O Brasil deveria colocar a pauta da reindustrialização nacional no centro do seu movimento de reinserção internacional, em especial nas negociações com a China, afirma Elias Jabbour, professor de Ciências Econômicas da UERJ e grande conhecedor da sociedade chinesa. “O Brasil está de volta ao mundo, como disse o presidente Lula. Mas qual o conceito que deveria nos entregar um ponto de referência estratégico e tático para essa volta ao mundo? Deveria ser o projeto de reindustrialização do país, guiando as ações dentro e fora do país. O Brasil tem que precificar sua volta ao mundo, e esse preço deve ser o nosso processo de reindustrialização.”
A viagem presidencial, avalia Jabbour, além de ter resultado em acordos estimados em R$ 50 bilhões, marcou o reingresso do país ao campo das relações internacionais. “Essa viagem serviu para o Brasil voltar a ter com a China o status vigente até o golpe de 2016, de parceria estratégica, que inclui não só acordos comerciais, tecnológicos, mas uma relação mais ampla, que envolve a posição e a ação dos dois países na arena internacional”, diz. “Somos favoráveis a um mundo multipolar e temos convergência com a China em temas fundamentais. Por isso só, já valeu a pena.”
O professor da UERJ critica, contudo, a falta de uma agenda nacional para embasar as relações internacionais brasileiras numa direção programática. Uma agenda que priorize, por exemplo, parcerias na área de infraestrutura de transportes, com o objetivo de integrar o território brasileiro na sua totalidade. “Um problema nosso, que afeta diretamente nossa soberania, é que o Brasil não tem rodovias. Não se viaja de Porto Alegre a Manaus, porque não temos rodovia nem ferrovia. E muito menos se consegue transportar soja, sem que o custo seja muito alto. Estamos com as infraestruturas que conectam nosso mercado nacional destruídas.”
Por outro lado, a China, hoje, tornou-se um grande exportador de bens públicos, inclusive ferrovias, estradas, portos, aeroportos, destaca Jabbour. “Com essa nova tendência de ser exportadora de bens públicos, via Nova Rota da Seda, nossas commodities são ativos estratégicos e precisamos transformar isso em força.”
O especialista defende “uma negociação de alto nível, em que a China nos entregue um território econômico unificado do ponto de vista das estruturas, faça a transferência da tecnologia dos trens de alta velocidade, de metrô, de forma que nós reconstruamos uma parte do que foi destruído pela Lava Jato – a engenharia mecânica pesada e de construção –, em troca de commodities”.
Essa negociação demandaria “plasticidade institucional e capacidade de elaboração estratégica”, que Jabbour acredita que ainda falte ao debate público brasileiro. “Não se fala dessa questão que afeta diretamente a nossa soberania, que são as nossas infraestruturas estranguladas, nem das possibilidades que a China nos entrega para planificar nosso comércio exterior para receber esses investimentos que vão mudar totalmente a cara do território brasileiro.”
Uma razão possível para o Brasil não ter aderido ainda à Nova Rota da Seda, corredor de exportações que a China está construindo por meio de investimentos em infraestrutura, gasodutos, cabos de fibra óptica, poderia ser exatamente a intenção de qualificar a negociação. “Acho que o Brasil não devia entrar agora, mas buscar uma entrada negociada com a China, incluindo esses elementos: infraestrutura, transferência de tecnologia. Alguns países já fazem isso: trocam commodities por estradas e ferrovias. Tendo em vista o conceito da reindustrialização como motor da sua reentrada no mundo, foi bom não ter entrado agora.”
Para a China, na avaliação de Jabbour, interessa que o Brasil se reindustrialize de novo e seja um país forte. E alerta para uma redução na demanda chinesa por commodities. “Nesse processo em que China e Rússia estão tendo as economias sendo incorporadas, amplos relevos da Sibéria vão se transformar em terras agricultáveis, e ela vai se transformar no celeiro da China. Temos que ter uma estratégia para isso. Não haverá para sempre essa demanda infinita da China por commodities brasileiras.”
Enfrentamento das desigualdades
A China está tornando sua agricultura mais complexa, aumentando sua capacidade produtiva por hectare, por meio de mecanização e de novas formas de propriedade. Também quebrou o oligopólio capitaneado por gigantes como a Cargill, a Bunge e a Monsanto, quando a estatal ChemChin comprou a Syngenta, ressalta o especialista, autor do livro “China – o socialismo do século XXI”, em parceria com Alberto Gabriele.
Em 2020, o país declarou ter superado a pobreza extrema – “o maior feito da história humana”, na opinião de Jabbour –, tem investido muito em tecnologias e inovações disruptivas como 5G, big data e inteligência artificial para conectar vilas pelo país inteiro. “O problema da falta de transporte está superado; não faltam linhas 5G para abrir e-commerce em qualquer vilarejo”, conta o professor de Ciências Econômicas. “Conseguiram montar nichos de comércio eletrônico nos rincões do país. Metade das antenas de 5G estão na China. E o próximo passo é enfrentar as desigualdades.”
Para isso, os chineses estão mudando “os esquemas de propriedade”. Ou seja, promovendo o avanço da propriedade pública estatal coletiva sobre o setor privado. Jabbour cita, por exemplo, a multa de US$ 300 milhões aplicada sobre a Meituan, principal empresa de entrega de comida do país, por trabalho precarizado. “A tendência à precarização está sendo enfrentada com direitos sociais e trabalhistas, e isso tende a se espraiar pelo resto da economia. Mas o mais importante é a mudança nos esquemas de propriedade. Há uma nova onda de inovações institucionais, mas dessa vez mirando os setores da economia que têm problemas e precisam ser estatizados, como educação, saúde, big tech, construção civil, etc. Sem mudar o esquema de propriedade você não enfrenta a desigualdade na sua raiz.”
> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)
> Confira o Soberania em Debate com Elias Jabbour, professor de Ciências Econômicas da UERJ, entrevistado pela jornalista Beth Costa, da coordenação do SOS Brasil Soberano: