Por Jorge Folena
O maior delito praticado pelo ex-presidente, por membros da sua família e por uma significativa parcela dos seus seguidores foi a promoção e o incentivo ao crime de ódio e discriminação no país, numa conduta típica do fascismo.
Dentro os muitos exemplos que poderíamos citar, resgato a triste memória do dia 12 de maio de 2022, véspera da data de comemoração da abolição formal da escravatura, quando o então ocupante da cadeira presidencial manifestou, para júbilo de seu público cativo, que negro se pesava em arrobas.
Não há dúvida sobre o grave delito de racismo ali praticado, além de todos os que estão sendo investigados (associação criminosa, tentativa de golpe de estado, abolição do estado democrática de direito, peculato por apropriação de joias, negociata das vacinas anti-covid19, falsificação de documentos públicos etc.) cometidos durante seus quatro anos de desgoverno.
Embora já tenha sido indiciado criminalmente, o ex-presidente não foi ainda processado, dada a letargia e condescendência com o fascismo por parte do PGR. Mas é certo que, nas quase três décadas em que foi deputado federal, seu comportamento público sempre foi reprovável, principalmente por se contrapor aos valores e preceitos orientadores da Constituição de 1988, que estabelece como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação.
O inelegível alcançou a cadeira da presidência ignorando abertamente tais princípios, da mesma forma que despreza a pluralidade e a convivência pacífica e, em suas ações cotidianas, segue incitando e estimulando o povo brasileiro ao ódio e ao preconceito contra os seus irmãos.
De certa forma, ele é a representação da classe dominante brasileira, caracterizada pela exploração, abusos e crueldades praticados há séculos contra os negros e os trabalhadores no Brasil. A mesma classe dominante que sempre se articulou para impor o apagamento dos seus malfeitos e a negação das lutas de resistência do povo brasileiro, ao longo da formação do país até os dias de hoje. Por isso, escondem que foram negros escravizados e seus descendentes livres que lutaram pelo fim da escravatura, ou seja, não foi o interesse colonial inglês que fez uma princesa branca conceder a libertação.
Em decorrência das muitas lutas populares, milhares de negros e mestiços foram massacrados por forças militares a serviço da classe dominante, como em Canudos, no Contestado e em Santa Cruz do Deserto. Para promover o apagamento dessas lutas, há muito tempo tentam convencer o povo brasileiro de que ele é “cordial” e “pacífico” e lhe é dito que deve trabalhar para colaborar com o progresso do país, como destacado no ideal positivista “ordem e progresso”, não por acaso impresso na bandeira nacional após a Proclamação da República (1889).
Naquele período, a imposição desta filosofia deu-se por meio de acordo das classes oligárquicas dominantes, visando criar uma barreira moral para impedir a rebelião da maioria da população brasileira, constituída por negros escravizados, que, mesmo após a abolição, superficial e incompleta, da escravidão (1888), continuaram a não ter direitos e foram submetidos a um permanente estado de discriminação, desigualdade e injustiça social.O mesmo antigo ideal continua a justificar a manutenção de uma “ordem” repressora para o povo, a fim de que este não questione o “progresso” sempre destinado a uma ínfima minoria, que se enriquece às custas da exploração do trabalho e impede a mínima distribuição da riqueza nacional para “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades nacionais”, como previsto na Constituição.
Assim, com seu lema “ordem e progresso” determinado de cima para baixo, a classe dominante tenta até hoje retirar do povo brasileiro a noção de lutas de classes (que se tornou aqui uma expressão proibida) para mantê-lo inconsciente da brutal exploração a que está submetido desde os tempos da colônia.
Há quem diga, de forma indevida e desonesta, que os brasileiros são preguiçosos (como herança dos povos indígenas) e malandros (como herança dos negros escravizados), e isso é repetido sistematicamente em livros, jornais e demais meios de comunicação social; sendo esta mentira assimilada por muitos indivíduos pobres, que apenas reproduzem sem questionar o que lhes dizem, sendo assim mantidos na ignorância.
Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei número 5.404/2020, de autoria do Senador Paulo Paim (PT/RS), que qualifica como hediondo o homicídio praticado em razão de preconceito de raça, cor ou etnia. O referido projeto de lei é importantíssimo, diante das práticas racistas e preconceituosas promovidas pelo ex-presidente e adeptos do seu projeto fascista, em curso no Brasil; porém, desde 30/05/2023, esse projeto está parado, aguardando a distribuição de relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal.
É importante esclarecer que o mencionado projeto de lei não é mais uma daquelas iniciativas para aumentar no país as penas aplicadas contra os mais pobres e os grupos subalternos, como tem sido proposto por parlamentares de direita e de extrema direita.
Na verdade, a iniciativa do Senador Paulo Paim tem como objetivo tentar evitar a continuação e o aumento dos assassinatos de crianças, jovens, mulheres e homens negros e índios no país, na medida em que o imperativo hipotético (externado pela legislação penal em vigor) não tem sido suficiente para barrar o agravamento dos abusos cotidianos praticados contra tais grupos, numa sociedade que ainda mantém, em pleno século XXI, fortes traços de violência colonial e subalternidade.
O autor do projeto, na sua justificativa, manifesta que:
“A Constituição, no seu artigo 4º, VIII, coloca como um dos princípios do Brasil, nas suas relações internacionais, o repúdio ao racismo. E o artigo 5º, XII, define que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.
Nesse sentido o presente projeto de lei regulamenta o mandamento constitucional num momento em que o Brasil e o mundo se organizam contra o racismo.”
Como demonstrado pelo Senador Paulo Paim, nas razões que levaram à apresentação do projeto de lei, existe um crescente assassinato de negros no Brasil, onde a vida dos integrantes desse grupamento social (a “carne negra”) não tem tido qualquer valor.
Assim, o racismo que permeia a sociedade brasileira não apenas constitui uma ininterrupta violação da dignidade humana, como segue tirando vidas de pessoas em situação de fragilidade, como se nada valessem.
Lembremos que, durante a aprovação da Lei CAÓ (Lei 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor), muitos disseram, à época, que era um exagero legislativo, porque o Brasil “não é um país racista nem preconceituoso, onde todas as raças se misturam”.
Reservas semelhantes foram apresentadas em relação à Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006, que cria mecanismo contra a violência doméstica e familiar contra a mulher) e à Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015, que qualificou o crime de homicídio contra as mulheres, por razões da condição do sexo feminino, e incluiu o feminicídio como crime hediondo).
A sociedade brasileira, como um todo, até hoje não conseguiu atingir o objetivo de promover o bem comum nem de proporcionar a todos o direito de viver sem sofrer preconceito ou discriminação.
Em decorrência, chacinas são constantemente praticadas nas periferias das grandes cidades e, em todas elas, predominantemente, são mortas pessoas negras e mestiças, e quase sempre jovens e adolescentes. Os exemplos são muitos, mas podemos citar as chacinas da Candelária, de Vigário Geral, Parada de Lucas, Manguinhos, Paraisópolis, Jacarezinho, Eldorado dos Carajás etc etc.
Além disso, estão sendo assassinados e exterminados os poucos indivíduos que restaram dos povos originários, conforme denúncias sobre as reiteradas invasões das reservas indígenas por garimpeiros e grileiros de terras.
A propósito, como ressaltou o Senador Paulo Paim, na justificativa do seu projeto de lei: “Quando defendemos a democracia, temos que falar do racismo, da discriminação, da violência; quando defendemos a Constituição, temos que lembrar do genocídio indígena e negro; quando defendemos a paz e a solidariedade, temos que levantar memoriais aos que, todos os dias, são vítimas de crimes de morte causados por preconceito de raça, cor e etnia.”
Sendo assim, o projeto é uma tentativa de tornar efetivo o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e materializar um dos objetivos fundamentais da República, que visa a diminuição do preconceito de cor, raça e etnia e de quaisquer outras formas de discriminação, pois a sequência de homicídios contra os grupos subalternos no Brasil tem sido uma constante e lamentável realidade, que se coloca contra o fundamento maior da Constituição de 1988, que veio para proteger o povo pobre e sofrido do Brasil, massacrado, humilhado e maltratado desde o descobrimento.
Durante o governo do ex-presidente, o ódio e o preconceito foram utilizados como verdadeiras políticas de governo, para facilitar o que ele e seu séquito almejavam de fato, que era, por meio do desvio de finalidade, o enriquecimento pessoal pela apropriação de bens públicos, além de perseguir e vigiar as pessoas para introduzir uma ordem autoritária.
Porém, o mais grave delito praticado pelo ex-presidente foi a disseminação, a promoção e a normalização do ódio e do preconceito no Brasil, causando a eclosão de uma perigosa fratura social, totalmente em desacordo com os princípios fundamentais da nossa Constituição, que estabeleceu os regramentos para a construção de uma sociedade fraterna, solidária, pluralista e sem preconceitos.
*Folena é advogado e cientista político. Secretário geral do Instituto dos Advogados Brasileiros e Presidente da Comissão de Justiça de Transição e Memória da OAB RJ, Jorge também coordena e apresenta o programa Soberania em Debate, do movimento SOS Brasil Soberano, do Senge RJ.
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil