SOBERANIA EM DEBATE

Quinta-feira, às 16h

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O incêndio do Museu Nacional deflagrou nova ameaça: a campanha pela privatização dos acervos

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Na noite da terça-feira, dia 4 de setembro, ainda havia focos intermitentes de fogo nos escombros do Museu Nacional, destruído do domingo (2) por um incêndio, e o ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, já defendia no Jornal Nacional a privatização não só do museu queimado mas de todos os museus sob gestão federal. “Vamos nos dedicar a uma proposição legislativa sobre esse assunto”. O assunto, no caso, seria a transferência da gestão dos museus das universidades para Organizações Sociais (OS’s). O ministro Eliseu Padilha, da Casa Civil, também apressou-se em responsabilizar a UFRJ, a qual se vincula o Museu Nacional, e a TV Globo, na mesma edição, entrevistou especialista em um “seminário no Rio” sobre as Parcerias Público-Privadas na administração do patrimônio histórico brasileiro. Ou seja, o fogo que destruiu o quinto maior acervo do mundo, parte essencial do programa de doutorado da Antropologia da UFRJ, parece estar controlado, mas as ameaças à produção de conhecimento nas universidades e centros de pesquisa públicos, não.

O incêndio deu a largada para um ataque direto e rápido às políticas públicas para a educação e cultura no país. Um rolo compressor que aproveita o trauma nacional da perda para tentar estender aos museus os projetos de privatização que já alcançam outros setores estratégicos, como os de saneamento, energia elétrica, petróleo. O que está na pauta, em ano de eleição presidencial, é o que o Brasil pretende fazer com sua política de museus. O que fazer, principalmente, para que o patrimônio resista aos solavancos políticos nacionais e sobreviva soberanamente público.

Em nota oficial, a UFRJ destacou a “significativa redução orçamentária nos últimos quatro anos” sofrida pela instituição, e rechaçou alegações de que teria priorizado, em detrimento da atenção ao acervo, o pagamento de pessoal, cuja folha é gerida diretamente pelo Tesouro Nacional. “É falaciosa e extremamente absurda qualquer versão que insinue aumento de recursos, quando são visíveis os cortes na ciência e na educação, denunciados pela comunidade científica.” De acordo com a nota, os valores repassados, desde 2014, de acordo com a Lei Orçamentária Anual e créditos suplementares foi distribuído da seguinte forma:
2014 – R$ 434 milhões;
2015 – R$ 457 milhões;
2016 – R$ 461 milhões;
2017 – R$ 421 milhões;
2018 – R$ 388 milhões.

“Os valores acima são referentes até 2017, pois a execução deste ano não foi fechada”, explica  a universidade. “Precisam atender às despesas com custeio (manutenção geral, obras de infraestrutura) e investimentos (compra de equipamentos, construção de novos prédios). A folha de pagamento da UFRJ inclui servidores ativos e até servidores aposentados e inativos de outras décadas. Essa folha, que ultrapassa R$ 1 bilhão, é gerida diretamente pelo Tesouro Nacional e não há sentido em incluí-la nas avaliações sobre gestão anual do dia a dia da UFRJ, por parte da sua administração central. Em razão dos cortes, a UFRJ prevê que fechará este ano com déficit de R$ 160 milhões.”

Em 2015, ano do boicote liderado por Aécio Neves, do PSDB, e Eduardo Cunha, do PP, para bloquear a votação do orçamento e aprovar as chamadas pautas-bombas, começaram as negociações da UFRJ com o BNDES para obter recursos para o Museu Nacional, cujos recursos só devem ser liberados em outubro próximo. A manutenção requer apenas cerca de R$ 550 mil/ano, quase o equivalente a um único contrato do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) para prestação de serviços de acesso à internet (R$ 512 mil) ou a aquisição, pelo mesmo órgão, de estações de trabalho avançadas, orçadas em R$ 616 mil, segundo o Relatório de Gestão de 2017 da autarquia, criada para dar organicidade e consistência a uma política nacional para os museus.

Agora, museu queimado, o Ministério da Educação anunciou que vai liberar R$ 10 milhões para os esforços que tentam manter de pé a estrutura do palácio do Museu Nacional e para aquisição de dois containers, onde serão alocados os itens resgatados das ruínas. O BNDES prometeu edital de R$ 25 milhões para projetos de segurança e prevenção de incêndios de museus, com recursos da Lei Rouanet (não é empréstimo), e o governo estuda criar fundos patrimoniais com recursos privados e públicos para serem destinados às instituições.

Quem mata no Brasil?
Se não se sabe até hoje, desde 14 de março, quem matou Marielle, a vereadora do PSOL que enfrentava a milícia e o abuso policial no Rio, as chances são pequenas de se descobrir “quem matou o museu” — título significativo da coluna escrita pelo jornalista Jotabê de Medeiros. No seu texto, ele destaca os cortes drásticos nas universidades feitos na gestão Temer, que atingiram, entre outros, o programa de prevenção de riscos. Também reproduz a carta de demissão de Marcelo Araújo, presidente Ibram até o final deste mês, quando sai para outra função em um museu paulista. Divulgada cerca de uma semana antes da tragédia da Quinta da Boa Vista, a carta não traz uma linha sobre as dificuldades orçamentárias enfrentadas pela área museológia. Durante a gestão de Araújo, diz o jornalista, houve redução nas ações de financiamento e interrupção de investimentos em serviços básicos.

Em março deste ano, reportagem na revista Carta Capital, assinada pelo mesmo Jotabê Medeiros e por Eduardo Nunomura, informa que “o número de museus inaugurados caiu de 45 em 2014 para 17 em 2016”, e que os investimentos nas instituições no ano passado também tiveram queda, de 16% , junto a corte de 70% nos editais de fomento e financiamento da política de museus. Também registravam, na ocasião, a existência de 41 museus com processos de declaração de interesse público em aberto no Ibram, à espera da definição do governo. A declaração é uma espécie de pré-requisito para chancelar demandas de patrocínios. “Mas não há prazo para a concessão”, explica a reportagem.

Política pública x privatização
O Ibram nasceu no contexto de uma política pública para a área de museus, inaugurada no início do primeiro governo de Lula. Em maio de 2003, foi lançada a Política Nacional de Museus, base para as diretrizes da preservação e o desenvolvimento do patrimônio museológico brasileiro. Os investimentos na área, naquele exercício, subiram de R$ 24 milhões para R$ 44 milhões. No ano seguinte, em 2004, o governo criou o Departamento de Museus (Demu), dentro da estrutura do Iphan, e, em 2009, o Ibram, como autarquia vinculada ao Ministério da Cultura, dando ao setor museológico autonomia e maior orçamento para lidar com suas demandas. As atribuições do novo órgão incluíram programa de capacitação junto aos agentes da área, que iria auxiliar no aumento do número de projetos relativos a museus, amparados sob o regime de incentivo fiscal.

Os total de recursos aplicados diretamente pelo Sistema MinC na área, após a criação do Ibran, subiram de R$ 43 milhões, em 2009, para R$ 70 milhões, em 2010, conforme levantamento feito pelo órgão (http://www.museus.gov.br/investimento-em-museus-cresce-em-uma-decada/ ). Em termos de incentivo fiscal, foram captados R$ 73 milhões em 2009, R$ 100 milhões em 2010 e R$ 146 milhões em 2011. No total de investimentos, 2011 teve recorde com R$ 216 milhões. Esses recursos foram resultado de iniciativas do Sistema do MinC, incluindo suas autarquias e fundações vinculadas, do Fundo Nacional de Cultura (FNC) e dos projetos do Programa Nacional de Cultura (Pronac), aprovados na modalidade mecenato (que viabiliza o patrocínio e apoio de empresas públicas e privadas em projetos culturais por meio de renúncia fiscal).

Já na dotação orçamentária inicial do Ibram para 2017 – R$ 163,6 milhões –, apenas R$ 9,3 milhões destinavam-se às chamadas “atividades finalísticas” e dos quais só 57% efetivamente empenhados, de acordo com o Painel de indicadores Ibram: https://extranet.museus.gov.br/wp-content/uploads/2018/02/Painel-de-Indicadores-Ibram-Balanco-2017.pdf

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Segundo o Relatório de Gestão do exercício, apenas em meados de outubro do ano passado o limite orçamentário foi completamente liberado, sem que o órgão tivesse tempo útil para execução dos recursos, conseguindo fazer as licitações necessárias. “ Essa situação comprometeu a realização das atividades finalísticas programadas para o exercício de 2017, [entre as quais] citam-se: as exposições, ações educativas, fóruns, oficinas entre outras atividades.”

Para “melhorar o desempenho das atividades finalísticas”, diz o relatório do Ibram, teriam sido “buscados recursos de outras fontes junto às unidades do MinC e ao Fundo Nacional da Cultura, viabilizando a implementação de projetos finalísticos, como, por exemplo, obras de restauração e editais de fomento a entidades da área museal. Entretanto, em 2017, o Ibram não recebeu esse tipo de recursos orçamentários.”

Outro aspecto da crise na política nacional para os museus é a carência de pessoal que, segundo o relatório, pode comprometer de forma grave o cumprimento da missão institucional da autarquia. “Atualmente a situação do Ibram no que se refere à força de trabalho é alarmante. A força de trabalho vem sendo severamente prejudicada pela evasão por aposentadoria e exonerações de servidores efetivos, que vislumbram maiores remunerações do mercado.” Dos 517 servidores do quadro efetivo do Ibram, 272 (ou 52,6%) têm entre 50 e 75 anos, dos quais 127 servidores recebem abono de permanência, ou seja, já preencheram os requisitos para aposentadoria. “Apesar de anualmente solicitarmos concurso para provimento de cargo efetivo, ainda não obtivemos autorização do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão”, afirma o relatório, publicado em maio deste ano.

Em agosto de 2017, o órgão tinha conseguido apenas iniciar negociações para contratação de temporários. “Em agosto passado foi dado início às tratativas junto ao Ministério de Planejamento, Desenvolvimento e Gestão a respeito de possível contratação, por tempo determinado, de 107 profissionais para atender necessidade de excepcional interesse público.” Nesse sentido, sabe-se que uma das formas tradicionais de acabar com uma instituição é deixar que seus quadros se aposentem sem repô-los. Cortar as pessoas e suprimir o conhecimento.