Breno Altman explica porquê não há contradição no lugar de símbolo da extrema-direita conquistado pelo sionismo e porque ele precisa ser vencido para, só então, derrotarmos o fascismo
O Estado de Israel fascina a extrema-direita pelo mundo. Em manifestações fascistas, entre faixas e cartazes que exigem a expulsão de imigrantes, a perseguição de minorias, a suspensão de direitos, tremulam bandeiras azuis e brancas com a estrela de seis pontas. A elas se somam nesta conjuntura distópica cenas como a de Bolsonaro sendo ovacionado no Clube Hebraica, ou de bispos neopentecostais paramentados como rabinos. Historicamente antagônicos, o cristianismo e o judaísmo se encontram na extrema-direita.
Mas a aparente contradição de um Estado formado por um povo perseguido pelo nazifascismo se tornar um dos símbolos adotados, décadas mais tarde, pela mesma extrema-direita, não resiste à identificação das muitas pontes construídas desde a fundação de Israel até o que ela é hoje: um Estado genocida, militarizado e teocrático, sonho e modelo para setores da burguesia liberal que já não vê seus anseios atendidos pela democracia burguesa.
Breno Altman, segundo convidado do ciclo de palestras Radiografias do Fascismo, apresentou, em 03/09, um retrato detalhado do neofascismo e explicou o papel ocupado por Israel no imaginário da nova ultradireita: um Estado dos sonhos, militarizado, colonialista, racista e genocidário, apoiado pelas grandes potências ocidentais.
Em noite de auditório lotado no Sindicato do Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro – Senge RJ, o jornalista e fundador do Opera Mundi, um dos canais progressistas mais acompanhados do Brasil, lançou seu livro “Contra o Sionismo – Retrato de uma Doutrina Colonial e Racista” e deu sua contribuição para construção de um complexo quebra-cabeças que, mesmo com novas peças, forma uma mesma imagem de falência político-social em meio ao capitalismo tardio.
Por dentro da democracia liberal
“O neofascismo, no século XX, surge de um setor da burguesia mundial que passa a considerar a democracia liberal insuficiente como regime político capaz de implementar as reformas necessárias para estabilizar, recuperar ou aumentar a taxa de lucro do grande capital. Mudanças internas ou externas se faziam necessárias e, no passado, o fascismo e o nazismo substituíram a democracia liberal por ditaduras abertas. Hoje, essas mudanças não são fundamentalmente externas”, aponta Altaman.
É por dentro da própria democracia liberal que o fascimo opera hoje. Ascendendo à direção do Estado pela manipulação das massas, ele passa a restringir ao máximo as liberdades democráticas e os instrumentos de soberania popular que permitem a participação popular nos rumos da nação. O Banco Central independente é um exemplo das medidas que, tomadas pelas forças moderadas que administram a democracia liberal, em algum momento, passam a ser insuficientes para impor reformas relacionadas à restrição de direitos, rebaixamento relativo dos salários, enxugamento e privatização dos serviços públicos, e venda de empresas estatais na bacia das almas para beneficiar novos negócios.
“Há um setor da burguesia que considera que é preciso mão de ferro na direção do Estado para que a pressão popular seja enfrentada e derrotada e essas reformas sejam implementadas com maior radicalidade e velocidade possível, porque o capital tem pressa. Esta é a força propulsora do neofascismo. Ele representa esta vontade, este desejo de setores da burguesia de operar a democracia liberal com mãos de ferro. Não é preciso, necessariamente, de uma mudança externa de regime político, porque a democracia burguesa traz dentro de si os elementos próprios do fascismo”, explica Altman.
Para o jornalista, sem a presença de forças revolucionárias a serem derrotadas, a adoção de ditaduras abertas se torna desnecessária: o movimento revolucionário operário, forte no século XX, especialmente na Itália e Alemanha, não é hoje uma força política relevante. A mudança de regime, portanto, não entra na ordem do dia. No lugar dela, o fascismo impõe uma gestão violenta, restritiva, excludente, anti-soberania e antidemocrática à democracia.
Se em suas roupagens históricas, o fascismo e o nazismo eram adversários de democracias liberais, o neofascismo subverte essa lógica, à medida que consegue se apoderar da democracia e impor um liberalismo radicalizado, sem mediações. O conceito, agora, é que é preciso salvar a democracia burguesa daqueles liberais que não a governam com mãos de ferro.
Guerra cultural
“Choque de Civilizações”, um célebre texto dos anos noventa do cientista político norte americano Samuel Huntington, traz a ideia que, com o fim da Guerra Fria, marcada pelo confronto entre os campos socialista e capitalista, a principal contradição do mundo passaria a ser entre o Ocidente e o islamismo: as forças de resistência à democracia liberal estariam nos países de maioria muçulmana e no próprio islamismo como corrente ideológica. O embate seria, então, cultural, de valores.
“A extrema-direita parte de uma leitura ampliada desta tese. Nela, não confronta o Ocidente apenas contra o Islamismo, mas contra o Oriente, uma amálgama onde está presente o islamismo como força religiosa contraposta ao cristianismo e ao judaísmo, dentro do conceito esdrúxulo da civilização judaico-cristã como expressão do Ocidente. Neste ambiente está presente, portanto, o islamismo, mas também todas as demais forças de resistência ao Ocidente burguês, capitalista e liberal. O nacionalismo russo, o socialismo chines, as repúblicas socialistas como Cuba e Coreia do Norte, experiências anti-imperialistas como a da Venezuela, experiências de governos progressistas como ocorre aqui no Brasil e tudo aquilo que pode representar resistência a este Ocidente burguês e liberal” explica Breno.
A simbologia de Israel
Na articulação geopolítica neofascista, Israel brilha como a joia da coroa. Ponta de lança do ocidente em espaço geográfico oriental, o Estado israelense nasce com objetivo claro por parte de seus patrocinadores: a vanguarda na luta contra o principal vetor do islamismo antiocidental ou anti-imperialista, o Irã.
“Israel é o modelo do Estado de punho de ferro, militarizado de alto a baixo. Em toda a sua história, apenas dois primeiros-ministros não foram, antes disso, comandantes militares. A maioria desempenhou funções militares de relevo. Foram generais, chefes do Estado Maior israelense. Nenhum país na história tem essa trajetória. Apenas Ben-Gurion e Golda Meir não tiveram histórico militar”, destaca Altman.
Breno lembra que, em seu nascedouro, Israel tinha milícias em suas bases. Elas enfrentaram, integradas, junto ao império Britânico, a Revolução Palestina entre 1936 e 1939. As organizações paramilitares estavam vinculadas a diferentes setores políticos do sionismo e, embora estivessem em campos diferentes, colaboraram na construção de Israel como ela é hoje.
“A Haganá era ligada ao antigo partido trabalhista, socialista, que governou Israel de 1948 a 1937, ininterruptamente. O Estado militar, o regime de Apartheid, o sistema de ocupação colonial, foram construídos por estes setores que se reivindicam como esquerda sionista, ou sionismo de esquerda”, explica Altman. Outras duas milícias, a Irgun e a Lehi, estavam vinculadas à direita sionista. “A fusão dessas três milícias deu origem ao exército de Israel, ‘o mais moral do mundo’, como reivindicam. Eram grupos que fariam as milícias do Rio de Janeiro parecerem jogadores de futebol de botão. O próprio partido da direita israelense, o Likud, é originário da fusão civil de duas milícias armadas da direita israelense”, aponta o jornalista.
A ligação das milícias com os fundamentos do Estado israelense passou pelo gabinete de Governo: O principal chefe do Irgun, Menachem Begin, que chegou a ser acusado de terrorismo pelos próprios aliados britânicos e norte-americanos e denunciado na famosa carta assinada por Hannah Arendt e Albert Einstein enviada ao New York Times, veio a ser o primeiro-ministro entre 1977 e 1984. Já o chefe do Lehi, Yitzhak Shamir, foi o sétimo primeiro-ministro de Israel, entre 1986 e 1992.
O Estado que mais se aproxima do modelo punho de ferro da democracia liberal não encanta o neofascismo de todo o mundo apenas pela brutalidade militar. As relações entre a ala direita do sionismo, liderada por Netanyahu, e a extrema-direita no mundo são fluidas, permanentes, de identidade, também por sua natureza teocrática.
“Outro elemento importante que excita a extrema-direita mundial é a possibilidade de a religião ser a identidade de um Estado ocidental disposto a efetivamente esmagar o Oriente. Oficialmente estabelecida como identidade de Estado, a religião judaica, entronizada no Estado de Israel, estabelece pontes com um setor fundamental da extrema direita ocidental, que é a extrema direita cristã, apoiada sobre o fundamentalismo neopentecostal”, ressalta Breno.
Pontes religiosas e o inimigo em comum
Ainda que a brutal história do antissemitismo tenha sido escrita, em grande parte, por grupos e movimentos que, como identidade religiosa, tinham o cristianismo, à medida que Israel se consolida como aliado do sistema imperialista na luta contra o grande inimigo – o socialismo, a União Soviética – tensões foram abrandando contradições que marcaram momentos dramáticos na história do judaísmo.
Entre as estratégias utilizadas pelo sionismo para conquistar o espaço de aliado, apesar de uma desconfiança histórica, estava, segundo Altman, o oferecimento de algo que os núcleos evangélicos não possuíam: os símbolos geográficos, importantes elementos para a identidade religiosa. Com a criação do Estado de Israel, os símbolos geográficos do judaísmo, que também são os das religiões cristãs, passam a ser um ativo para denominações evangélicas, que não possuíam esses referenciais.
“O sionismo ofereceu aos evangélicos esses referenciais. Se essas denominações descentralizadas se deslocassem do novo para o antigo testamento, as terras de Israel estariam abertas para visita, fortalecendo esses grupos religiosos. Esse nexo foi estabelecido. A isso se soma o surgimento da Teologia do Domínio, no contexto da Guerra Fria, que passa a se articular com a já conhecida Teologia da Prosperidade”, aponta Altman.
Esse novo contexto, segundo o jornalista, provoca uma transição de valores nas grandes correntes do cristianismo. Os valores que predominavam no século XX, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, eram os do novo testamento: misericórdia, compaixão e solidariedade, fazendo frente ao Marxismo como caminho para a libertação dos povos. A teologia do domínio muda essa lógica. Se antes era preciso se aproximar da ideologia socialista para manter bases religiosas, agora o objetivo era o afastamento e o enfrentamento direto. Passaram a focar no velho testamento e em personagens da tradição judaica, em especial, os reis militares do povo judeu: Davi, Salomão e Saul.
“Muitos grupos religiosos evangélicos passaram a falar mais de Davi que de Cristo. A própria estética desses grupos foi profundamente alterada. A sede da Igreja Universal do Reino de Deus, a segunda denominação neopentecostal do Brasil, superada apenas pela Assembleia de Deus, construiu um templo em São Paulo que é uma imitação arquitetônica do que teria sido o segundo templo de Salomão, em Jerusalém. O bispo Edir Macedo, hoje, se veste como um rabino. Isso é fruto desta aproximação religiosa entre a extrema-direita cristã com o sionismo religioso”, aponta Altman.
Um combate necessário
O combate à extrema-direita no Brasil, destaca Altman, não existe de fato sem o combate ao sionismo. “É impensável imaginarmos o combate à extrema-direita no Brasil sem o combate ao sionismo, porque ele é um dos fundamentos da extrema-direita no Brasil. A esquerda brasileira que ainda não acordou de vez para a questão palestina, que ainda tem reticências em abraçar a solidariedade incondicional e irrestrita à causa palestina, em um comportamento vacilante, não se dá conta de que não há hipótese da extrema-direita ser derrotada no Brasil se o sionismo não for desmascarado, isolado e desnaturalizado como uma doutrina racista”, defende Altman.
Ele destaca, ainda, a importância do atual momento, quando o sacrifício do povo palestino propicia um enfrentamento quente, capaz de escancarar a verdadeira natureza genocida do sionismo. “Justamente neste momento, estamos claudicando. Enquanto isso, o lobby sionista se fortalece no parlamento, no judiciário, nas Forças Armadas e mesmo entre partidos de esquerda. As organizações sionistas levam juízes a Israel, com tudo pago, para encontros com as sumidades do sionismo. Eles saem de lá defendendo Israel, enquanto julgam casos que envolvem essas mesmas organizações. Estamos perdendo a oportunidade de reduzir o peso da extrema-direita cristã no nosso país. No Rio de Janeiro as forças de esquerda, com exceção do PSOL, estão apoiando Eduardo Paes para a prefeitura. Paes assinou o protocolo da Aliança Internacional de Lembrança do Holocausto, que define como antissemita toda e qualquer pessoa antissionista. Isso tem grandes consequências educacionais e simbólicas”, denuncia.
“As forças de esquerda estão fazendo alianças com prefeitos e governadores que defendem esse ponto de vista, com consequências de naturalização do sionismo no interior do Estado brasileiro, algo altamente perigoso para as forças populares, democráticas e revolucionárias do país”, finalizou Breno.
Rodrigo Mariano/Senge RJ | Fotos: Adriana Medeiros
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