Vera Lúcia P. Santos Nogueira*
A tentativa, neste trabalho, é a de pensar a questão da responsabilidade do sujeito no cenário social e político em que se situa o Brasil hoje, considerando a inércia do povo diante de fatos graves que acometem o país e sua história, desde que Michel Temer conduziu-se à Presidência da República.
O momento atual em que vive a quase totalidade dos brasileiros é de uma intensa convulsão política, diante de pouco ou nada praticamente feito, considerando as reações no sentido de estancar esse nefasto movimento. Fatos opressores se sucedem de forma vertiginosa desde os últimos meses, quando assumiu o comando do país o atual governo, que, de acordo com notícias que se tem de quase todos os cantos do Brasil, muitos estragos vem causando à vida da população, atormentada por inquietações quanto ao futuro, além do que normalmente já se verifica na existência humana. Disse Aldo Fornazieri (2017) que “Estamos diante de um governo que faz da humilhação e da degradação do povo o seu método de governar”. Tal modo de governar consiste, com as reformas anti-sociais em curso, em um retrocesso a tempos em que se trabalhava para o gozo do senhor. Assim parece hoje o povo atônito, incapaz de movimento que ateste ir contra o que o atinge em sua dignidade, ou seja, cedendo como escravos aos caprichos do senhor, ou como meros espectadores diante dos protagonistas de um cruel teatro.
Diante disso, o que se constata no Brasil atualmente pode ser comparado a uma guerra que vem tentando ultrapassar qualquer fronteira, uma guerra declarada pelo governo contra seu povo. Direitos adquiridos pelo trabalhador vêm sendo ceifados, e este não esboça outra reação que não a de se retrair. De um lado, estão presentes as medidas do governo, o qual avança a passos gigantescos em seus propósitos desmedidos e avassaladores; e de outro lado, o povo, sob opressão, inerte e silente, num aparente conformismo, indica um recuo na mesma proporção, ou pior, indica a passividade diante da devastação, que vem sendo imposta a todos os brasileiros, exceto, é evidente, aos que propõem tais medidas. Enfim, é uma guerra sem limites, no dizer de Derezenzky (2014, p. 171), para quem “A guerra […] não era outra coisa que a continuidade da política por outros meios. Na época do capitalismo globalizado, encontramo-nos com as chamadas guerras sem limite”.
Freud analisa a desilusão que a guerra provoca, quando aborda o que esta deixou de destruição. Antes de ser atingido pela guerra, ele havia formulado uma ideia de um embate de armas cavalheiresco, com evitação de graves sofrimentos, considerações por doentes, mulheres, crianças etc. Além disso, embora produzindo sofrimentos, as relações éticas entre os povos e os Estados seriam mantidas. No entanto, para Freud, isso foi destruído com a guerra, e essa experiência de destruição vivida por ele “[…] trouxe – desilusão. Não é apenas mais sanguinária e mais destrutiva do que qualquer guerra de outras eras […] é, pelo menos, tão cruel, tão encarniçada, tão implacável quanto qualquer outra que a tenha precedido”. (Freud, 1915/1980, p. 315). Tudo isso o colocou ante o Estado que desconsidera seu povo e tudo o que foi construído. Essa experiência de Freud permite entender que o que ocorre no Brasil hoje não é uma novidade.
Freud (1915/1980, p. 327) também se dedicou a examinar a atitude dos humanos diante da morte. Ele diz que “[…] no inconsciente, cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade”. Isso pode nos levar a supor a razão de tantos desvarios da classe dita poderosa, ou seja, dos que se julgam eternos, inatingíveis, enquanto se servem de benesses que o poder lhes confere.
Na leitura de Ernesto Derezensky, ainda a respeito dessa guerra sem limite no século XXI, esta é um modo do real sem lei se apresentar. Em face de um real que se abate quase sem cessar sobre cada um, o povo permanece como se estivesse em estado de choque; é a constatação de um povo assujeitado, submetido a leis feitas por aqueles que dominam, em seu próprio benefício.
Embora não tenhamos antecipadamente uma resposta para todos, acerca do que seja da ordem do bem – pois, como disse Laurent (2012), ”Ninguém sabe o que é o bem, como obter o bem, nem dos sujeitos nem da sociedade. Isso é objeto de uma negociação democrática como tal […]” –, isso não nos impede de considerar como um ideal de proteção a responsabilidade de um governante ante seus governados, ou seja, um bem.
Dito isso, não parece que o governo do Brasil esteja orientado pelo que convencionamos chamar o bem comum, negociado, mas tem tão somente em conta o seu próprio bem. Com sua lei de ferro, já que não é uma lei que ordena e que pacifica, impõe a todos sua vontade, com argumentos pouco ou nada sustentáveis. Trata-se de uma lei arbitrária, carregada de injustiças com o povo, tornando-se, desse modo, uma ameaça ao bem comum.
A propósito da postura de inércia do povo diante dos acontecimentos e suas arbitrariedades, podemos nos perguntar se estaria o sujeito (cada um) tomado de perplexidade tal diante de discursos vazios e de tantas incoerências que se apresentam no país, que ele, o sujeito, não consegue se mover? Hilda Vittar (2010, p.26) nos traz uma interessante afirmação, quando aborda a respeito de argumentos vazios e suas consequências. Para a autora, os referidos argumentos, visando à legalidade, mas sem a devida legitimidade, causam perturbações que “produzem uma ferida no Tecido social”, o que pode levar à imobilidade e à apatia ou sabe-se lá a que outras conseqüências.
No entanto, sob outro ponto de vista, há que se considerar aqui a implicação do sujeito naquilo que faz, isto é, refletir acerca da noção de responsabilidade do sujeito. Não se trata aqui de tomar a responsabilidade no âmbito legal e social, motivo sempre de muitas interrogações e discussões, mas do que concerne a uma responsabilidade subjetiva. Diferente do campo do indivíduo na relação com o social, a noção de sujeito em si já abarca a noção de responsabilidade. Por isso, ele “pode, deve e precisa responder, em um ato pelo qual ele reassume, em algum nível, as rédeas da sua vida e de sua condição, no sentido de poder transformá-la” (Elia, 2004, p.2). Lacan (1966/1998, p.873) diz que “Por nossa posição de sujeito, somos sempre responsáveis”, indicando assim que dessa condição de responsável, o sujeito não pode escapar.
Levando em conta o que há de responsabilidade do sujeito, a postura de inércia do povo pode ser lida também a partir do que diz Freud (1917/1980, p.278-279) em “Luto e melancolia”: “Quando, em sua exacerbada autocrítica, ele (o paciente) se descreve como mesquinho, egoísta, desonesto, carente de independência, alguém cujo único objetivo tem sido ocultar as fraquezas de sua própria natureza, pode ser […] que tenha chegado bem perto de se compreender a si mesmo; ficamos imaginando, tão somente, por que um homem precisa adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie.”
Além disso, ao tratar da questão da responsabilidade do sujeito pelo conteúdo dos próprios sonhos, diz que:
“Obviamente, temos que nos considerar responsáveis pelos impulsos maus dos próprios sonhos. […] Se procuro classificar os impulsos presentes, em mim, segundo padrões sociais, em bons e maus, tenho de assumir responsabilidade por ambos os tipos; e, se em defesa digo que o desconhecido, inconsciente e recalcado em mim, não é meu ‘Eu’, não estarei baseando na psicanálise minha posição, não terei aceito suas conclusões […] Aprenderei, talvez, que o que estou repudiando não apenas ‘está’ em mim, mas vez e outra ‘age’ também desde mim para fora.” (Freud, 1923[1922]/1980, p. 165.)
Aprendemos, portanto, que a posição freudiana acerca da responsabilidade do sujeito pelo que lhe acontece não está posta de lado, pelo contrário, tem seus fundamentos claramente apresentados. Não se pode assim atribuir a um determinado acontecimento que seja apenas obra do acaso.
Podemos então afirmar que há responsabilidade do sujeito pelo assujeitamento no qual está envolvido, e que essa condição, é necessário que seja desde sempre considerada. Segundo Freud, o sujeito é responsável até pela sua neurose.
No momento atual de tantos inquietantes fatos políticos no país, o sujeito aparece como que banido, expropriado de sua capacidade de decisão, como banidos são todos aqueles que se atrevem a obstaculizar os planos da burocracia privilegiada, que vem tentando sugar até a última gota de suor do povo assujeitado, atingido pelo mal da contemporaneidade, a angústia.
Diante das incertezas naturais que o futuro encerra e, mais ainda, daquelas de grandes proporções que atingem todos os trabalhadores, é bom que se tenha em mente que a renovação é possível. Não se trata de fazer previsão, mas de considerar o que há de vida pulsante em cada um, porque o sujeito é soberano em suas decisões, pelas quais há que ser responsabilizado, seja na ação, seja na inação, que não deixa de ser um modo de assujeitamento em que se engaja. Depende do lugar que ele toma em seus ditos e em seus atos. O sujeito é soberano quando se responsabiliza por aquilo que deseja.
Para concluir, não podemos abandonar o fato de que, embora estejamos abordando o sujeito e sua responsabilidade, as vicissitudes pelas quais cada vivente atravessa não são de pouca importância, elas frequentemente se interpõem, como a possível (i)responsabilidade do governo brasileiro sobre os seus governados, causando danos sérios à vida de cada um. Também não se pode deixar de levar em conta o mal-estar na cultura e a tentativa sempre presente de escapar desse mal-estar, até mesmo via atos mais desprezíveis.
A proposta da psicanálise é, em qualquer tempo, a de acolher a demanda de cada sujeito em sua singularidade, em seu sofrimento, enredado que está no que se pode dizer a experiência trágica da vida. A psicanálise permite ao sujeito a experiência precisa de que cada um possa ocupar o lugar como sujeito de seus próprios ditos.
Por fim, é importante acrescentar que a psicanálise acompanha as mudanças e o que movimenta a cidade, como os movimentos atuais da política no Brasil. É certo que o que ocorre na política brasileira tem sua incidência sobre a psicanálise, já que o psicanalista participa da atualidade do acontecer político e também, como um trabalhador na cidade, é atingido pelas medidas de arrocho ao trabalhador, seja no consultório, seja na instituição em que porventura trabalhe.
É necessário que tenhamos em mente que vivemos no século XXI. Não recuemos, pois, de trabalhar para que os avanços neste nosso tempo não sejam quanto aos indicativos de retrocesso observados quanto à condução da política no Brasil, mas para que as normas e leis que regulam a vida em nossa sociedade não continuem sendo vilipendiadas. Embora a inércia possa significar uma decisão do sujeito, ela não deve se resumir à única, há que se ter alternativas à pura vigência da pulsão de morte. E o avanço em direção a alternativas à inércia, ou seja, ao que produz movimento, certamente que pode trazer melhores resultados.
Vera Lúcia P. Santos Nogueira é psicóloga integrante da equipe de Saúde Mental do Instituto Municipal Philippe Pinel. Psicanalista em consultório privado na cidade do Rio de Janeiro.
Referências:
DEREZENZKY, E. “Guerras sem limites”. In: Scilicet: Um real para o século XXI. Associação Mundial de Psicanálise. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
ELIA, L. “Responsabilidade do sujeito e responsabilidade do cuidado no campo da Saúde Mental”. In: Academus Revista Científica de Saúde. V. 3, n. 4, 2004. Disponível em: http://smsrio.org/revista/index.php/reva/article/view/92/114 Acesso em: março de 2017.
FORNAZIERI, A. “Moro, Lula e a hora da verdade”. In: Jornal GGN, 6 março 2017. Disponível em: http://jornalggn.com.br/noticia/moro-lula-e-a-hora-da-verdade-por-aldo-fornazieri Acesso em: 7 de março de 2017.
FREUD, S. (1917/1980) “Luto e melancolia”. In: Obras Psicológicas Completas, v. VIX. Rio de Janeiro: Imago.
______. (1923[1922]/1980) “Observações sobre a teoria e a prática da interpretação de sonhos”. In: Obras Psicológicas Completas, v. XIX. Rio de Janeiro: Imago.
______. (1915/1980) “Reflexões para os tempos de guerra e morte”. In: Obras Psicológicas Completas, v. VIX. Rio de Janeiro: Imago.
LACAN, J. (1966/1998) “A ciência e a verdade” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
LAURENT. E. “O tratamento das escolhas forçadas da pulsão”. In: Boletim da XVII Jornada da EBP-MG, n. 2, Belo Horizonte, 2012. Entrevista concedida a Fernanda Otoni. Disponível em: http://jornadaebpmg.blogspot.com.br/2012/05/ddito-2.html. Acesso em: março de 2017.
VITTAR, H. “Algunas reflexiones sobre el momento actual”. In: Contingencia, Revista de Psicoanálisis. Departamento de Psicoanálisis y Política – CIEC. Córdoba: Graficamente, ano 1, núm. 1, mayo 2010.