e 1955; um golpe de Estado fracassado em 1961 e um golpe que obtém sucesso, incluindo apoio popular, em 1964. Em seguida, sucedem-se “golpes dentro do golpe”, como em 1969, e ameaças e crises, avanços e retrocessos, levando a experiência autoritária, modernizante e desenvolvimentista, da coligação civil-militar a se esfacelar em 1985. Contudo, nestes anos, uma elite política pode dar continuidade a um projeto nacional-desenvolvimentista que fez este país avançar e colocar-se entre os mais importantes do mundo.
No inicio dos anos 1980, a pressão popular em massa empurrou a ditadura para seu fim. Mas não foi suficiente para instaurar um regime moderno e passar o país a limpo: a Emenda Dante de Oliveira foi derrotada; a Anistia foi feita de forma a ocultar as ações do regime decaído (fala-se muito da tortura, mas esquece-se da corrupção e da auditagem da dívida pública); forjou-se uma união entre a elite do regime autoritário e aqueles que deveriam construir a democracia no país visando “esquecer o passado recente”. Polícia, serviços públicos, tribunais jamais prestaram contas das suas ações. E senadores e deputados célebres sob a ditadura passaram seus currículos a limpo assumindo ministérios na “Nova República”. A Constituinte foi liderada por um STF que se calou durante anos de violência física e jurídica contra a Nação.
A transição tutelada era, simultaneamente, a certidão de nascimento e o atestado de óbito da democracia no Brasil.
Hábitos, práticas, hierarquias e clientelas herdadas desde a velha República – tão bem analisados por Victor Nunes Leal e Raymundo Faoro, e imortalizados no destino irônico do “Doutor Mundinho” de Jorge Amado – marcavam o eterno transformismo dos políticos brasileiros. A elite brasileira, velha como o diabo, por isso mesmo, sábia, pegou carona no movimento popular e instrumentalizou a revolta: a República ocultava em suas origens a perpetuação da privatização e colonização do Estado pelos interesses privados.
A pequena propina, o emprego público visto e usufruído como sinecura que se obtém por favor politico – “sine cura”, sem preocupações, no latim castiço da colônia – passaram a ser a norma. A Constituição de 1988, um ente híbrido nascido das pressões e contrapressões entre uma esquerda dividida e o “Centrão” fisiológico, devoto de um São Francisco dos ricos, expressa as contradições do próprio sistema.
A República já nascera condenada.
Como governar uma República eivada dos vícios dos tempos – o nepotismo, o filhotismo, o clientelismo, que viam na prosperidade do país apenas as chances maiores do enriquecimento ainda maiormente ilícito –, quando as regras institucionais impunham um profundo descompasso entre as possibilidades de formação de maiorias parlamentares estáveis e o resultado das eleições presidenciais? Presidente e parlamento pareciam não sair das mesmas eleições… E de fato não eram as mesmas.
A fórmula criada em 1988 gerara um erro constitucional denominado esdruxulamente de “presidencialismo de coalizão”. Contudo, nem o presidente podia dissolver o Congresso Nacional para buscar uma nova maioria estável, nem tão pouco o Congresso Nacional podia propor um voto de desconfiança capaz de substituir o Executivo, como se fosse um primeiro-ministro.
Na ausência de harmonia entre os poderes constitucionais, abria-se a crise. Ou a composição. Ou a paralisia. O conchavo. Ou, com rapidez inimaginável, uma indevida politização do Poder Judiciário, em cujas portas os dois outros poderes da República buscavam argumentos e forças para se contraporem um ao outro e muitas vezes, como no caso do Poder Legislativo, a si mesmo, em decisões confusas ou conflituosas.
A República se rendia a um poder não eleito, elitista e, ao longo da história do país, alheio aos sentimentos e ao sofrimento do povo, que resistiu e resiste há 500 anos a qualquer desforço de reforma.
Poderíamos ainda ter alguma esperança de salvar a República, aquela que foi um dia, lá nos idos de 1988, chamada pelo seu fundador de “Nova”, caso os partidos políticos fossem fortes e representativos. Contudo, ainda uma vez, a República, também neste caso, foi infértil. Nenhum dos partidos mostrou-se fiel e capaz de se dizer “republicano”.
Num país onde cada cidadão se orgulha do seu time de futebol, na maioria das vezes uma herança familiar, e onde os clubes têm suas raízes no final do século XIX e começo do século XX, os partidos já representam muito pouco para o cidadão brasileiro. A maioria dos brasileiros, com poucas exceções, depois de 1988 já votou em mais de dois partidos diferentes – embora continue torcendo pelo mesmo clube de futebol. Comparando com suas escolhas por partidos políticos, não há, para a maioria, qualquer fidelidade, tão pouco orgulho.
Mesmo que seu time não tenha ganhado nenhum campeonato desde 1988, ele está lá, fiel, com sua camisa. Sente orgulho pelo seu time, por sua camisa, sua bandeira. Pena que, ao contrário, os brasileiros não possam mais se orgulhar em nada da ex-Nova República.
*Francisco Teixeira é historiador e professor na UFRJ.