Com um histórico de decisões desencontradas que legou ao Brasil um arquipélago de linhas que não se conectam, malha ferroviária nacional precisa ser repensada como parte de um planejamento de paisagismo econômico.
Antes mesmo do lançamento oficial da terceira fase do Programa de Aceleração do Crescimento, apontado por Lula como o verdadeiro início de seu governo, o presidente já havia participado da cerimônia de lançamento da primeira obra do novo PAC: a Ferrovia de Integração Oeste-Leste, na Bahia. A integração do país por meio das linhas ferroviárias poderia, segundo especialistas e militantes do setor, impulsionar a integração do país ao mesmo tempo que ampliaria a capilaridade de sistemas produtivos que hoje estão isolados ou conectados à costa para a exportação.
A primeira obra do PAC, que fará a ligação de 537 Km entre Caetité e Ilhéus, na Bahia, será realizada em parceria entre Estado e iniciativa privada. O primeiro trecho, de 127 Km de trilhos, ficará sob a responsabilidade da Bahia Mineração, empresa que em 2021 arrematou, com lance mínimo e sem concorrência, a concessão para a exploração do trecho por 35 anos. De Caetité até Mara Rosa, em Goiás, o PAC assumirá a obra.
A ampliação da malha em parceria com a iniciativa privada é reflexo do modelo de concessões, adotado a partir da década de 1990. Mas esse acerto público-privado atende aos interesses nacionais? Esse foi um dos temas trazidos pelo Soberania em Debate de 10/08, que recebeu o professor da COPPE/UFRJ Romulo Orrico, responsável pela implantação do BRS na cidade do Rio e do sistema de Bilhete Único.
Ferramenta para a exportação
A história das ferrovias no Brasil começou no período imperial. Naquele primeiro momento, a lógica era de exportação. As linhas ligavam centros agrícolas e mineradores à costa, fazendo escoar os produtos que eram exportados para a Europa. “Era a lógica das capitanias hereditárias: o Brasil dividido em fatias para exploração, com destino a Lisboa. A integração era zero. Não havia preocupação nenhuma em levar ao Rio de Janeiro o que era produzido na Bahia e vice-versa. Mesmo o que chegava por cabotagem, vinha em consequência do envio para Lisboa”, conta Orrico.
Em determinado ponto, já na República, a industrialização e o surgimento de novos produtos muda essa lógica. Os setores perdem o interesse na malha ferroviária e o Estado assume mas, embora fosse uma administração única, faltava lógica no uso. Na segunda parte do século XX, as ferrovias deixam de atender passageiros e cargas pequenas. As cargas mais concentradas, como derivados minerais, passam a ocupar todo o espaço. “Sob o controle do governo federal e da lógica neo-liberal pós governo Collor, com as privatizações, toda a nostalgia das estações, do transporte de passageiros foi colocada em segundo plano. Naquela altura, o transporte de pessoas não era deficitário, mas não era interessante para as empresas. Além da necessidade de manter as estações funcionando, um trem com toneladas de minério não iria parar em cidade nenhuma para pegar passageiros ou pequenas cargas. O resultado foi uma malha ferroviária em arquipélagos, com pontos isolados atendidos por ferrovias que não se comunicam”, aponta o professor.
Com administrações distintas, as ferrovias passaram a funcionar como extensão de cadeias de produção privadas, principalmente aquelas que transportam cargas grandes, como as mineradoras. Outros usos da malha ficaram inviabilizados. “A partir daí, o raciocínio era ‘a ferrovia é minha e vou negociar seu uso de acordo com os meus interesses’. Se uma linha tem a capacidade de transformar produtos de outras mineradoras, agricultores, de quem quer que seja, e não o faz, o país sai perdendo”, alerta Orrico.
Ferrovias para articular economias
Integrar a malha ferroviária nacional ao desenvolvimento do país, segundo o professor, exige mais que apenas levar os trilhos até determinado ponto ou ligar cidades. A certeza de que os empreendimentos realmente serão convertidos em desenvolvimento local está no planejamento. “Há, sem dúvida, uma relação positiva entre os investimentos em infraestrutura de transporte e o desenvolvimento, mas ela precisa ser melhor trabalhada. Quando ligamos uma ponta à outra, podemos estar melhorando ou piorando a industrialização em locais menos desenvolvidos. É o risco do contato. E isso precisa ser considerado pelas estratégias do Governo”, aponta.
Para além de cobrir mais território, a lógica por trás da administração precisa mudar. Encapsuladas em poucos setores produtivos, as ferrovias não colaboram para cadeias que são obrigadas a distribuir seus produtos pelas rodovias, como as indústrias de alimentos, roupas, eletromecânicos, entre outros. Orrico cita como exemplo o projeto dos Centros de Integração e Logística, do qual esteve à frente com outros professores e pesquisadores da UFRJ. “A ideia central era estudar onde deveriam ser colocados centros de transbordo de carga, integrando modais e minimizando o custo do transporte. Tínhamos 122 cadeias produtivas mapeadas e indicamos 132 microrregiões do país que se beneficiariam muito com esses centros. Atender as demandas existentes é importante, mas o planejamento nos permite ir além disso. Os projetos não podem esquecer as catadeiras do Maranhão, o carvão vegetal do Pará, ou toda a produção agrícola e extrativista de pequeno porte que também precisam ser atendidas. Não podemos pensar apenas em commodities”, destaca.
No que diz respeito aos investimentos do PAC em ferrovias, Orrico sugere que os aportes financeiros colocados em cada trecho sejam condicionados a um plano de desenvolvimento da região, abrangendo atividades não só econômicas, mas sociais e culturais na área de influência do projeto. Para ele, isso garantiria o desenvolvimento de cadeias locais, alimentando não só as atividades motoras, mas também as complementares e serviços, em um paisagismo econômico.
O desafio das cidades
Não é só no cenário nacional que os gargalos gerados pela falta de investimento e planejamento na malha ferroviária causam danos ao desenvolvimento. Nas cidades, os impactos diretos na economia são incontestáveis, mas seguem passando ao largo das mesas de decisão. Embora o transporte seja o mediador de todas as atividades econômicas, ainda não foi possível mobilizar a classe patronal em torno do tema, que seria diretamente beneficiada por uma melhoria no setor.
Em geral, faltam recursos para investir em expansão das vias, manutenção constante, tarifa acessível e qualidade de serviço, mas os caminhos existem. Para o professor, quem tem que pagar essa conta é quem se beneficia diretamente dela. “O usuário já paga a sua parte. O problema é que, hoje, ele paga sozinho. Os automobilistas precisam entrar nesse financiamento. O setor imobiliário, também. Penso que, nas 15 maiores regiões metropolitanas do país, esses atores precisam ser convocados a contribuir para melhorar o trasporte público, baixar as tarifas e melhorar a qualidade viária, causando um impacto direto no trânsito para todos. Segundo nossos estudos, apenas nessas 15 regiões, conseguiríamos gerar 144 bilhões por ano, em plena arrecadação. Com metade disso já podemos fazer muito. Para o Rio de Janeiro, por exemplo, esse valor poderia ser convertido em mais 120 Km de metrô, reforma de 300 Km de linhas de trem, uma dezena de redes de 10 Km cada de VLT e mais”, projeta o professor.
> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)
> Confira o Soberania em Debate com Romulo Orrico, entrevistado pelo advogado e cientista político Jorge Folena, e pela jornalista Beth Costa, da coordenação do SOS Brasil Soberano.